Começo a contar sobre a minha existência na Bahia.
Salvador, 28 de fevereiro de 2013. Oito horas da manhã. É verão. Meu corpo transpira na cama. Essa transpiração é como uma gosma que cola no lençol. Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Começa a minha angústia, acordo assustada, me levanto. Meu corpo nesse momento palpita como um sino que acaba de badalar; ando de um lado para o outro. Andar, naquele momento, fazia meus pensamentos se deslocarem como o meu corpo de um lado para outro. Era importante andar para refletir, refletir em movimento. A casa tinha sensação térmica de um forno a 210°C; um calor imenso. Nesse momento, vivo na comunidade Vila Eliseu, no centro de Salvador; sou uma forasteira nesse lugar, faz menos de seis meses que vivo aqui, qualquer movimento/ação/intenção que muda o cotidiano provoca alteração no espaço e aumenta a capacidade de diálogo/comunicação com as pessoas que vivem nele.
Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou… Quais seriam as ações que efetuaria naquela cidade? Como produzir um diálogo? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou…
As ações começam a ser esboçadas, a performance é lançada no papel da vida. É assim que construo todos os dias, uma camada de vida que diz muito sobre a minha subjetividade e também sobre as minhas escolhas na performance art. Além de compor com intenções, ideias e experiências, é assim, amontoando vida e performance, que ando por espaços que constroem e destroem meus afetos, lapidam minhas memórias e bagunçam minhas escolhas. Meus pés ocupam as frestas, eles sentem cada passo; somente a experiência do meu corpo pode dar conta de tudo isso que vivo durante as ações performáticas e, principalmente, diante da vida/arte ou arte/vida. Meu corpo se modifica a cada instante de tempo. Meu corpo pulsa. Meu corpo age, meu corpo performa. Como efetuar deslocamentos de ações? Como relacionar corpo, estética e política através de microações? Como criar poéticas com micropolíticas? Como não falhar, sabendo que isso pode acontecer a qualquer momento? Essas questões são propulsoras para o planejamento das minhas ações em arte e vida. Elas pulsam a todo minuto, a todo momento, as respostas saem como outras questões. E muitas vezes elas se tornam ações. Será que existe apenas uma resposta para a mesma intenção?
Tinha certeza de que praticaria performance e de que seria o momento de lançar minhas questões sobre arte, vida e política. Essa é a maneira que estabeleço um diálogo, sendo assim, pressuponho que posso dinamizar nossas relações e maneiras de pensar com o corpo e seu contexto e fortalecer uma das potências da performance: ação em tempo real. Não sabia muito sobre o meu destino, sabia que haveria a terceira edição de um encontro (FIAR – III Festival de Intervenções Artísticas do Recôncavo); conhecia pouco a cidade de São Félix, mas já havia apreciado sua vida noturna em outra ocasião. Com tenacidade, lancei-me à ação de andar com peruca e óculos escuros. Esse é um dos meus programas [1]. Ação performática como possibilidade de experimentar estados, provocar contaminações, reiterar o caos e gerar instabilidades de diversos graus. Eu acreditava que poderia provocar uma intervenção no espaço, mas não sabia que a minha provocação seria recebida com tanta intensidade. Ao sair de casa, a vizinhança intriga-se com olhares curiosos e, soltando algumas piadinhas, os moradores da comunidade se manifestam com a minha presença: “Que porra é essa?”; “Que que é isso?”; “Por que você está fantasiada se acabou o carnaval?”; “Pra que você vai sair vestida desse jeito?”; “Qual a função dessa peruca?”; “Isso ‘né’ mulher …” – esses foram os ruídos que surgiram durante a primeira aparição na rua, ou melhor, na comunidade em que morava. Ali começo a construir a ação.
Após essas primeiras interferências públicas, meu corpo começa a perceber quais os possíveis diálogos e se prepara para traçar uma atitude a fim de se defrontar com o desconhecido. Sinto meu corpo palpitar, o tônus se modifica e a minha presença no espaço também, parece que foi ativada uma bomba relógio; as sensações corpóreas eram as intensidades que serviam de potência para atitudes e conversas estabelecidas com as pessoas em trânsito e que, de alguma forma, estabeleciam um contato (olhar, falar, seguir, xingar). A memória que cada interlocutor acessava diante dessa figura (eu) deslocada em seu tempo/espaço era também argumento para o meu posicionamento, assim como as pessoas que reagem diante das provocações são os agentes da proposição, esses que ativam a existência e um diálogo eminente no fazer da performance que proponho; um diálogo em tempo real.
