Entre os dias treze e dezenove de abril do ano de 2014, nós, do Coletivo ES3, realizamos uma residência artística no Instituto Hilda Hilst, Casa do Sol, a convite de Mãe Paulo e Tales Frey, como ação integrante da Mostra Performatus #1.
Hilda Hilst (1930-2004), prolífera e voraz escritora brasileira com grande produção em prosa e poesia, e a sua extensa obra foram o campo-sujeito em que aceitamos nos lançar. Como seta imprecisa e de sentidos latentes que é o corpo, saltamos em direção ao trabalho literário de Hilst com nossos olhos de performers.
O lugar em que caímos, onde a força do impulso inicial para o voo deitou-se no chão, foi o invisível, mais precisamente o incognoscível deus, leitmotiv de tantas páginas das criações literárias de Hilst.
Como a própria autora coloca em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (1999), a obra dela, ou como ela preferia, o trabalho dela é uma extensa procura por deus. Mas que deus é esse a que nos referimos quando olhamos para os trabalhos de Hilda Hilst?
Para deixar mais clara essa questão ao leitor, apresentamos abaixo alguns dos nomes dados a deus por Hilst, que tivemos o privilégio de mapear durante nossa residência: Cara Cavada, Grande Obscuro, Grande Corruptível, Lúteo Rajado, Soberano, Porco-menino, Grande Perseguido, Tríplice Acrobata, Cara Obscura, O Sem-Nome, Haydum, Cara Mínima, O Grande Rosto Vivo, Ominoso, Cão de Pedra, Grande Corpo Rajado, Grande Perseguidor, Sorvete Almiscarado, O Incognoscível, Querubim Gozoso, Cadela de Pedra, Construtor do Mundo, Sumidouro, O Isso, O Mudo Sempre, O Semeador.
Os nomes dados por Hilst a deus, e que nós chamamos, parafraseando a autora, de “pétalas de carne”, atuam como índice potente de uma figura decomposta, suposta e suspeita que paira como mito encarnado sobre a vida e o pensamento humano. Paira não como senhor, mas como corpo profano, fonte não apenas de luz e brandura, mas de obscuridade, violência e nojo.
Mais do que um objeto inalcançável, deus é, no trabalho de Hilst, o mito do próprio questionamento da vida finita e esgotável. Mais processo do que objeto, a figura divina não é assumida, não é devotada pela obra da escritora. O sincero golpe que a pena de Hilda Hilst dá na ideia de deus, e na própria vida imanente que compartilhamos, é o de tomar o caminho não da prova empírica da existência desse deus, mas de pensar que como mito e suposição ele sobrevive em nosso pensamento, como vírus ele está contaminado na maneira como concebemos o nosso imaginário.
Nesse sentido, retomando a percepção de mito vivo de Mircea Eliade (1972), deus sobrevive como mito, a partir de diversas narrativas e formas, dentro da estrutura do pensamento ocidental. Não apenas esse deus compreendido dentro da mitologia cristã, mas o princípio sagrado (do lat. sacratu) do secreto, do segredo, protegido de quaisquer profanações, como sugere a origem etimológica do termo. Segundo o autor, o mito não é uma narrativa isolada, não é espaço confinado, é pensamento incorporado, palavra-carne de nossas operações simbólicas. O mito, para ser mito, é antes performático, é incorporação.
Muito embora aparentemente reste a contradição em termos entre a compreensão de sagrado e de mito, segundo as perspectivas apresentadas, devido a diferenciação de seus modus operandi (o mito pela incorporação, e o sagrado pela proteção contra profanações), o pensamento mais atento a essa questão demonstra justamente o contrário: a ideia fundante do sagrado cria uma mítica do inalcançável, uma mítica do infindável, e define um nome para o que é inominável, para incorporar o inominável.
Não é à toa que um dos nomes dados por Hilst a deus é o “Incognoscível”, aquele que não pode ser compreendido, aquele espaço da experiência viva que não se pode perceber. Assim, criamos no mito vivo do sagrado uma forma de incorporar a ausência-presença de uma possível esfera insondável de vida.
Todavia, se falamos do trabalho de Hilst, é necessário antes compreender que, como inquieta escritora que foi, ela não abordou o sagrado em seus diversos livros de uma distância segura, mas antes de tudo insistiu num esforço sanguíneo e carnal de romper o véu dessa mítica. Suas estratégias, desde a escrita compositiva de múltiplos planos e vozes, até a indefinição estrutural e estilística na mistura de questões e proposições, estão distintamente marcadas em obras como O Rato no Muro, Ágda Qadós, Fluxo-Floema, Poemas Malditos, Gozosos e Devotos, para citar apenas alguns.
