Sobre “A Natureza da Vida”

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Bosque Central, Londrina, PR, Brasil, 2011. Fotografia de Graziela Diez

 

E, no entanto, é justamente esse desencanto da beleza da nudez, essa sublime e miserável exibição da aparência além de todo mistério e todo significado que desativa o dispositivo teológico que permite ver, além do prestígio da graça e da sedução da natureza corrompida, o simples, inaparente corpo humano. A desativação do dispositivo retroage tanto sobre a natureza quanto sobre a graça, sobre a nudez como sobre a veste, liberando-as da sua marca teológica. Essa simples constância da aparência na ausência de segredo é o seu tremor especial – a nudez, que, como uma voz suave, não significa nada e, justamente por isso, nos trespassa. (Giorgio Agamben [1])

 

A Natureza da Vida é um projeto em desenvolvimento, desde os anos 2000, e que utiliza os meios foto, vídeo e performance nas produções e problematizações propostas no trabalho. As ações são realizadas em locais públicos em diversas cidades do mundo.

As performances são constituídas pela movimentação no espaço e pela ação de tirar a roupa e posar, quase sempre nua, para fotos e vídeos. Diferentes fotógrafos participam do trabalho, tanto profissionais e artistas como qualquer um que se mostre interessado. Em geral, eu também produzo fotografias e vídeos durante a minha movimentação, e faço imagens que são fragmentos do meu ponto de vista, registrando a reação do espectador perante as minhas performances.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida na Casa Selvática, Tem Bububu no Bobobó, Curitiba, PR, Brasil, 2017. Fotografia de Isabella Lanave

 

Durante as ações, o público aciona suas câmeras e celulares para fazer fotos e vídeos espontaneamente. Esse movimento, que acontece com grande frequência nas ações realizadas, além dos olhares e expressões do público, me levaram a realizar as minhas imagens da ação.

Em algumas situações, eu também convoco o público para que fotografe a performance e me envie por e-mail ou publique no Facebook. Pergunto quem tem câmera ou celular. Em algumas ações, empresto câmeras ao público e peço às pessoas para que fotografem.

A proposta de A Natureza da Vida traz vários debates para a ação, questões dos corpos, das mulheres, das gordas, da natureza, da opressão e violências, questões estéticas, ecológicas, éticas, da arte, das linguagens híbridas, da fotografia, vídeo, pintura, do desenho e performance, da encenação, da pose, do self, do autorretrato, das autorias, dos direitos da imagem, das publicações, das redes, filosóficos, de transcendência e da ação da criação em arte.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Simpósio Internacional Marie Hélène Bourcier, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil, 2014. Fotografia de Maddox Cleber

 

Posar e fotografar performando nua é uma forma de trazer à tona os seguintes debates em relação à fotografia: Como se posa para fotografias? Como reagimos perante as lentes? Quais intenções estão em jogo? Que poses fazer? Que expressões utilizar? O que provocam? Para que esta necessidade exacerbada em produzir infinitos múltiplos de si e do mundo? Por que produzir suas próprias representações, o self? Quais são as autorias? Como publicamos? O que mostramos? Que “bolhas” criamos? E infinitos temas são levantados como as aparências, as vaidades, a beleza, os invisíveis, objetos, abjetos, anormais, as sexualidades, gêneros, diferenças, violências, as redes, o público, as reações/respostas, o poder das imagens.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, FotoBienalMasp, MASP, São Paulo, SP, Brasil, 2013. Fotografia de Fábio Judice

 

Nas artes, a nudez está atrelada às representações dos corpos em diversas situações e em toda uma diversidade de temas. Desde a Vênus de Willendorf, outras tantas mulheres foram intensamente representadas nuas como as Vênus, Pietás, Madonas, Deusas, Santas, Anjas, Banhistas, Putas, Sereias, Divindades, Mártires e muitos outros corpos em pose, com discursos diversos e linguagens que se modificam através das épocas em que estão inseridas.

As constituições das identidades a partir da revolução industrial e surgimento da fotografia provocam um mundo abarrotado de imagens e com uma velocidade que se expande em curva exponencial hoje com as mídias e redes de conexão.

A moda, o consumo exacerbado e a venda de corpos provocam uma distorção das representações e uma homogeneização e higienização que foi sendo construída a partir das representações constantemente bombardeadas publicamente.

