Outros Fluxxxos

 

Escrito e lido na “Mostra Performatus #2”, Sesc Santos, SP, Brasil, 07 de julho de 2017.

 

Leitura Outros Fluxxxos com Alexandre Sá realizada na cidade de Santos, SP, Brasil. Julho de 2017. Fotografia de Luiza Prado

 

Esse é um texto para ser lido.

E eu vou lê-lo.

 

I.

Quero agradecer ao Tales e ao Da Mata pelo convite.

Ao Sesc e às produtoras.

Ao motorista do ônibus que me trouxe.

Ao que me levará de volta pro Rio de Janeiro.

A vocês que estão aqui hoje.

E é sempre uma felicidade falar assim em um encontro, uma palestra.

 

E talvez por isso, momentos como esse representem, pra mim, algum instante de liberdade para além das aulas da academia, do texto crítico e da in-própria textualidade do meu trabalho de arte.

 

Então trata-se de uma fala mais livre, inclusive no título…

“Outros Fluxxxos” com três xis.

Ou se vocês preferirem “Outros Fluxxxos” X-rated.

Nessa relação aderida de mínima liberdade que o dizer carrega.

E eu também fiquei me perguntando em certo sentido como eu poderia preparar uma fala sobre essas questões: corpo, gênero e agora, a mínima liberdade. Ou melhor ainda, a liberdade utópica, amparada obviamente pelo momento político estupendo que estamos vivendo, graças aos políticos que em grande parte foram colocados lá por nós.

 

Ou por alguns de nós.

 

Então diante de toda a miséria que assola o meu corpo, nem rola mais de dizer Fora etc.

Acho que é mais da ordem do Fora eu.

 

Fora-eu.

Eu-fora.

Dobra de mim.

 

Então pensando comigo mesmo enquanto dobra, enquanto surpresa e enquanto algo inusitado, eu não preparei a minha fala.

Quer dizer…

Não preparei com toda a cerimônia que esse evento talvez precisasse.

Peguei uma mochila e um livro.

Não trouxe nenhuma roupa além dessa que vocês estão vendo.

Não trouxe mala.

Viajei oito horas de ônibus.

 

Vim aqui.

Estou falando.

Quer dizer, estou lendo lentamente a dobra e isso não é um poema.

Em breve vou para a rodoviária.

Pego outro ônibus e chego novamente no Rio de Janeiro.

 

Estou com um começo de compressão de algumas vértebras.

Repleto de remédios.

Com dor.

E ontem o médico me disse que a minha coluna de trinta e nove parecia a de um jovem senhor de sessenta e cinco anos.

Questões genéticas.

Perna menor que a outra.

Rótula frágil.

Coluna doída em virtude dos trinta e cinco ou quarenta quilos que foram embora.

E os pés que sentem saudades das botas ortopédicas que usei quando criança.

E isso não é uma performance.

 

Quer dizer, talvez seja, porque, de fato, rolou uma inveja de não fazer performance aqui no evento.

 

Uma mezzo tristeza teórica que precisa se divertir um pouco mais.

 

Então talvez seja uma fala invejosa de uma prática…

Mas sendo então uma fala que queria ser prática… eu… me perdi.

(risos)

Toda fala é prática?

Quer dizer, como eu disse, não preparei nada enquanto cerimônia.

Peguei o celular no ônibus e escrevi esse texto que eu estou lendo (e escrevendo) e que provavelmente vou migrar para o iPad para poder lê-lo como o faço agora.

 

Trouxe também uns bons comprimidos de Frontal, que comprei sem receita, porque viver tá foda e a volta de ônibus… vocês já sabem que também não será tão simples…

 

Aproveito para agradecer a Deus e a Marilyn Monroe e ao Andy por poder comprar duas passagens em ônibus semileito para poder tentar esticar as pernas.

 

As produtoras me enviaram um e-mail explicitando que caso eu me atrasasse rolaria multa pro evento e talvez fosse bom dormir aqui de um dia para o outro. Ah… E a coisa toda do Sesc Rio. E do Orlando Diniz. E mais de mil demissões no Sesc e Senac no Rio de Janeiro.

Meu companheiro é um desses.

Depois de vinte e três anos de casa, total dedicação ao emprego, nenhum desvio de verba e uma doença congênita.

Afastou-se para poder se cuidar. E sete meses depois do seu retorno (após ter pedido aos médicos para voltar) demitiram-no. Antes mesmo de demitirem os que exigiram-lhe que listasse anteriormente.

E as pessoas não falam nada sobre isso.