O esforço de expor e atravessar com o toque o sagrado é tão potente que em certos momentos a escrita de Hilst chega a quase fugir de um espaço narrativo, adentrando um fluxo fragmentário e complexo de escrita, no qual quase abandona o dizer num esforço incisivo por “mostrar” esse sagrado. Um exemplo desse fluxo é esse pequeno trecho de Qadós que podemos ver abaixo no manuscrito original:
Manuscrito da obra Qadós, de Hilda Hilst (escrito em 23 de setembro de 1971) [1]
No fluxo intenso de imagens, figuras em substantivos simples e compostos, em metáforas e oximoros, vemos uma escrita que se esforça, tal qual os diversos nomes dados a deus por Hilst, em grafar um vislumbre, mesmo que instantâneo, do sagrado, do Deus-mito que assombra, com sua mística, o pensamento.
No espaço do que é indizível, resta o esforço de mostrar o indescritível estado de coisa, resta a relação pictórica em que a proposição lógica não pode mais dizer-se. Esse apontamento advém de Ludwig Wittgenstein (1968), um dos pensadores admirados por Hilda Hilst, e de forma pouco imprevista parece destacar bem o labor da escritora brasileira em seu (des)contínuo impulso para encontrar o modus vivendi de um mito indizível apresentado pela existência do sagrado.
A percepção desse deus, abandono-criação, gozo-proibição, vida-finitude, amor-castração, com o qual Hilst batalha bravamente em sua literatura, e que já atordoara a outros grandes nomes como Schopenhauer, Nietzsche, Kafka e Beckett, opera com a dúvida, e busca a carne desse ser-mito presente em tantas culturas e apoderador de tantas forças. É um deus morto-vivo, fantasmático e suspeitosamente inexistente esse que por tantos nomes Hilst chamou.
Olhar para esses tantos deuses é de certa forma pensar naquilo que diz Becker (2007) sobre a individualidade dentro da finitude, pensar em como o corpo e a vida são estranhos e falíveis. Mas com Hilda e Nietzsche como copilotos, é também pensar que é nesse espaço que está toda a potência do humano, do profano, para ser a própria medida da experiência de si.
A finitude da vida criaria a borda de uma mítica do inalcançável, personificada na história humana por muitos deuses de barro, ouro, mármore, bronze, gesso. Todavia, esse deus na escrita de Hilst, em sua ausência/presença, aparece como uma figura frágil, que depende do homem e dos animais, que busca sobreviver através de nós, das palavras e narrativas que criamos, de nossa carne e nossa morte, é um deus-mendigo, que, como mito, precisa do nosso corpo para influir sua presença.
Não nos referimos neste texto a deus como figura celeste, nos referimos às ideias de deus que insistimos em evocar culturalmente através dos tempos, doando a elas mais ou menos poder sobre o mundo natural, projetando sobre elas maior ou menor influência das emoções e política humanas. Dessa feita, é nesse ponto em que nos encontramos com Hilst, na busca de uma ideia que persiste, e nos porquês de seu persistir.
É nesse espaço que devoramos a obra de Hilda em busca dos nomes que ela deu a deus, aos deuses. Nomes que existem como índices de uma ideia multiforme e inconstante, como marcas daquilo que projetamos sobre as potências da vida tal qual as escolhemos entender, e nos desvios que o movimento da vida faz do nosso entendimento.
Na mítica judaico-cristã, inventar nomes, dar nomes às coisas para que elas pertençam à linguagem e, portanto, ganhem ações e características próprias e compartilhadas, é reconhecido como pertencente a uma mítica do divino. Nessa perspectiva, o saber vem da linguagem como espaço de reconhecimento, e ser é ser na linguagem, contudo, assim como há um horizonte provável de eventos, um limite do universo visível no cosmos, há também a matéria escura na linguagem, coisas sem nome, coisas indizíveis. Como propôs Wittgenstein, há o calar do que não sabemos dizer, a falha da lógica da palavra, a falha da significação intrínseca e extrínseca da linguagem como espaço em que coexistimos e criamos significado e entendimento.
É nesse espaço que os neologismos, as cacofonias e prosódias impregnadas no esforço criativo de Hilst, na sua escrita sobre deus, apontam para uma sondagem no universo do indizível, na tomada do fogo prometeica não para alumiar a existência de um domínio divino, mas para criar sombras nessa ideia fantasmática que culturalmente nos persegue.
