Proximidade Imaginada – Entrevista Com O Artista Júnior Suci

 

Júnior Suci, Frame #1, a partir de Precisei ver meu sangue, 2011. Vídeo; Som – Cor – 1’50”

 

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O artista paulistano Júnior Suci, 28 anos, mestrando em Poéticas Visuais pela Unicamp, vem realizando diversas exposições individuais e coletivas de seus desenhos e vídeos oriundos de gestos performáticos que o artista realiza sem público, em espaços privados. Pelo trânsito que sua pesquisa promove entre o desenho e a performance, realizamos com ele uma breve entrevista, na qual Suci se posiciona sobre esses termos e discute sua produção e os possíveis tangenciamentos que ela promove nessa discussão entre linguagens.

 

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RENAN MARCONDES: O uso da palavra desenho, no Brasil, possui uma relação menos complexa do que em outras línguas. Em inglês, por exemplo, a distinção entre design e draw cria espaço para diferentes compreensões de desenho, como podemos notar nos escritos de Flávio Motta ou de Edith Derdyk. Entendendo a ideia de draw como uma anotação transitória e o design como uma projeção, um desígnio materializado, gostaria de saber em qual dos eixos você acredita se situar mais. Pergunto, pois noto em seu trabalho uma relação forte com ambas as terminologias.

 

JÚNIOR SUCI: Acredito que as duas posições mais evidentes que o desenho assume na arte são as relacionadas ao registro e à invenção igualmente. O meu trabalho transita entre esses dois polos, uma vez que funciona como desenho de observação desses gestos que realizo em meu espaço de produção, ao mesmo tempo que alguns elementos são inventados numa mesma sequência, numa mesma série (Fernanda Pitta comenta isso no texto da exposição “Necessidade do Objeto”, que realizei, em 2011, no Centro Universitário Maria Antônia). O que é registro “fiel” e o que é mentira, invenção, imaginação, são questões que se levantam diante de cada série que realizo. Esse desenho que se move ora pra uma direção ora pra outra, mas dentro de um mesmo conceito, de uma mesma estética e de uma mesma obra, ganha força por levantar discussões e estabelecer reflexões sobre a verdade e a mentira, de acordo com a vivência e a experiência de cada espectador.

 

Júnior Suci, Frame #1, a partir de Sem título, 2010. Vídeo; Som – P & B – 5’

 

Júnior Suci, Ação 1: fiquei alegre (lado esquerdo superior), Ação 2: fiz bico (lado direito superior), Ação 3: fiquei triste (lado esquerdo inferior), Ação 4: fiquei calado (lado direito inferior), 2009. Esferográfica e lápis de cor sobre papel, 21 x 21 cm cada

 

RENAN MARCONDES: Outros dois pontos articulados em seu trabalho são a performance e o vídeo. Primeiramente sobre a performance, gostaria de saber o que define, para você, a linguagem, e de que modo essa definição se adequa à sua produção que, materialmente, toma a forma do desenho.

 

JÚNIOR SUCI: Duas questões encontradas na linguagem performática servem de base aos temas da minha produção. A primeira delas é aquela que diz respeito à aproximação da arte com a vida real, com o cotidiano, conforme era defendido pelos primeiros artistas da performance. E minha principal referência é justamente gestos que realizamos na nossa rotina; ações que mantêm relação com o próprio corpo ou com certos objetos carregados de significados individuais. São ações de certo modo supersticiosas, pelo poder e importância transferidos a elas. Refazê-las, reproduzi-las dentro do meu espaço e do meu trabalho é o meu interesse. Aliás, essa abordagem de aproximação com a vida defende uma arte mais “verdadeira”, longe de certos artificialismos e expressões vazias, de acordo com os primeiros performers. No entanto, a meu ver, continua sendo representação, algo ensaiado, projetado e apresentado ao público. Aqui entra a segunda questão da performance que desenvolvo em minha pesquisa: a representação tomada como algo verdadeiro e o seu modo de ser registrada. Ora, representar (apesar do envolvimento emocional real do bom artista-ator-performer) sempre cai no âmbito do fingimento, da reprodução, do virtual. E o modo de registrar essas ações, na performance, vem com suportes que também são tomados como meios fieis e verdadeiros de reprodução: a fotografia e o vídeo. Sendo assim, eu subverto a própria questão da performance ao privar o público de ver meus gestos, minhas ações. Só é permitido a ele, dessa maneira, vê-los através dos desenhos, onde posso aplicar mais imaginação, alteração. E o vídeo eu utilizo pelo forte diálogo do cinema com meu trabalho, nas questões relacionadas ao enquadramento e ao gesto do ator em close-up. Esse suporte venho utilizando de modo mais lento, nos exatos momentos em que o próprio trabalho necessita ser em vídeo, quando não cabe no desenho, não se completa em linhas. No entanto, a representação está presente e, novamente, a verdade do registro nesse caso é ainda colocada em dúvida, uma vez que o vídeo é pensado previamente e finalizado com edições, tratamento da imagem, etc.

 

RENAN MARCONDES: Há, de alguma forma, uma importância no gesto de desenhar para o trabalho final? Pergunto pois você possui um traço muito específico, que transmite em certa instância, uma subjetividade forte no desenho.