 

E eu talvez não devesse falar também porque a vida é cheia de som, fúria e lobby e eu quero fazer uma performance de drag no próximo evento do Da Mata e do Tales.

Afinal, eu já ando numa fase que acho que a drag, inspirada na elegância, estudo e cultura das travestis-divas, é a minha única solução.

Então por favor não roubem meu trabalho que provavelmente já roubei de alguém sem saber.

Mas as produtoras foram fofas e seria bom mesmo que eu conseguisse chegar para evitar a multa. O pior e o melhor é que eu, agora, com quase quarenta anos, aqui, dentro do ônibus do Andy, não sei se vou conseguir chegar.

Mas quem sabe?

Quem tem essa certeza?

Quem aqui me garante que esse texto não foi preparado antes de ser escrito, junto com as duras pedradas que tomei (e que todo mundo toma) ao longo da vida?

 

Quem pode me garantir se de fato nós conseguiremos chegar logo ali… do outro lado da porta?

Em casa?

Vivos?

E com as duas pernas?

Talvez seja bom citar alguma coisa agora bem intelectual para não parecer tão perecível advindo de alguém tão perecível.

Dez segundos de silêncio que não precisam ser lidos.

Olhe para o relógio exatamente agora.

Agradeça por ter conseguido comprar e ser seu gadget endividado.

 

Mudança de ritmo.

 

Acho que existem três policiais que pegaram carona, no andar de cima do ônibus.

De fato, nada me garante que chegarei.

E isso não é uma sessão de análise.

 

Um deles me olhava com frequência no embarque e coçava o pau.

Será que ele está realmente no segundo andar do ônibus?

Mas veja bem, garota, eu tenho um namorado.

E esse é o tal giro da roda.

 

E acabei de compartilhar no Facebook uma frase do gato da Alice que diz assim:

– Para quem não sabe pra onde vai, qualquer caminho serve.

 

E se o meu namorado que me acha louca e não se acha namorado e não me assume no Facebook (meu desejo mais profundo de debutante-suspiro) suspeitar do tal policial não menos suspeito do segundo andar do ônibus, será que terminaríamos ou nos tornaríamos mais unidos que nunca?

 

E se ele, ao se despedir ontem com uma linda e inédita mensagem pelo WhatsApp, resolveu se entregar ao desejo e à fúria do encontro-objeto-carne de um outro alguém de Maricá, de Niterói, do Rio de Janeiro, de Camboinhas, de Abricó, do Instagram ou da rua ao lado?

E se ele estivesse fazendo-o-animal agora?

E se ele estivesse fazendo-o-animal todos os dias?

Será que de fato isso importa?

O amor desconhece a ética?

Que amor?

Qual amor?

Será que isso deveria nos importar, mesmo sem nenhuma certeza e apesar dos últimos quatro meses completamente juntos, apaixonados, e apesar do dia de ontem de trabalho exaustivo e tanta parceria?

Quem é que se trai a si?

A si mesmo é possível trair-se?

 

Será que isso merece importância em tempos de relacionamento aberto e inevitável evaporação?

 

Quem é fiel em tempos de cólera?

Quem merece meu mais profundo desejo de fidelização?

Não seria mais justo continuarmos como todo o rebanho que supõe preencher o entorno e o vazio intransponível?

Será que se eu disser aqui, publicamente, que o amo e que talvez ainda esteja tentando descobrir o que vem a ser isso, seria crucificado pelas senhoras e senhores através de um riso de canto de boca que visa, antes de mais nada, destituir meu desejo e a minha verdade (por mais enganosa que seja)?

 

Toda a verdade não é um engano e vice-versa?

 

Casar, ter algum filho, é sinônimo de fracasso?

Em qual abismo aprendemos a repetir que as relações dos nossos pais e avós sempre foi recheada de hipocrisia, subjugo e tristeza?

Quanto de vossas boas bocas banguelas eu deixo que entrem em minha casa-corpo?

 

II.

Bicha preta.

Sexo fácil?

Travesti is the new black?

 

Aquela tal moça que canta a música-hit-gênero-trans-tudo-gloryhole-vida-louca do Spotify da comunidade, é produzida por quem mesmo?

 

Meus amigos a adoram porque disseram-lhes que é preciso construir um mito. E destruí-lo/ destruirmo-nos na próxima season.

 

Empoderamento é o que mesmo?

Não pode mais falar empoderamento?

Oops!… I didn’t know I couldn’t talk about sex.

 

E o moço fofo retrô hype que só fala de gay com sede de vingança-mortalkombat?

 

Alguém aqui conseguiu escapar do açougue-jogos-mortais do mundo?