Foi dessa tomada do ato de nomear que nos ocupamos na Casa do Sol, a casa de Hilda Hilst e de tantos com quem conviveu e a quem acolheu. É nesse ínterim que o processo criativo de que falamos a seguir surgiu e aconteceu.
Do Processo
Let us leave theories and return to heres here. Now hear.
James Joyce, Finnegans Wake
Tao dos labirintos. Caminho que questiona a si mesmo. Se ser, si ser. Os movimentos da escrita de Hilda lapidam com golpes de um pêndulo irrefreável a possibilidade de um deus, de muitos deuses, que também são maldade, que com, ou sem, seus politeísticos panteões resguardam em sua carne ausente e suspeita aquilo que há em nós que causa nojo a nós mesmos.
Nas biografias de santos presentes na biblioteca pessoal dela, nos diversos símbolos de tantas religiões que coabitam as mesas da sala da Casa, nos símbolos místicos espalhados pela casa, uma pergunta no oco, a pergunta da hipótese de Deus, ou de um deus, assim minúsculo, ou ainda de um deus-Lázaro, morto que há de voltar.
Nos dias em que estivemos na Casa do Sol já tínhamos uma ideia tão fixa quanto nebulosa em nossa mente: discutir através da performance e da fotografia os nomes que Hilst atribuiu a deus.
Nas diversas leituras que realizamos durante os dias de nossa estada, ficaram muitas imagens e princípios de ativação de certos nomes que Hilst criara para deus. Esses nomes, que há muito nos inquietavam, compunham, em nossa leitura, um vasto universo imagético, e, mais do que isso, não consonavam para remontar uma figura, mas produziam metáforas e comparações de um panteão profano de seres, cores, sabores e corpos.
Estar ali, naquele lugar, mudou o que havíamos lido. A Casa do Sol, o espaço em que nos encontrávamos então, e em que Hilst tinha vivido, preservada em vários dos seus ambientes, nos parecia uma voz. Se antes pensávamos na escrita, viver na casa nos deu um corpo ao qual olharmos, e ao vermos o corpo surpreendente nos foi perceber que olhávamos o trabalho de Hilst.
Hilst não se mudou para a Casa, nem a herdou de alguém, ela projetou a casa para que ela pudesse criar, como nos foi colocado por Jurandy Valença, anfitrião do Instituto Hilda Hilst e um dos moradores da Casa do Sol nos dias atuais e durante certo período da vida da escritora.
Os arcos, o jardim, os canis, a figueira, os portões, tudo foi escolhido por Hilst para construir esse que era o espaço que ela fez para criar seu trabalho escrito. Como o corpo dos deuses nomeados por Hilda, a Casa não perdia em seu aspecto grotesco, de forma nenhuma por sua aparência, ou cuidado, que são irretocáveis, mas por ser um corpo de mil gargantas, de mil vozes, por ser um ser que respira em suas salas, corredores, cozinha, quartos, portas, bibliotecas e jardins, cada qual com sua voz, ressonada por seus objetos e seus materiais.
Lemos novamente os escritos de Hilst na Casa e em nossa leitura encontramos outros índices performanciais saídos dessas vozes, tornando a leitura do texto, como propôs Paul Zumthor (2000), muito mais do que a palavra em si, mas uma experiência corporificada cercada por aspectos exteriores que criam a singularidade de sua performance.
Ler em voz alta, ler dentro do corpo da sala, dentro do corpo do quarto, dentro do corpo da varanda, criou em nós outro grau de experiência do texto de Hilst. A presença do corpo, não apenas do nosso, mas também o da Casa do Sol, produziu gaps em nossas leituras anteriores, e, nesse tempo de residência, nos encontramos com muitas outras vozes, que, com seus sons, tons e ritmos, nos levaram a diferentes imagens que pulsavam dos nomes que a escritora criou para dizer-mostrar deus.
Partimos do mapeamento de nomes e desenhamos insistentemente todas as imagens e ações que nos vinham à cabeça, e, após dois intensos dias na Casa, criamos uma cartografia desejante de imagens e ações que gostaríamos de realizar naquele momento.
Vinte e sete imagens foram propostas, compostas apenas com objetos, materiais e espaços da Casa, e dia após dia caminhamos pelos diferentes ambientes-vozes desse lugar pensando-acionando um espaço imagético dos nomes escritos por Hilst, contaminados obvia(necessaria)mente pela nossa leitura.