Na rodoviária, no guichê para comprar passagem para São Félix, as atendentes se espantam com o meu visual; elas comentam entre si alguma coisa. Não posso ouvir o que elas dizem, mas os olhares denunciam que não compactuam com a minha imagem, apesar de serem cúmplices da minha ação. Na espera do ônibus para São Félix, as pessoas na rodoviária comentam umas com as outras sobre o meu modo de estar. Com peruca branca estilo colonial e óculos escuros, provoquei curiosidade em todos que ali transitavam. A ação performática, como um acontecimento naquele tempo/espaço, modificava a rotina daquele ambiente de chegadas e partidas. Ser e estar deslocada dos padrões estabelecidos pela normatividade social, causava um incômodo geral.
Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso Corpo Sem Órgãos, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. (DELEUZE e GUATTARI: 1992, p. 11)
Meu corpo vibra. Performar um programa de ações é uma possibilidade de lançar questões, ou melhor, me lanço no espaço, aproveito todas as fissuras, coloco meu corpo em risco diante de todos os preconceitos e questiono todos os adjetivos lançados sobre ele. Provoco o diálogo em tempo real. Nessas ações, ressalto meu corpo nu e incito um posicionamento político e estético diante das normas vigentes. Lanço meu corpo, exibo minhas partes mais íntimas, questiono todos os adjetivos lançados sobre ele de forma artística e convido quem estiver por perto para ser cúmplice da minha ação.
“Que que é isso?” – Uma grande fofoca se instala na rodoviária. Meu percurso até São Félix foi movido por interferências de várias naturezas. O diálogo foi estabelecido com os outros passageiros durante a viagem. A cada parada, durante o trajeto, qualquer pessoa que se deparava com a minha figura demonstrava estranheza. Ação em tempo real, sendo alimentada por todos, a performance estabeleceu um diálogo, criou relações e possibilidades de pensar o corpo e seu contexto. Foi a viagem mais divertida que fiz em toda a minha vida.
Ao descer do ônibus em São Félix, sigo caminho ao Centro Cultural Dannemann. Até chegar no espaço, percebo e sinto os olhares curiosos das pessoas da cidade. Os olhares eram como metralhadoras de guerra, sentia por todos os poros de forma a atravessar minha percepção. Nesse momento, meu corpo se modifica, se apresenta de outra forma. Meu corpo cria uma estratégia de guerra para se defrontar com o desconhecido. Minhas mãos suam, meu corpo treme. Ele se impõe no espaço, de forma a confrontar os padrões. Sigo andando! “Que que é isso?”
Só entro no jogo.
Chego ao Centro Cultural Dannemann, é hora de bate-papo. O tema é “As Redes Colaborativas de Arte”, os debatedores são: Luis Parras – Grupo de Interferência Ambiental (GIA)/Bahia; Milena Durante – Experiência Imersiva Ambiental (EIA)/São Paulo; Patrícia Francisco – artista plástica e cineasta/Rio Grande do Sul; e Rosa Apablaza – DESISLACIONES/Chile. Acompanho as conversas, me distraio. Vejo um olhar, meu rosto está suado e uso óculos escuros. Ouço uma risada. Vejo e finjo que não é comigo, continuo com o mesmo semblante e sentindo meu corpo transpirar, pulsar, tremia de medo. Lançar-me num ambiente em que a discussão é intervenção urbana, me causou um pequeno desconforto. Sentia os olhares de todos os presentes. Meu corpo se transforma numa bomba de ansiedade, fico roendo unhas. Após a apresentação de cada um dos participantes no bate-papo, houve a abertura para o público ali presente. Aproveitei o ensejo e fiz algumas perguntas. E ficava um mistério no ar: “Quem é essa figura de peruca branca e óculos escuros? Por que ela está assim? O que é isso? Pra que serve isso? Isso é arte?” Essas foram algumas das perguntas enunciadas pelo “senso comum” espantado com a minha presença, e outros tipos de interferências surgiram na pequena cidade de São Félix no Recôncavo Baiano.
