Clóvis Domingos, ROL: casa-corpo-palavra, 2011. Performance apresentada no evento Jornada Identidade e Migração – O Inconsciente da Casa do Istituto Biaggi na cidade de Belo Horizonte no Brasil. © Arquivo Istituto Biaggi
A questão me surgiu quando fui convidado a participar com uma apresentação artística em uma jornada de psicanálise que se propunha a discutir os impactos da migração no psiquismo dos sujeitos. Hoje vivemos um tempo de muitos deslocamentos e diásporas, e a etnopsicanálise mais a psicologia intercultural visam escutar, estudar e acompanhar as cesuras, angústias e renascimentos que acontecem nas trajetórias daqueles que migram. Questões como identidade, estranhamento, adaptação, língua, desenraizamento, descontinuidade, adoecimento, entre outras, seriam abordadas nesse evento acontecido em outubro de 2011, na cidade de Belo Horizonte pelo Istituto Biaggi [1].
A performance ROL: casa-corpo-palavra (apresentada na Jornada Identidade e Migração – O Inconsciente da Casa) tinha como proposta a vivência de um tempo/espaço em que meu corpo experimentaria o estar perdido, deslocado, somente efetuando ações e relações no presente do ato performático. Uma viagem sem mapa. Uma experiência de estrangeiridade. Eu tinha apenas uma imagem: um corpo carregando uma trouxa (como se fosse uma casa/país que se leva nas costas e tatuado na pele) com roupas (elementos carregados de cultura e identidade), e essa “construção” sendo destruída e refeita ao mesmo tempo, ao vivo, para os outros e para mim mesmo. Mais do que uma apresentação estética, meu desejo era de me colocar em risco, ampliando minha consciência de ser um sujeito dividido e multiplicado, buscando uma desestruturação (como performer) muito próxima a de um imigrante quando aporta num lugar novo e desconhecido. Trata-se de um corpo em crise.
O texto a seguir foi escrito após essa experiência e nele, de forma poética e performática, exponho e reencontro todas as afetações e turbulências vividas naquele dia. Texto estilhaçado como minha sensação após a vivência:
Eu… nasço. Nado. Nada. Navio. Não viu. Não veio. Volto. Voltagem. Vertigem. Virgem. Viagem.
ROL: casa. Corpo. Palavra. O corpo é casa no qual habitam palavras. Palavras são corpos que insistem. Tive uma experiência tão forte nesse trabalho que minha casa sofreu abalos.
Produzo agora uma lista de imagens e um banco de sensações.
O performer é sempre um estrangeiro. Nunca está em terra firme. Amante do perigo, do instante, do estranho, do agora. Faço minha trouxa de roupas e listo cada peça escolhida. Evocação de um ritual materno. Volta a imagem da minha mãe fazendo listas de roupas a serem enviadas para a lavadeira. Carregamos uma trouxa de tradições e traições familiares e culturais. Portamos a casa em nosso corpo. Quero migrar! É bom que a bagagem seja remexida e exposta como vísceras adoecidas e inflamadas.
Meu passaporte é um passa-MORTE para se chegar à VIDA?
Meu corpo inflamado e que inflama AÇÃO!!! O imigrante parte com sua mala: pertences e pedaços. Histórias e memórias. O performer não carrega nada a não ser seu desejo de ESTAR no presente. Derivações subjetivas. Um demorado adeus. O imigrante abandona um território. O performer abandona suas certezas e seguranças. Embarque imediato. Entro no espaço e sinto medo. Bendita perdição! Meu corpo treme… como o estrangeiro que, ao chegar numa nova terra, não sabe o que fazer. Não sei se fico ou se passo!
É perdendo que me encontro!
Solo. Trabalho solo. Em busca de um solo? De um lugar?
ROL: a-palavramento. Apavoramento. A-linguagem. A-linhagem de significados. Livramento. Libertação. Libero grunhidos e sons estranhos. Sou cigarra que canta e performa sua desafinação. Não tem orquestra e nem concerto. Nem conserto. Abraço no desastre. Des-“astre” (fora da estrela e da luz).
Uma desorquestração (no sentido de desorganização) de si para a aparição de um outro. “O imigrante é um atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável” (BORDIEU, 1998, p. 9). E o que é um performer senão um sujeito perdido entre lugares, abrigos conceituais e experimentações práticas? A arte da performance transborda possíveis classificações.