Parte das imagens de mulheres sempre foram produzidas para o consumo dos corpos, corpos em catálogos para exibição e venda. Entre folhetos de apresentação, revistas, livros, livretos, outdoors, televisão, cinema, em todos os suportes é possível ver como estes corpos que tudo vendem também se vendem e estão à mercê dos direcionamentos deste mundo o qual vende ilusões.

Corpos em padrões formatados através de normas de controle, para que estes estejam atrelados aos interesses e a serviço dos mercados. Para pertencer é necessário ser o que se dita, aparências que vestem, comem, têm e detêm discursos programados, vestimentas determinadas, gostos plastificados, sabores exagerados, corpos turbinados e rearranjados para se adequarem aos invólucros e espaços determinados a cada um dentro da máquina produtiva que move o mercado e o consumo, para o deleite de alguns poucos e poderosos.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Vértice Brasil, Florianópolis, SC, Brasil, 2014. Fotografia do público tirada durante a performance por Fernanda Magalhães

 

Poderes de massa, controles internalizados provocados pelo terrorismo do excesso de imagens que nos bombardeiam a cada segundo. Dos folhetos aos celulares, a intensidade é tão agressiva que nos abduziu para o interior destas telas que controlam nossos gostos, relações estabelecidas, sentimentos do dia, agendas e gastos. Ao sermos monitorados, cada dia mais, a assustadora e crescente homogeneização do mundo se mostra violenta. A globalização nos levou a modelos divulgados por todos os lados. Shoppings, roupas, comidas, sapatos, carros, rostos, cabelos, posturas etc., todos iguais ao que ditam as grandes marcas internacionais. Cada vez mais fica difícil visitar lugares mais isolados e perceber a cultura local sem influências consumistas, em geral divulgadas pela televisão e celulares.

O que se mostra, o que se divulga, o que se publica, o que é considerado bonito são os corpos perfeitos, fortes, rápidos, alongados, leves, saudáveis, frugais, dóceis, que se adéquam a uma gama de consumo, das produtoras às reprodutoras. Todas estas estão a serviço da construção de um mundo que controla e se coloca a serviço dos poderes.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Silo, Fazenda Viçosa, Distrito de Maravilha, Londrina, PR, Brasil, 2013. Fotografia de Graziela Diez

 

A nudez é conectada à beleza; ficar nua tem a ver com o olhar para esta beleza construída e normatizada, esta beleza normalizada como “a beleza”, isto é, a importância da aparência, de revelar e expor “esta beleza” a todos. Outros nus somente acontecem em ocasiões que nada têm a ver com posar. Quais são os momentos da nudez? Banho, trocar a roupa, fazer sexo, passar creme, se olhar no espelho: – Espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu? Ui, nossa, tem uma estria aqui? Eita, uma celulite? Uma mancha? – Pelancas, dobras, uma curva fora da ordem, pelos, gorduras que sobram, verrugas, rugas, cicatrizes, marcas, os corpos com seus registros, as marcas da vida, cada dia crescem, mudam, agregam, perdem, transformam.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Praia do Cassino, Rio Grande, RS, Brasil, 2015. Fotografia de Cláudia Paim

 

Para posar para fotografias é preciso estar bonita para as fotos. Roupas, cabelos, tudo ajeitado. E posar nua? Nossa, coisa para as modelos, tem que ter corpo perfeito para tirar a roupa, claro. Propaganda de lingerie? Para que a nudez? Revelar os corpos desejados, corpos referenciais, aqueles que podem.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Semana das Cores, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil, 2013. Fotografia de Eliza Prataviera

 

A velocidade das imagens e de seu consumo está intensamente atrelada a um mercado que a cada dia mais provoca representações homogeneizadas.

Minhas performances são ações-provocações diante do problema de como lidamos com as imagens e o que elas nos provocam. Tais debates surgem de nossas ações cotidianas, de um mundo de conexões e de mundos-ilusões.

As ações acontecem com a movimentação de meu corpo pelo espaço, fotografando, posando, ocupando a cena e convidando o público a participar, quer seja realizando fotos e vídeos ou posando junto comigo, o mais à vontade que desejam.

Cada ação é um pouco diferente da outra, seguem um breve roteiro e carregam as questões propostas pelas próprias ações, modificando-se conforme o espaço, o público e a situação. As variáveis interferem diretamente na ação e em seus movimentos.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Universidade Livre do Meio Ambiente, Curitiba, PR, Brasil, 2012. Fotografia de Graziela Diez

 

No que diz respeito à estética, o trabalho propõe pensar as relações entre os corpos e suas representações. Pretende meditar sobre as aparências, o valor das imagens, seu poder, éticas e poéticas.