 

JÚNIOR SUCI: A linha é o forte do meu trabalho e foi a primeira característica que tornou meu trabalho reconhecido. Uma linha tensa, fragmentada, trêmula, canhestra, desfiada. Ela é a protagonista na tensão do gesto que é apresentado ao público. Não trabalho com desenhos como rascunhos do trabalho final. Meus rascunhos são anotações dessas situações e, no momento da produção final, o desenho é iniciado e terminado sem interrupção. O ato lento de desenhar (ao contrário da obsessão que muitas pessoas pensam existir em meu trabalho) vai dando forma às imagens figurativas do meu próprio corpo modificado, e a tensão reservada durante o processo de pensamento das ações é materializada através do traço. A tensão da linha, a dúvida das direções que elas possuem nos contornos, os fragmentos que escapam, mas se mantêm confinados e a vibração como um frame de uma fita pausada são algumas sensações captadas nesses desenhos que relacionam coerentemente seu conceito e sua estética.

 

Júnior Suci, Minha meiaMinha luvaMinha cueca, da série Minhas vergonhas, 2013. Grafite e Acrílica sobre Tecido, 35 x 35 cm cada

 

RENAN MARCONDES: E em relação aos enquadramentos que você faz? Há uma intencionalidade no processo, no recorte realizado? Com algum fim específico ou não?

 

JÚNIOR SUCI: Evidentemente é intencional. Não sei se já comentei claramente, mas cinema e performance são as duas referências para minha produção, desde meu primeiro trabalho. O cinema entra como forte influência na observação de certos gestos e principalmente nas suas possibilidades de quadro, de recorte. O close-up é o tipo de enquadramento que pesquiso bastante e é o único que utilizo em meus trabalhos. Esse tipo de quadro possibilita a aproximação do espectador com a ação mostrada. Sendo assim, podemos falar de um objetivo: aproximar silenciosamente o leitor da ação presente na obra, bem como das linhas; destacar o pequeno gesto recortado, afinal o close-up tem justamente essa função. Confinar a imagem nos limites dessas telas de papel, que se apresentam sempre em séries, em sequências de uma mesma ação, onde cada trabalho da série é uma variação dessa mesma situação.

 

Júnior Suci, Sem título I, 2013. Grafite sobre papel Fabriano, 21 x 21 cm. Coleção de Paulo Aureliano da Mata/ Acervo Performatus

 

Júnior Suci, Sem título II, 2013. Grafite sobre papel Fabriano, 25 x 21 cm. Coleção de Paulo Aureliano da Mata/ Acervo Performatus

 

RENAN MARCONDES: Olhando os desenhos realizados a partir do livro Inhumas: nossa cidade e comparando-os com a sua fala sobre eles, muito me chama a atenção você usar a expressão “desenho de observação” para citá-los. Afinal, em ambos os desenhos você, previamente à observação, realiza um ato de criação, ao escolher o tipo de relação entre corpo e objeto, assim como o enquadramento. Essa ação não retira certa isenção que está pressuposta no ato da observação? Como se situa na sua pesquisa esse diálogo (ou essa distinção) entre criação e observação?

 

JÚNIOR SUCI: Os dois trabalhos realizados a partir do livro surgem, igualmente, num território onde ações são narradas e postas a partir do verbo. Nesse caso especificamente (ou em outros onde meu trabalho mantém diálogo com a ideia de ilustração de outra obra), a produção se realiza num caminho já predeterminado – isto é, o texto já está colocado. Desse modo, consigo seguir as mesmas direções que norteiam meu processo criativo: partindo de uma situação imaginada ou observada – ou no caso citado, colocada por outro autor –, reproduzo esses gestos-experiências numa pose performática, teatral, que serve de modelo observado para a realização dos desenhos. Observar o que é “montado” e planejado é um ato presente em minha pesquisa prática. Até agora nunca parti do acaso – pelo contrário, existe certo controle no que será reproduzido gestual e corporalmente para servir de referência ao ato de desenhar, mesmo que baseado em gestos espontâneos de outros sujeitos. Pensar nas situações expostas nos poemas me permitiu buscar objetos até então nunca utilizados na interação com o meu corpo como modelo, que é criada para ser observada por mim mesmo, para depois assumir desdobramentos que transitam entre o registro e a ficção.

 

Júnior Suci, Espelho de luz (esquerda) e Janela de luz (direita), 2009. Esferográfica e lápis de cor sobre papel, 30 x 20,5 cm

 

RENAN MARCONDES: Por fim, gostaria de saber como você acha que seu trabalho se situa nesses eixos entre linguagens e qual a real importância que você sente enquanto artista (se é que ela existe), de situá-los mais próximo de alguma delas, em um campo contemporâneo tão liquefeito entre as linguagens.

 

JÚNIOR SUCI: Sou um desenhista. O meu trabalho é desenho. Essas duas linguagens, performance e cinema, são vistas dentro e em volta do meu desenho. Acredito que as três se mesclam e caminham juntas dentro do meu trabalho, mas sempre chegam até o desenho, meu objetivo principal, apesar das obras que venho realizando em vídeo, desde 2010. Alguns críticos percebem minha produção como um misto de desenho e performance, mas vou sempre defender o desenho como a grande obra final, nesse caso.

 

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Nota

[1] Diz Júnior Suci sobre os desenhos que foram produzidos a partir do livro Inhumas: nossa cidade de Miguel Jorge: “No primeiro trabalho, eu me atentei aos elementos-chave da poesia dele. Usei a goiaba e a folha de goiabeira, tão marcantes no clima da cidade. E, no segundo trabalho, uma liberdade na construção do desenho: o indivíduo se constrói a partir da própria cidade. Torre de mãos, torre de pedras, tudo junto. Lembrando que é meu corpo que se faz presente nos desenhos. Incorporei, portanto, um recorte na atmosfera do livro para realizar esse desenho de observação”.

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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