Eu Gisberta

 

Este texto-manifesto de Mãe Paulo faz parte de sua obra Eu Gisberta (2015).

 

Mãe Paulo, Eu Gisberta, 2015

 

Gis.ber.ta

substantivo próprio feminino

 

1) Se a única forma consequente de evocarmos os mortos é cuidando dos vivos, resgatemos aqui o novelo de exclusões que sucessivamente aprisionou a transexual Gisberta Salce, mas que se desfez finalmente com a sua morte, sujeitando o vazio sobre o qual foi forçada a construir toda a sua vida. Judith Butler, em Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?, sugere que as escolhas da vida são práticas sociais, que definem quais vidas serão choráveis quando terminarem. A vida reconhecível de Gisberta foi somente a tatuada pelo tempo em que viveu na cidade do Porto (Portugal), primeiro como estrela em cabarés e boates gays, imitando a cantora Daniela Mercury, depois como um fantasma demasiado presente por conta de uma história de violência e transfobia.

 

2) Canção “Balada de Gisberta”, de Pedro Abrunhosa do álbum Luz, lançada em 2007: Perdi-me do nome, / Hoje podes chamar-me de tua, / Dancei em palácios, / Hoje danço na rua / Vesti-me de sonhos / Hoje visto as bermas da estrada, / De que serve voltar / Quando se volta p’ró nada. // Eu não sei se um anjo me chama, / Eu não sei dos mil homens na cama / E o céu não pode esperar. / Eu não sei se a noite me leva, / Eu não ouço o meu grito na treva, / E o fim vem-me buscar. // Sambei na avenida, / No escuro fui porta-estandarte, / Apagaram-se as luzes, / É o futuro que parte. / Escrevi o desejo, / Corações que já esqueci, / Com sedas matei / E com ferros morri. // Trouxe pouco, / Levo menos, / E a distância até ao fundo é tão pequena, / No fundo, é tão pequena, / A queda. / E o amor é tão longe, / O amor é tão longe / E a dor é tão perto.

 

3) Fragmentos do livro Indulgência Plenária, de Alberto Pimenta, lançado em 2007 pela editora &etc (Lisboa, Portugal): A tua vida / foi o teu pecado / Gisberta (p. 24); E as tuas unhas / e a tua língua / iam passando / iam-se fixando / arranhando / camada sobre camada / a cama doutros corpos / Aliados e concorrentes / reconhecidos velhos / e conhecidos novos / E / sendo também arranhada por eles / e gostando mais de o ser no corpo / que no Espírito / que conservaste intacto e sem malícia / Inatingível / a tudo e a todos (p. 13-14); Então sentas-te / e Procuras a tua mão / para entrares no teu romance (p. 36).

 

4) Primeiro ano do ensino médio, Colégio Zênite, Inhumas, Goiás, Brasil, 2001: “[…] tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo” [1]: complemento-me com pedaços de um espelho partido ao me ver aqui no invisível visível daquela manhã. Não há vida vivida, reina uma substância colorida intocada em meu corpo. Ela profere banalidades que não sei exatamente o que são. A palavra punheta – dita por um garoto mais velho do que eu – foi corrosiva para meu ser como aquele momento era. O beijo de piedade – “você é gordo, mas beijo-te ainda assim” – feria-me ainda por ter sido devorado há pouco tempo; culminava por fim no distúrbio da minha magreza. Havia já em mim o sexo-seco ganhado em anos atrás por aquela mão que me tocou, como existia também a indelicadeza do companheiro de trabalho de meu pai ao me dizer que minhas pernas infantis eram belas. Continua ela a dizer palavras que dizem a mim sobre mim. Sou (re)construído por sua mão. Estou parado, inquieto a olhar sem nitidez tudo o que me rodeia. Ela ainda grita, urra, bate na mesa e, por vezes, apoia-se a ela. AQUI DENTRO DO MEU COLÉGIO É PROIBIDO USAR CALCINHA COR-DE-ROSA. LÁ FORA, VOCÊ PODE USAR À VONTADE. Não entendo o que seria a veste cor-de-rosa que profere, já que tudo em mim superficialmente tornava-se cinza, excetuando a pulseira de cor alaranjada com espetos prateados que estava afivelada em meu pulso. Rebaixar-me simbolicamente perante uma sala de trinta e quatro alunos, o mesmo número da página de meu livro, foi a tarefa da diretora durante aproximadamente uma hora. Sua missão intercalou-se entre as aulas de biologia e de física. Sonhei essa noite que podia voar e aprimorava isso com o meu corpo sobre corpos assombrações, vultos, de mortes não morridas, meu Deus. Alguém me tira daqui, por favor. Matheus, onde jaz você em mim que não se revela na realidade? Eu apenas te amei e você acovardou-se por isso. “Se eu soubesse que o amor te envaidece / Não teria dado a chance que eu te dei.” [2] Sensibilidade já estacada que arca com tudo que me acontece. Uma pessoa jaz no fundo do poço, gotas escorrem do meu nariz e caem sobre o diário, que permaneço a olhar onde escuto tudo o que me é dito. Velha maldita como as plantas víboras que se torciam no jardim daquele colégio.