Musa Mattiuzzi na terceira edição do Festival de Intervenções Artísticas do Recôncavo (FIAR) na cidade de Cachoeira (BA, Brasil) em 2012. Fotografia de Mark Dayves
No segundo dia do FIAR, me lancei no espaço de forma excêntrica. Atravessei a cidade de forma sensual, andava rebolando. Usando peruca rosa, óculos escuros e um corpete de oncinha. Seguia sempre andando e rebolando em direção a São Félix. Passava pelas ruas sem olhar as pessoas, mas percebia seus movimentos em relação a minha presença sensual. As pessoas falavam, gritavam. Um grupo de homens que estava sentado em frente à rodoviária me aplaude. É o ápice da interação. Sair na rua usando corpete de oncinha e peruca rosa tornou-se um acontecimento. Meu corpo é um acontecimento. Meu corpo invadiu aquele espaço e intervenho de forma a atacar o cotidiano das pessoas das cidades de Cachoeira e São Félix. Aqui, utilizo a palavra ataque, porque a experiência que estava provocando, naquele ambiente, possuía uma força bélica. Meu corpo nesse momento era uma imposição para quem o defrontava.
Todos os dias, meu programa de ações se alterava, pois me lançava a uma experiência desconhecida; de acordo com a interferência das pessoas, meu corpo tomava outra posição no espaço, alterava o tônus. Além disso, esbocei a ação pensando em alternar as perucas com cores e cortes diferentes; corpete de oncinha, óculos e sapato sempre o mesmo. No terceiro dia do encontro, foi a maior sensação intervir nesse espaço que a cada dia ficava mais conhecido para o meu corpo. Estava sendo observada por todos, fazia microações durante meus trajetos. Arrumava a peruca, abria bolsa, acendia cigarro, retirava parte do corpete da bunda, enfim, “tocava o terror” com pequenas ações. Quando queria interagir com as pessoas, perguntava as horas ou pedia informações para me localizar na cidade. Nesse dia, aconteceu algo inusitado. Era fim de turno de uma escola, apareceram cinquenta crianças de aproximadamente 8 a 12 anos de idade que me acompanharam até a rua principal de Cachoeira rindo muito da minha aparência e falando coisas de seu imaginário – “Olha a sereia do mar”, “Credo, o cabelo dela é roxo”, “Que roupa feia”, “Tia, você vai onde assim?” Foi um dia curioso, não esperava o fim de turno da escola. No terceiro dia, já acostumada com a cidade, tive que lidar com essa interação inesperada. Meu corpo se reorganiza com novas informações, minhas mãos e pés suam. Sempre submeto meu corpo às situações, confronto meu corpo à reação da audiência; um componente chave dessa experiência se dá na forma de atenção mental ou até mesmo efetiva: tocar na obra (em mim). No momento da caminhada, tive a sensação de que poderia ser tocada por uma das crianças. Era muita euforia, era muita interferência sonora, eram olhares.
O performer não improvisa uma ideia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja pagar alguém para realizar ações concebidas por ele ou convidar espectadores para ativarem suas proposições). Ao agir seu programa, desprograma organismo e meio. (FABIÃO: 2008, p. 237)
As interferências das pessoas sobre o meu corpo e as experiências que, no momento da ação, me atravessavam, são as respostas da comunicação que estabeleci durante o percurso na cidade de São Félix e na de Cachoeira. O meu corpo é a minha fala, e o espaço que ocupo compõe os modos de comunicação.
No mesmo dia, após atravessar a ponte entre as cidades, me deparo com um grupo de homens sentados em frente a uma borracharia. Eles me olham, desejam o meu corpo suado; era assim que via os seus olhares de desejo sobre o meu corpo. Num primeiro momento, senti um incômodo, mas segui meu caminho andando, rebolando, provocando mais a situação de ser desejada. Chego ao Centro Cultural Dannemann, ia acontecer o último bate-papo do encontro. Sento numa cadeira de praia coletiva, acho engraçado e logo imagino que é um objeto de intervenção urbana. Chegam mais pessoas, começamos uma aproximação. Conversas sobre o calor, sobre a cidade e as atividades que estavam acontecendo começaram a rolar, pareciam não ter nexo tudo o que estava acontecendo ali. Mas era a maneira como as coisas seguiam estabelecidas naquele lugar. Nesse instante, um rapaz começa a amarrar uns tonéis com cordas. Minha curiosidade não permite o silêncio, e logo pergunto: “O que você está fazendo?” Ele sorri e se apresenta: “Muito prazer, eu sou Píton” Eu faço um trocadilho e dou risada: “Sem prazer, Michelle.” Em seguida, vejo o grupo de homens na borracharia. Eles estão acenando. Me levanto e vou até lá, e constato que eles estavam realmente acenando pra mim.
