Yhuri Cruz em Cena

 

Yhuri Cruz, Farol Fun-Fun: Pangeia, 2019. Fotografia de Bruno Duarte / Cortesia do artista

 

– Quanto tempo que não nos vemos, preto. Eu sou você. Me coma, preta. Me coma, preto. Me coma, pretx.

— Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019

 

Não conheço ninguém que não tenha se sentido atravessado de alguma maneira pelas cenas de Yhuri Cruz. Tanto forma quanto conteúdo são pungentes. Sua produção como um todo ainda está em processo de absorção e digestão crítica dentro do meio artístico (e em outros campos de saberes), mas desde já esse jovem artista tem mostrado um trabalho de relevância incontestável para a arte contemporânea brasileira. O que me interessa por hora é comentar sua recente incorporação da linguagem performática, realizada através do texto encenado e discutindo questões que se mostram presentes desde antes de o artista se dedicar a esse meio.

Morador de Olaria, subúrbio do Rio de Janeiro, Yhuri Cruz (Rio de Janeiro, Brasil, 1991) é graduado em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e pós-graduado em Jornalismo Cultural pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Frequentou escolas livres de arte como a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV Parque Lage) e a Escola Sem Sítio. Nos últimos três anos, realizou diversas exposições no Rio de Janeiro, como artista e curador, foi premiado com o IV Prêmio Reynaldo Roels Jr. e realizou uma residência que resultou na sua primeira exposição individual.

Yhuri Cruz é, evidentemente, artista multimídia. Sua prática envolve escrita, performance, fotografia, escultura, desenho e pintura – e às vezes tudo isso num mesmo contexto. Notei nele uma preferência inicial pelo pensamento escultórico quando do nosso primeiro contato em 2017. Yhuri criava objetos e trabalhava com peças em mármore, pesadas e de acabamento impecável. (Vindo de uma região próxima à dele, sempre me ocorria o quão dispendioso era transportar todo aquele material até escolas e espaços expositivos do outro lado da cidade.) Pensar a escultura é, em alguma medida, pensar o corpo, ou como este se relaciona com aquele objeto espacial, e é talvez a partir dessa dialética que o trabalho do artista se desenvolve. Yhuri desde cedo se interessa pelo monumento e toda carga alegórica que ele pode suscitar; dentre elas, talvez a principal, é também o centro da discussão da sua produção: o poder.

 

Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019. Fotografia de Pedro Freitas / Cortesia do artista

 

Yhuri Cruz, Monumento à voz de Anastácia, 2019 / Cortesia do artista

 

O monumento comumente ratifica figuras de poder sob o véu do discurso da memória, ou do que deve ser memorado. Uma memória que é arbitrária e estabelecida. Um monumento se mostra imponente mesmo quando não é palpável, porque sua edificação na memória atravessa gerações. Não à toa, Yhuri frequentemente associa memória à ideia de assombração. A história brasileira carrega fantasmas de uma memória colonial escravagista cujos resquícios assombram o cotidiano atual de 56% da população brasileira. O trabalho de Yhuri, onde aparecem as relações entre centro/periferia e poder/subjugação, que envolvem sua produção, dedica-se a destacar a subjetividade preta, cuja centralidade nunca foi possível dentro da estrutura histórica ocidental. Quando ele altera a iconografia da Anastácia [1], retirando a máscara de flandres, e a imprime em forma de santinho católico, ou seja, transformando-a em monumento, essa atitude induz o olhar do espectador à mudança de paradigma. Ele corrobora, tal como muitos artistas e escritores antes dele, para a construção de uma outra narrativa possível.

 

A reconstrução da subjetividade não se dará nos termos da criação, mas sim do resgate das bocas no meio de um corpo-cena quimérico.

— Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019

 

Yhuri Cruz, Monumento à presença, 2019. Fotografia de Ygor Landarin / Cortesia do artista

 

Paralelamente, são produzidos afrescos monumentais – uma forma de marcar uma presença, inserir-se num imaginário coletivo. A palavra, já utilizada pelo artista com frequência, cresce em escala e em interesse. Vale ressaltar que sua trajetória cênica se faz especificamente a partir do texto. Nenhuma direção a não ser ao centro, o primeiro manifesto-cena do artista, foi escrito em 2018. A cena é performada não como estamos habituados, num tempo e espaço recortados dentro de um espaço expositivo e de maneira consciente e voluntária dos corpos atuantes, mas pela estrutura social na qual estamos inseridos, e de maneira automatizada e violenta. Nesse sentido, Yhuri salienta o elitismo branco dentro da arte contemporânea através da transformação desse mesmo meio em cena/performance. São seus personagens: o modernismo (e sua prole); o velho contemporâneo (e seus seguidores); corpos (que revidam na ação artística e na presença); e o fantasma [2]. Alguns agentes encenam a manutenção de uma paisagem excludente. O texto manifesta uma atitude: “APÓS A DIÁSPORA, NENHUMA DIREÇÃO A NÃO SER AOS CENTROS DE SI.”