Estou cansado, apenas isso. NA SUA FICHA DE MATRÍCULA ESTÁ ESCRITO SEXO MASCULINO E NÃO PONTOS DE INTERROGAÇÃO, EXERÇA SUA FUNÇÃO. O cansaço deixa-me estático, mudo como um grito sem cor, sem fluxo sanguíneo. Cospe-me palavras duras ainda assim como a eternidade de uma morte que não chega em mim. Não joga pedra na Geni; dói muito, machuca muito. Apoio-me no meu passado escrito naquele momento como armadura dessa guerra. Amores, sofrimentos, emoções, desejos, sonhos, esperanças etc. encerram-me em mim. Minha voz torna-se o sussurro de uma mulher que canta para a criança que quase dorme no berço do quarto construído-concebido-logicamente para sua sobrevivência normativa. “É de graça, coma que é por nossa conta, esse apetitoso salgadinho!”, haveria ela de me dizer sorrindo daqui duas semanas por conta do medo de a sua brincadeirinha ter ultrapassado o limite, já que o que me feriu foi apenas eu existir.

A terceira frase memorável de todo o discurso instaurado nesse campo de batalha perdeu-se com o tempo em meu ser como o branco imaginado de um segundo após outro segundo marcado pelo ponteiro do relógio que anunciaria a qualquer momento o bem-aventurado recreio. “Não fugir, mas ir” [3] de encontro ao incomensurável destino. Corro, mas não consigo partir; o corredor com as vozes humanas permeiam ainda quando vejo o portão trancado especialmente por ela em mim.

 

5) …silêncio, SI-LÊN-CIO… Em fevereiro de 2006, treze adolescentes, parte deles alunos da Oficina de São José – instituição localizada na cidade do Porto e encarregada de acolher crianças, mantinha ligação com a Igreja Católica e era parcialmente subsidiada pelo Estado português –, agrediram, torturaram e abusaram sexualmente de Gisberta durante vários dias na construção inacabada da avenida Fernão de Magalhães, onde ela vivia em situação de indigência. (Um jovem branco e loiro de dezesseis anos, que se sentia protegido pelo grupo dos treze adolescentes, entra em cena para pedir a eles para pararem, mas com uma total ausência de compaixão ao omitir auxílio à Gisberta.) No final dos dias, seis dos jovens voltaram ao local e, achando que ela estivesse morta, resolveram se livrar do corpo. Primeiro pensaram em queimá-la, mas depois acabaram mesmo por decidir jogar o corpo de Gis num poço de 10 metros de altura, na esperança de que ele afundasse. A BRASILEIRA acabou morrendo afogada… 46 anos, pobre, transexual, profissional do sexo, toxicodependente, soropositiva… No dia 22 de fevereiro, um dos jovens teve uma crise de consciência e contou o que tinha acontecido a uma diretora de turma. No mesmo dia, o corpo foi retirado do poço pelos bombeiros. (Entram os brancos e os ricos Estado e Justiça portugueses a tentar culpabilizar a vítima e “abafar” publicamente o caso.) O julgamento começou no dia 3 de julho e durou 29 dias… “Inocentes criancinhas” em “uma brincadeira de mau gosto que correu mal”. MEU NOME É GISBERTA. FUI TORTURADA, VIOLADA, ASSASSINADA. PARA A JUSTIÇA, EU MORRI AFOGADA E A CULPA FOI DA ÁGUA.

 

6) “Apesar de tudo, [a guerreira] morreu com um sorriso” [4].

 

7) Gíria “fazendo a Gisberta”: expressão para designar uma criança enlouquecida que cantava e dançava Daniela Mercury no último volume na casa da bela avozinha, como eu.

 

8) …há algo muito errado, pois o abismo está nos corações das pessoas… é como uma visão intimista de viver um sonho enquanto se está preso dentro dele, no qual a solidão e a dor se encontram e ficam ainda mais intensas depois que as luzes se apagam.

 

9) Eu + Gisberta = Eu Gisberta.

 

 

NOTAS

[1] LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 1. ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 20.

[2] Canção “Chama”, de Nila Branco, do álbum Parte II, lançada em 2001.

[3] LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 1. ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 196.

[4] “Morte de Gisberta fica sem culpados”. Jornal Correio da Manhã, Lisboa, 28 de março de 2008. Ver em: <http://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/morte-de-gisberta-fica-sem-culpados>. Acesso em: 12 de novembro de 2015.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MÃE PAULO. “Eu Gisberta”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

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