 

Caio Fernando Abreu não é empoderamento?

Gretchen não é empoderamento?

Antonin Artaud não é empoderamento?

Ney Matogrosso não é empoderamento?

Jane di Castro não é empoderamento?

Madonna não é empoderamento?

Freud e Lacan não são empoderamento?

Noite dos Leopardos não é empoderamento?

Edson Cordeiro não é empoderamento?

Angela Davis não é empoderamento?

Titãs não é empoderamento?

Iyá Nitinha de Oxum (benção sempre) não é empoderamento?

Mãe Beata de Iemanjá (benção) não é empoderamento?

Mãe Stella de Oxóssi (benção) não é empoderamento?

Gilles Deleuze não é empoderamento?

O suicídio de Gilles Deleuze não é empoderamento?

Pablo (aquele do qual é a música) não é empoderamento?

Nelson Rodrigues não é empoderamento?

Jesus Cristo não é empoderamento?

Cazuza não é empoderamento?

Perla não é empoderamento?

Lea T não é empoderamento?

Maria Bethânia, Gal, Caetano, Gilberto Gil não são empoderamento?

Gilberto Gawronski não é empoderamento?

Oscar Wilde não é empoderamento?

Leonilson não é empoderamento?

Roberta Close não é empoderamento?

Michel Foucault não é empoderamento?

Funk das antigas não é empoderamento?

Stonewall não é empoderamento?

RuPaul não é empoderamento?

Basquiat não é empoderamento?

Rogéria não é empoderamento?

Adélia Prado não é empoderamento?

Clarice Lispector não é empoderamento?

Gandhi não é empoderamento?

Cláudia Pantera não é empoderamento?

 

Toda e qualquer voz não precisaria ser tomada de assalto? Num susto? Como um vírus? Como em uma doença infectocontagiosa?

 

São quase onze horas. O ônibus saiu às oito horas e trinta minutos. E talvez chegue às dezessete horas. Tudo muito remotamente. Estou completamente louco de vontade de fumar.

 

III.

Parada de ônibus. Touché.

Os policiais não estavam no ônibus. Talvez tenham descido em alguma parada da minha fantasia ao longo do caminho-fetiche.

 

Enquanto escrevo, lembro da pergunta lacaniana: – Quem fala?

Quantas vozes me erigem?

Resolvo ficar quieto.

E respondo-personagem a uns poucos personagens do caminho.

O motorista que me diz que talvez seja uma boa hora para almoçar.

Um desconhecido que me pergunta onde estamos, enquanto levo quase cinco segundos para responder. Tudo fica em suspenso… Como quando minha velha amiga que, no trabalho, no meio da escada, me para e diz: – Não sei porque insisto tanto em te chamar de Alexandre.

Entro no Graal. Igual a todos os outros. Como toda a paisagem. Em um misto de pasteurização e gourmetização.

 

Vejo uma linguiça nova.

Não sei do que é.

Pergunto ao atendente.

Ele indica que é mudo.

Mostra o crachá.

Imito então uma galinha.

Ele me aponta uma coxa de frango frita do outro lado.

Faz sinal de joinha.

Talvez esteja boa.

Pego a linguiça que nunca vim a saber do que era.

Desisto da coxa.

A minha dói.

Opto então por alguma massa.

Coloco molho e pergunto sobre o queijo ralado.

A nova atendente também indica que é muda.

Aponta para o pote.

Acho tudo lindo mas me sinto estranhíssimo.

E talvez já não saiba mais se é esse texto de agora em sua força que termina deixando tudo tão desconcertado.

Evito então falar.

Como em silêncio e não vejo nada.

Amo as paradas, os ônibus e todos os não-lugares sem identidade. Como eu. Como meus filhos e netos que ainda não tive.

Peço um café e um donut para lembrar que também sou Simpson e para reforçar minha pulsão de morte, já que sou diabético e outras coisitas mais.

Ouço a caixa ao final.

– Débito ou crédito?

– Pode inserir o seu cartão.

– Boa tarde.

 

Será que o politicamente correto vai nos matar ainda mais?

 

Lembro de ir ao banheiro mijar.

Olho sem querer (mesmo) o pau de um motorista completamente eXXXausto e apoiado no mictório.

Aquela era sua fonte.

O pau murcho, enrugado, velho; apesar da pouca idade do seu dono.

Lembrei da minha coluna.

E de como o corpo cansa de viver contemporâneo.

O tempo da parada é sem sobras, sombras e sem surpresas.

Banheiro, comida, pagamento, três cigarros.