Imagens, estátuas, folhas, cascas, galhos, espinhos, telhas, pedras, peças de xadrez, poças de água, contas de cortina, casa de passarinho, cachorros, lamparinas, escadas, carvão, grades, água, miniaturas, plantas, espelhos, livros, dentre tantos outros objetos, seres, vozes, foram sendo movidos, tocados, acoplados, unidos, encontrados nesse processo, entre dias e noites de chuva e sol.
Entre imagem, escrita e leitura, nossa vontade não era a de produzir uma iconografia da obra de Hilst, mas performar com e a partir das vozes e corpos que nos encontraram na Casa do Sol.
Em O Isso temos a iminente questão filosófica desse ser que é o que é, pois é evidência de si e é em si tudo o que se pode ser. Um deus que brota de ser si mesmo como conceito para se preservar, que se crava no pensamento como axioma invencível, porque é origem e previsão de si mesmo, e, na sua infinitude endógena, procria sua existência.
Coletivo ES3, O Isso, 2014
Já em Cara Cavada temos o deus sem face, sem identidade, que não se mostra e está imiscuído e protegido dentro de tudo o que não se sabe, do que não conseguimos evidenciar, mítica de um princípio de criação total que é existente na mesma medida em que é ausente para todos, que é abstração total ao pensamento que o procura na hipótese de uma natureza essencial e definitiva do bem, ou do mal.
Coletivo ES3, Cara Cavada, 2014
Como dissemos, em cada nome encontramos um grupo de aspectos imanentes de uma mítica do sagrado e, pulso a pulso, a profanamos, direcionados por Hilst num espaço daquilo que como humanos criamos para ter posse do que consideramos inalcançável.
E nesse/para esse processo são tantos os questionamentos que emergem:
Que sopros de vida criamos para deus? Por que insistir na ideia de deuses? Como existem os deuses? Deuses morrem? Onde vivem os deuses? Por que nosso pensamento culturalmente reitera a possibilidade de deus? Que perspectivas filosóficas projetamos em deus? Do que se faz um deus? Qual o cheiro de um deus? O que deuses comem? Como os deuses se multiplicam? Onde deus começa? Onde deus se esconde? Deus está no câncer assim como no amor? O que os deuses dizem? Onde se sepultam os deuses? Por que os deuses criam se neles todas as coisas já são? Deus é o seu próprio contrário? O que é em nós para que os deuses continuem a ser? Como acabar com o juízo de deus? Deuses podem perguntar “por quê”?
Muitas são as questões, ironias e provocações que os nomes que Hilst deu a deus sugerem e implicam, e em cada um deles há uma partícula explosiva que questiona a nós como performers dessas ideias dentro de nossos contextos políticos, afetivos, econômicos e culturais específicos.
No processo de busca desses corpos profanados inscritos nas páginas do trabalho de Hilst, descobrimos também que em certa medida nossas questões permaneceriam questões, pois a obra de Hilst é das intensidades do corpo, e não da metafísica do inefável, e por isso mesmo não se resolve [2].
E eu poderia dizer que sou meu corpo?
Se eu fosse meu corpo ele me doeria assim?
Se eu fosse meu corpo ele estaria velho assim?
O que é a linguagem do meu corpo? O que é a minha linguagem?
(HILST, 1977)
NOTAS
[1] Ver em: Portal Cultural Hilda Hilst (Instituto Hilda Hilst). Disponível em: <http://goo.gl/vs6ima>. Acessado em: 30 jul. 2014.
[2] Para mais informações sobre o processo criativo do trabalho, acesse: <http://coletivoes3.blogspot.com.br>.
BIBLIOGRAFIA
BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1972.
HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.
________. Poemas Malditos, Gozosos e Devotos. São Paulo: Massao Ohno / Ismael Guarnelli, 1984.
________. “Das sombras”. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 8, p. 25-41, out. 1999. Entrevista.
________. A Obscena Senhora D. São Paulo: Globo, 2001.
________. Da Morte. Odes Mínimas. São Paulo: Globo, 2003.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus Logico-Philosophicus. Tradução de J. A. Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ Edusp, 1968.
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Educ, 2000.
André Bezerra é mestre em performance arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, performer integrante do Coletivo ES3, e criador/produtor do Circuito Regional de Performance BodeArte.
Chrystine Silva é mestre em performance arte e dança pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, performer integrante do Coletivo ES3, e criadora/produtora do Circuito Regional de Performance BodeArte.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
BEZERRA, André; SILVA, Chrystine. “Pétalas de Carne: Os ‘Modus Vivendi’ de Deus entre a Palavra e o Corpo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, Out. 2014. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2014 eRevista Performatus e xs autorxs
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