Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Caetano Veloso e Gilberto Gil
Imaginem o seguinte corpo: um homem nu, bêbado e melancólico está de pé em uma prisão. Nesse espaço, que também é a casa de sua mãe, ouvem-se constantemente chorinhos cadenciados e árias de Bach. Há, ao lado desse homem, um prato completo de moqueca, nunca tocado. Falando um português embaralhado por causa da bebida, ele sempre emite sons e se relaciona com seu público, explicando o que deseja expressar e dançando passos de balé a fim de chamar a atenção. Separado do chão por algum tipo desconhecido de proteção, ele segue uma linha onde esse público – que o observa – consegue ler sua pronúncia e o que ele deseja interpretar. Aparentemente, ele deve sair do útero de sua mãe e renascer para o mundo, ressurgindo, ressignificando, expandindo-se, soltando-se no caos mundo-terra-universo.
Fotografia de Artur Kon
Essa descrição apresenta o corpo mais artístico, agradável e brasileiro possível, a partir do olho de sete pessoas que preencheram um contrato e uma declaração no projeto Forma Infinita [1] – processo coreográfico sujeito à ação pública que atualmente está em residência no SESC Santana (São Paulo, Brasil). Nesse trabalho, ao invés de propor uma forma concebida por um diretor (que passa pelo corpo de um intérprete e é apenas recebida pelo público), a proposição é de que o público interfira diretamente em uma forma coreográfica, dirigindo-a e moldando-a de acordo com sua perspectiva.
Assim, a interpretação do público vira proposta ativa de transformação, e a suposta ação criativa do artista vira exercício de interpretação, abrindo espaço para diálogo, mediação e discussão. Essa relação é mediada por um contrato, a partir do qual o público participante vira criador conjunto da obra. Esse contrato é acessado pelo público que deseja participar através da figura de uma mesária-cantante (ação realizada pelas bailarinas Carolina Callegaro e Clarissa Sachelli), que explica as condições de participação e canta, esporadicamente, a música Panis et circenses (autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso).
Forma Infinita é abertura performativa do desejo de criar uma coreografia de inúmeras – e infinitas – assinaturas. Forma Infinita é, no dia 27 de junho de 2016, um trabalho de Artur Sartori Kon, Elizabeth Marcondes, Maria de Carvalho, Marcos Pereira da Silva, Renan Marcondes, Selma Marcondes, William Aguiar Guilherme e Wilson Roberto Correa.
Acredito que esse trabalho se configura no espaço entre uma abertura incansável de processo; uma tentativa de burilar algo que se perde; uma aceitação absoluta e cega das falas; um trabalho constante de melhora e esquecimento; um espaço de poder dissolvido e compartilhado: e um produto que nunca é final. Penso em Forma Infinita como a sujeição de um processo artístico à ação pública, cujas horas de trabalho acumulam autores e dividem responsabilidades, valores e escolhas.
Trago esse trabalho recente para esse breve texto com o intuito de introduzir e dar imagem a como tenho pensado meu trabalho em performance nos últimos anos. Não me interessam alguns lugares muito recorrentes da arte performática como a potência de um corpo vivo, noções de presença, irreprodutibilidade, inserção direta no real e efetividade de transformação no mundo. Apesar de serem noções que transitam entre importantes autores e artistas que se debruçaram sobre a performance, penso que cada vez mais esses lugares levam para exacerbações cegas das potencialidades do corpo; para uma ideia de que o acontecimento performático “pode mais”, é “melhor” ou “mais potente” que outras linguagens e procedimentos mais antigos; e para uma crença no corpo como um meio mais transformador que outros. Esses problemas se apresentam não apenas na produção performática específica das artes visuais, mas também em seus desdobramentos em outras linguagens. Grande parte do teatro contemporâneo, por exemplo, se autointitula como “Teatros do Real”, e se caracteriza – ou melhor, se qualifica – por apresentar em cena questões, procedimentos e resultados que são mais “reais” que outros.
Talvez por isso, em minha produção, sempre que me debruço sobre a questão do corpo, percebo que, ao invés de me perguntar “o que um corpo pode fazer?”, as perguntas que me faço são: “o que um corpo não pode fazer?” ou ainda “o que um corpo não pode deixar de fazer?”, uma vez que estamos inseridos em um tipo de organização simbólica ocidental do mundo, na qual nos entendemos como sujeitos ativos que agem sobre objetos passivos, ou seja, seres que fazem coisas, que realizam. Meu interesse, portanto, incide muito mais sobre os limites dessa organização e nos momentos em que os dispositivos e organizações de corpos – que supostamente nos tornam sujeitos (como polegares ou cadeiras) –, na verdade nos objetificam, tornando um corpo um objeto passivo, que sofre ou recebe uma ação. Corpos como objetos museológicos, como nas situações construídas de Tino Sehgal; corpos como carne e paredes de museu, como nas ações e imagens propostas por Laura Lima; corpos como fluxos e excreções, como nos cabelos infinitos das instaurações de Tunga… São esses os corpos que me interessam. Mas nunca o corpo como indivíduo. Sempre o corpo em relação e sempre distanciado de uma humanização.