Meu corpo migra assustado pelo espaço. Transformo-me em navio. Empurro a trouxa que vai em direção a duas bandeiras: Brasil e Itália. Não tenho país. Nem pais. Sou órfão de referências. Sou mar revolto. Sou andarilho. Corpo migrante-viajante. O performer é um nômade. Produzo susto. Só descubro o que desejo no ato. É sempre um acontecimento no inesperado e revelador para mim: “o elemento inesperado na performance é inesperado não só para o espectador, um dos vértices da relação comunicacional, mas também e primeiramente para o artista da performance, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado. Já mencionamos antes que não há performance do tipo cópia carbono, nem repetição nesse tipo de arte; há somente mudanças controladas e estruturas invariantes, porém com as mais diversas formas e conotações” (GLUSBERG,2003, p. 83).
Destruo a trouxa fechada. Roupas são espalhadas. Uma lista se inaugura: “esse é meu pai, mio nonno, mi madre, aqui sou eu…”. Vestimentas são figurinos de personagens reais e imaginários. Da minha casa. Meu corpo se corta com uma memória: quando era pequeno em minha cidade do interior de Minas Gerais, me aproximei de dois velhos imigrantes. Uma idosa libanesa e um ancião italiano. Uma criança e dois velhos choravam saudosos seus países perdidos. Eu chorava a minha estrangeiridade sentida em minha própria casa.
Volto à performance: vestir os nus. Em determinado momento, me dirijo à psicanalista e organizadora da jornada e peço para ser vestido. Estou em carne viva. Sinto a nudez e a dor de todos os imigrantes do mundo. Meu corpo invadido de angústia. A mulher me veste, e choro. Todos estão incomodados com o que acontece. O performer, assim como o imigrante, “suscita o embaraço e a dificuldade que se experimenta em pensá-lo” (BORDIEU, 1998, p. 9) e aceitá-lo como ser ondulatório, transitório e errante.
Sou vestido por alguém. Depois de um tempo flutuando perdido, alguém me reconhece. O imigrante pede cuidado e ajuda. “Eu preciso de você. Salva-me da solidão. Quero uma pátria. Dá-me um continente para habitar e existir!”.
Sou vestido por uma mulher. Nova lista de imagens: um pedido infantil. A mãe agasalha o filho. Um corpo em estado de proteção. Um pedido final: quem morre precisa ser coberto. De volta ao solo. Trabalho solo? Em busca de um colo?
Essa performance revela minha vulnerabilidade. A fragilidade de todos que ali estão dói em meu corpo: “a performance e a body art devem mostrar não o homo sapiens – que é como nos intitulamos do alto de nosso orgulho –, mas sim o homo vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre o duplo trauma do nascimento e da morte” (BERGER apud GLUSBERG, 1998, p. 46).
NASCER E MORRER – duas formas de migração na vida. Meu corpo renasce na experiência da performance. Se a idealização é a grande vilã do movimento de quem migra, ela não existe no trabalho do performer. Tudo o que acontece é aceito e vivenciado. Vida e arte numa só ação. Não acredito em sucesso ou fracasso de um trabalho performático. Acredito em necessidade de aventura, de se sentir vivo e pulsante. Movente.
A trouxa aberta libertou cores, formas, cheiros, texturas e memórias. Corpo restaurado. Saúde plena. Agora a casa está mais bonita e leve. Começo uma nova construção. Edifico um ser: performer e eterno migrante. Amar o presente e tentar ficar livre do passado. Um novo caminhar. Migração de desejos. Novas propostas para o próximo momento! Novas performances para o próximo instante!
NOTA
[1] Istituto Biaggi é coordenado pela psicanalista Bernadette Biaggi e desenvolve, entre outras atividades, o PROJETO MIGRANTE, destinado à intervenção clinicopsicológica e à prevenção dos distúrbios mentais provocados pelas dificuldades e sofrimentos decorrentes dos processos migratórios. Ver mais em: <istitutobiaggi.wordpress.com>.
BIBLIOGRAFIA
BORDIEU, Pierre. “Um Analista do Inconsciente”. In: SAYAD A. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
PARA CITAR ESTE TEXTO
DOMINGOS, Clóvis. “O Performer É um Imigrante?”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2013 eRevista Performatus e autor
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