Nos debates sobre a arte, as ações propõem pensar e produzir com múltiplas linguagens. Trata-se de possibilidades de criação utilizando-se linguagens híbridas: movimento, dança, encenação, instalação, site-specific, work in progress, fotografia, vídeo, pintura, desenho, paisagem sonora. Também discute o autorretrato, o mercado e o sistema das artes, as autorias, os direitos da imagem, as publicações, as novas mídias e tecnologias, as produções coletivas, colaborativas e as redes.

Como debate filosófico, esse trabalho busca transcendência na ação da criação em arte.

Tais ações foto-vídeo-performáticas também almejam refletir sobre as relações entre as imagens e os corpos. São provocações que se impõem através de um posicionamento político, discutindo padrões, estética e diferenças: uma ocupação do espaço, um posicionamento, colocar-se presente e visível. Os vídeos e fotografias performam como o corpo, dando vida e fluxo aos movimentos.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, Mar Negro, Anapa, Krai de Krasnodar, Rússia, 2011. Fotografia de Tanya Vasilyeva

 

Os trabalhos são realizados a partir de observações, de experiências e da constatação da hipocrisia latejante em nosso dia a dia. Realizar esses nus em locais públicos, mostrando um corpo incômodo, com toda liberdade, é uma ação proposição. É o corpo que reivindica o seu espaço, que não se detém perante a norma, que não se submete à lógica dos modelos ditados por sistemas em que o capital está acima do ser.

Nas representações, observo o corpo das mulheres gordas ocupando diversos espaços de significação. A sexualidade é uma das vias que constrói as imagens desses corpos. Sentidos repletos de interesses escusos e julgamentos aparentes. O campo erótico é permeado por invasões associadas ao consumo, onde o corpo é vendido, é moeda de troca e produz modelos normatizados e construídos como objeto e também totalmente abjeto. O desfile de corpos em catálogo atende a todos os tipos de desejos, e o mercado não é bem como se apregoa. Existem todos os tipos e todos os interesses. Desejos não acontecem ditados por regras, e aí reside o ser hipócrita, que deseja o que deseja, mas arrota o que todos querem ouvir.

Assim, as representações eróticas abordam todos os corpos e todos os tipos de relações, porém, o que se está à mostra, na superfície, são as representações dos corpos considerados perfeitos. Existem mercados, interesses e desejos, ainda que estes sejam negados. Este universo de imagens invisíveis estão nas segundas, terceiras ou últimas fileiras, em locais escondidos, nos submundos imagéticos. São desejos, são consumíveis, mas não são admitidos no mainstream.

É assim que as mulheres gordas estão inseridas no campo erótico, mas em geral atreladas a sentidos diversos e violentos, na maioria das vezes, repugnantes, como sexo animal, bizarro, exótico e esquisito. Essas representações querem nos fazer crer que as mulheres gordas só poderiam ser desejadas por corpos doentes que amam o bizarro. Consideradas como corpos que devem ser extintos, pois ofendem os gordofóbicos, as mulheres gordas ousam em tamanho, devem se redimir de suas culpas e de seus excessos e ficar em seus devidos lugares, conformadas com os papéis atribuídos a elas. Nesta lógica, posar nua para fotografias e vídeos, expor o corpo nu publicamente seria um papel esperado dos corpos “perfeitos, lindos e sarados”. Os outros expostos são considerados uma verdadeira ofensa. Corpos impróprios, inadequados, feios, nojentos e repugnantes.

Em A Natureza da Vida, as ações se impõem e os corpos ocupam os espaços. Proposições ativadoras e agenciadoras de outros sentidos, pretendem trazer à tona estas relações devoradoras em busca de novas possibilidades para tais corpos. Avessos, desejos latentes, dobras e redobras, linhas de fuga que conectam formas de pensar e agir, refletindo sobre as normas regulatórias da sociedade contemporânea que (con)formam o ser e aquilo que produz.

 

Fernanda Magalhães, A Natureza da Vida, YVY Mulheres da Imagem, Tiradentes, MG, Brasil, 2017. Foto de Sara Gehren

 

NOTA

[1] Giorgio Agamben, “O Niilismo e A Beleza dos Corpos”. Territórios da Filosofia, 04 de agosto de 2014. Ver em: <http://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/08/04/520/>. Acesso em 8 de outubro de 2014.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MAGALHÃES, Fernanda. “Sobre ‘A Natureza da Vida’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora

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