Chego na borracharia, todos se apresentam pra mim. Não lembro o nome de ninguém, mas lembro da nossa conversa. Eles estavam comemorando aniversário, tomando cerveja e celebrando a vida. Foi quando um deles me perguntou: “Por que você está na rua gostosa desse jeito?” Novamente, sinto meu corpo palpitar; estava diante de uma situação delicada e não sabia como resolvê-la, e nem responder imediatamente ao que aquele homem havia me perguntado. Isso que descrevo foram apenas segundos. Logo lancei a resposta. “Pra saber se os homens sabem se comportar diante de uma figura gostosa.” Todos riem nesse momento; aqueles segundos de tensão foram quebrados. Eles me oferecem um copo de cerveja e uma cadeira. “Aproxime-se, fica um pouco conversando com a gente, não vamos fazer nada. Só vamos te desejar com os olhos.” Aceitei o convite. Ficamos conversando sobre a minha roupa, de onde sou, por que sou, e sobre a performance. Foi quando me posicionei diante daqueles homens que me desejavam com o olhar. Como performer, utilizo elementos da minha biografia como situação fundamental. Gosto de lançar meu corpo para o outro, gosto de saciar o desejo do corpo com o corpo do outro. Essa e outras proposições com o meu corpo evidenciam minhas características, exibem meu tipo, ou melhor, o estereótipo social que cabe a mim dentro das classificações sociais. Esse foi o meu discurso, sem essa formalidade. Foi realmente um encontro notável. Fiquei sentada em frente à borracharia com corpete de oncinha, peruca e óculos escuros com um grupo de homens me desejando. Eu ali, falando sobre a minha experiência de vida e sobre a performance. Antes de sair dessa conversa, tirei fotos com todos eles. Foi uma experiência no mínimo curiosa, queria saber o que se passava na cabeça dos transeuntes diante daquela situação, diante da minha provocação.
Musa Mattiuzzi como musa do Flutuador (GIA/Bahia). Terceira edição do Festival de Intervenções Artísticas do Recôncavo (FIAR), Rio Paraguaçu, 2012
Após essa experiência, que durou aproximadamente quarenta minutos, voltei ao Centro Cultural Dannemann. Voltei a conversar com os participantes do encontro, continuamos o nosso bate-papo de aproximação. Foi fundamental essa conversa, pois tinha acabado de experienciar uma situação diferente, ou melhor, não convencional: estar em ação com as pessoas não sendo cúmplices, participando dela sem pudor, mas com muita curiosidade. Foi uma novidade. Estava falando sobre performance, de forma sedutora, com os homens da borracharia, e deslocava a fala acentuando as palavras de forma a torná-las mais sensuais. Conversava sobre posicionamento político e sobre o desenvolvimento de zonas de desconforto com ações performáticas: falava de tudo isso do jeito mais sedutor. Depois dessa conversa, com pessoas que não conhecia muito bem, quis saber mais sobre a intervenção do Flutuador (GIA, 2008). Foi assim que descobri que eram pessoas dos coletivos GIA/Bahia e Opavivará!/Rio de Janeiro. Iniciei trocas e parcerias com os coletivos no FIAR. Tudo começou com uma conversa, logo se tornou parte da intervenção. Com a Intervenção do Flutuador (GIA), no rio Paraguaçu, me tornei musa. Foi assim que surgiu a existência da Musa Mattiuzzi na Bahia.
NOTA
[1] Utilizo a palavra “programa” partindo do conceito de Gilles Deleuze e Félix Guattari do texto: “Como Criar Para Si Um Corpo Sem Órgãos”, onde eles propõem um programa como “motor de experimentação”.
BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999.
FABIÃO, Eleonora. “Performance e Teatro: Poéticas e Políticas da Cena Contemporânea”. Revista Sala Preta, São Paulo, vol. 8, n. 1, 2008. Ver em: <http://revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263>.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
MATTIUZZI, Musa Michelle. “Breviário sobre uma Ação Performática: Só entro no Jogo!”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 5, jul. 2013. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2013 eRevista Performatus e a autora
Texto completo: PDF