Volto para o semileito do double deck.

Alguém me pergunta a senha do wi-fi.

Não há.

Wi-fi em ônibus no Brasil nunca serve para nada.

Outro alguém da frente responde que existe apenas uma entrada USB que serve de carregador.

E como a vida é cheia de surpresas, entra uma policial e senta perto de mim.

Passa longos minutos olhando o Facebook e o WhatsApp. Como todo mundo.

Quem carrega um livro hoje nas mãos? Quem os lê?

Se cobre com o casaco da polícia e seguimos viagem.

 

IV.

Corte seco.

A estrada continua linda.

A luz parece boa.

Não sei se enxergo.

Não sei se chego nunca.

Nunca soube se enxergava.

 

Não preparei nada e logo farei uma fala.

Não posso me atrasar.

Rola multa.

Você sabe.

Ninguém pode se atrasar.

A vida é relógio de ponto.

 

Minha camiseta tem um Platão-caveira.

 

O policial come um sanduíche embrulhado em papel alumínio. Será que ele está sem receber há quase quatro meses como eu e os professores da UERJ e alguns servidores do Estado do Rio de Janeiro?

 

Será que como eu, sem mimimi, é órfão, solteiro, sem família, não tem com quem contar e dois lindos buldogues para criar?

 

Depois da citação do gato da Alice no Facebook, um amigo comentou:

– “Eu não posso voltar para o ontem; eu era uma pessoa diferente lá.” Também de Alice.

Lembro da filha de uma sempre-professora que perguntou quando pequena:

– “Quem me garante que eu acordei a mesma de ontem?”

Tenho alunas que passaram pelo processo de transição.

Estão lindas.

Estão ótimas.

Algumas.

Outras, passaram por intervenção cirúrgica após análise de junta médica; que talvez não estivesse tão junta para conversar e discutir todo o processo.

A vida também é pouca paciência e desengano.

Dizem que arrancaram-lhe os testículos. Aos dezoito anos. O processo durou menos de um ano.

Hoje, uma delas acha que tudo é transfobia.

Será que a gordofobia me fez mais forte e não menos carente?

Outra faz programa e divulga no Instagram para ser in e ter muitos likes.

E talvez falte-lhe um pouco de profundidade para perceber que questões de gênero não precisam ser unicamente parte de uma justificativa para um esvaziamento subjetivo potentíssimo que foi vagarosamente esculpido pelo capital.

Tudo muito remotamente.

E isso não é um certificado de garantia.

Embora em minha última sessão, meu analista tenha me perguntado de maneira muito descompromissada:

– Mas não há um mínimo de coisas das quais você possa ter garantia?

Não respondi.

Talvez ainda não consiga responder.

Talvez nunca queira responder.

Talvez queira responder isso mais do que qualquer coisa na vida.

E isso decididamente não é um poema.

 

Mas são tantos elementos que nos atravessam…

O retrato do artista quando clichê.

O tempo.

A moda.

As Torres Gêmeas.

A vitalidade do piloto.

A indústria de esmaltes.

A indústria de roupas.

A indústria de conhecimento.

A indústria de entretenimento.

O retrato do artista quando ainda mais clichê.

A academia.

A academia de ginástica.

A vontade de sair do país.

O sistema de arte.

A resistência.

A TV.

O cinema e seu sonho.

O pop.

O pop.

O pop.

A ignorância.

O bem.

O bem da ignorância.

A dor na coluna.

O imposto de renda.

O plano de saúde.

O biopoder.

O zumbi.

A zumbilândia.

O Brasil.

Brasília.

A dentadura.

O sangue.

A estrada.

A despedida.

A saudade.

O tempo.

O zero.

O nada.

Nova mudança de ritmo.

 

O policial acabou de pegar um copo d’água na geladeirinha que se acha frigobar.

Passou todo tempo no WhatsApp.

Como a maioria.

Saúde invejável deve ter essa gente repleta de amigos.

 

E isso não é uma fala.

– Quem vai se salvar dessa maré? Pergunta Lipovetsky.

O performer precisa sair. Caso haja tempo e desejo pode responder algumas perguntas.

Do contrário, levanta-se e vai embora.

Continuo louco para fumar.

Você também? Qual a boa droga que você usa a todo tempo e que lhe cabe como cruz em família?

 

Será que eu chego?

Tudo muito remotamente.

Esse texto foi totalmente escrito em uma tela de celular ao longo de seis horas.

 

Alexandre Sá não pode ser empoderamento?

 

Obrigado e até a próxima.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

SÁ, Alexandre. “Outros Fluxxxos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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