Por isso sempre penso – ao criar um trabalho – em propor uma situação que possua limites claros para o corpo do performer, de modo a mostrar como esse limite necessariamente constrói um corpo, molda gestos e determina atitudes. Em um dos meus mais recentes trabalhos, intitulado Como um Jabuti Matou uma Onça e fez uma Gaita de um de Seus Ossos, apresentava ao público a imagem de um corpo masculino subjugado por um objeto: um sapato de salto alto laranja cujo salto é uma estaca de 30 centímetros. Impossibilitado pelo sapato de ficar em pé e ocupar uma posição ereta, masculina e dominadora, esse corpo transitava lentamente pelo plano horizontal através de uma coreografia que condensava imagens referentes a uma objetificação da mulher. Nada a fazer além de rolar de um lado para outro, passando lentamente por essas imagens, como uma vitrine viva. Em outro trabalho, de 2014, também com um longo título, É Certamente Muito Trabalhoso Dizimar o que Existe e Ajustar o que É Injusto, vestido de garçom segurava em meus braços uma bandeja cheia de um doce gigante de aproximadamente 11 kg durante a abertura de uma exposição. Nesse caso, o meu corpo já precisava da ação pública – o gesto de servir o doce mesmo tendo que sujar a mão para isso – para aliviar uma situação problemática – o excesso de peso do doce na bandeja. Agora, em Forma Infinita, o contrato é que é o dispositivo em evidência, que media relações de poder entre corpos. Sapatos, bandejas com doces, contratos: todos objetos que se tornam monstruosos, que ganham vida, que deslocam a relação de dominação do homem.
Como sempre, esses trabalhos me colocam problemas aparentemente sem solução. Em Forma Infinita, percebo-me em relação com um recorte completamente diferente de público, que possui outras expectativas e modos de relação com um trabalho dessa natureza. Grande parte dos pedidos estão relacionados a uma explicação do trabalho ou a um vínculo com um “imaginário comum” da dança e do teatro (estar de pé, dançar balé, olhar para o público, estar sobre um palco etc.). Porém, a simples justaposição dessas demandas com outras de ordem bastante subjetiva cria um estranhamento que é logo entendido como uma inacessibilidade da obra. Penso em como deixar claro que a estranheza da ação tem antes de tudo a ver com a sobreposição das demandas e desejos pessoais sobre meu corpo, e em como obter, com esse trabalho, a noção de que toda ação pública é dissensual e problemática. Penso também na delicadeza em construir um trabalho em conjunto com um público “passante” e, porventura, tendo que colocá-lo em um espaço ou situação específicos (como uma mostra de performance ou um festival de dança), pois é quase como colocar dois mundos e interesses em choque. Apesar da potência que pode surgir disso, é preciso cuidado e atenção para não transformar a relação entre esses dois interesses em um puro exercício de exotismo, circo do imaginário de não iniciados na arte.
No mais, acredito que Forma Infinita me coloca ainda mais na direção de um corpo que não é individual ou que se debruça sobre questões pessoais, mas que é um corpo-reflexo imperfeito do outro, um tipo estranho de androide. Penso nesse corpo como espelho – primeiro reconhecimento do corpo da criança – e como cadáver. A palavra corpo aparece pela primeira vez na Grécia, com Homero, que a usou para designar cadáveres. É graças a eles, coloca Foucault, que nossos corpos ganham unidade de imagem, mas, paradoxalmente, eles jamais farão parte de nós. Jamais poderemos estar onde está o cadáver e nem onde está a imagem refletida pelo espelho. É, fora de nós, portanto, que o entendimento de um corpo se configura.
Nesse movimento duplo de reconhecimento e inacessibilidade do corpo em relação à sua própria imagem, vejo uma possibilidade de se pensar em uma prática de si que corresponderia também a um desapego de si, que desbancaria o sujeito e sua fundação, abrindo-o à própria dissolução. Com isso volto a ressaltar a importância de experienciar coisas que nos lembram existir em processos e forças muito sutis sobre as quais perdemos o controle. Acredito que ao evidenciar e exagerar essas experiências, podemos nos tornar conscientes de problemas e pensar sobre suas mudanças, a partir de novas imagens, gestos e temporalidades.
Acho que penso parecido com a seguinte ideia presente em um texto da coreógrafa Marcela Levi: o corpo do performer não é cavaleiro, ele é cavalo. Imagino que o artista – na condição de performer – é como um replicante de Blade Runner: um duplo imperfeito, que aparentemente possui mais capacidades que os humanos, mas que apenas busca, sem descanso, uma noção vaga e sempre distante de humanidade. Vejo ainda esse mesmo artista como um ilegal na Terra, que deseja a simplicidade de uma vida mais longa (vejam Marina Abramović ensaiando sua própria morte e buscando a quarta dimensão em terras brasileiras). Esse artista, por não entender bem sua própria humanidade, também acredita que é preciso abdicar dos corpos, do indivíduo, da ideia de poder, dos desejos, principalmente do desejo de mudar o mundo com a intenção de lançar-se no desejo de construir outro. Ao contrário do que comumente se imagina, esse tipo de artista não deseja se mascarar como um humano, mas sim aceitar o fato de ser um produto, uma planta, um corpo passível, um espantalho, um manequim, um corpo dado ao entretenimento, um tamagotchi, um espelho do fracasso de um projeto de humanização, um jabuti, pedaços de cérebro, uma cor quente, robô de pilha…
O artista poderia ser tudo que sobra no mundo depois do apocalipse que dará fim aos humanos. O artista poderia ser um alienígena desfocado, um mar de baratas, a escuridão total, fragmentos explodidos de corpos, tsunamis sobre prédios, folhas rasgadas de revistas. Tudo isso, menos o humano sobrevivente dos filmes de Hollywood.
NOTA
[1] Forma Infinita é um processo do polo de produção em dança contemporânea e performance Pérfida Iguana, o qual é dirigido por Renan Marcondes e Carolina Callegaro.
Texto escrito a partir de fala realizada em 23 de junho de 2016,
no Ciclo de Pesquisas da Casa Tomada, em São Paulo/Brasil.
PARA CITAR ESTE TEXTO
MARCONDES, Renan. “Artista do Fim do Mundo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor
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