 

PRETXFAGIA (NHAC)

INDIXFAGIA (NHAC)

NORTESFAGIA (NHAC)

CUIRFAGIA (NHAC)

 

– MARGEMFÁGICOS!

 

O resultado é uma arte mastigada pelos dentes da branquitude. Como dizia Tunga, os dentes são lanças que se afiam diariamente. Uma arte-papinha dada às bocas da elite, com gosto diluído de Brasil(eirxs) liquidificado(s).

Corpos processados e (assassinados e enterrados), digeridos, miscigenados como política de apagamento do Estado, eugenia. Política de nhac.

— Yhuri Cruz, Nenhuma direção a não ser ao centro, 2018, grifos do artista

 

No mesmo ano, Yhuri também produz o Monumento-Documento à Presença, no qual ele explicitaria parte da disparidade entre indivíduos negrxs e não negrxs nas atividades de ensino e mostras na EAV Parque Lage nos anos recentes, através de uma pesquisa no arquivo da própria escola. Em 2019, após essas experiências, o artista realiza a residência Vocábulo, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, que parte do trabalho Anastácia Livre e culmina na sua primeira exposição individual. Pretofagia é um acontecimento através de diversos meios e oferece vários desdobramentos possíveis: é um ensaio-cena em quatro atos, de autoria de Yhuri Cruz; é o quarto ato da mesma cena; é uma exposição, composta por objetos, texto, performances cênicas e encontros, e, nesse sentido, é uma experiência coletiva que envolve outros corpos, subjetividades e campos de saberes; é uma trilogia de cenas ou performances, incluindo Pretofagia, Farol Fun-Fun: Pangeia (2019) e A Cova do Escravo (2020); e é um conceito mais amplo elaborado pelo artista, um conceito de encenações de (auto)ficções.

 

E penso que sou tudo, menos absoluto. O corpo ideal, racional, autodeterminado, autocrítico, livre. Pensar o corpo preto em cena é pensar na leitura reversa de um corpo absoluto colonial. O ancestral desmembrado, reformatado, o que vive com uma subjetividade necrosada.

— Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019

 

Esse texto, que por si possui uma carga poética e crítica, reflete especificamente sobre o corpo pretx racializado. Esse corpo, que pode ser um indivíduo ou uma alegoria para o corpo coletivo, encontra-se numa posição de autocrítica, onde elx se percebe e percebe outrxs pretxs que podem contribuir para a construção de sua própria história (ou de sua própria cena), diferente daquela colonial. Essa construção acontece a partir do ato de comer, engolir, incorporar saberes ancestrais e contemporâneos – e nessa tomada de consciência, tornar-se também alimento para outros pretxs. Pretofagia é um ponto de virada na escrita e na produção do artista, após uma gestação dedicada durante a residência. A diversidade de meios (esculturas, desenhos, performance) e reunião de pares no programa público da mostra contribui para a força desse alcance. Construir sua história é, para o artista, um processo de cura, de emancipação.

 

Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019. Fotografia de Pedro G. Linger / Cortesia do artista

 

Nas cenas, o escultor não desaparece ou dá lugar ao performer, mas pode-se dizer que ambos comem um ao outro e, assim, ampliam suas próprias presenças. A escultura faz parte da cena não como ambientação inanimada, mas como elemento a ser ativado. No decorrer da cena, os performers pegam, usam, abraçam, se esfregam em algumas das esculturas. O mármore branco e o granito preto podem tomar uma conotação crítica para a história da arte ocidental – a partir da qual ainda se estuda a arte no Brasil, de maneira extremamente centralizada. As colunas/pilares brancos feitas de latas de vinte litros irregulares misturam referências e envergam o cânone. A bengala aponta para a ancestralidade preta. A máscara Pretusi subverte o eixo modernista da escultura. Essas são apenas algumas leituras possíveis.

 

Yhuri Cruz, Pretusi, da instalação O Banquete, 2019. Fotografia de Yedda Affini / Cortesia do artista

 

A construção dos trabalhos de Yhuri está atravessada pelos afetos. Isso é importante porque, mesmo sendo o diretor e escritor da cena, ele não se considera seu único autor. As três cenas que compõem Pretofagia foram criadas em conjunto com outrxs artistas que deram corpo e ação a elas: Alex Reis, Caju Bezerra, Dani Câmara, Davi Pontes, Ellen Correa, Mayara Velozo, Nelson da Silva e Pedro Bento. Além da família, que tem importante influência no seu pensamento artístico. Estes são alguns dos indícios da relevância da coletividade dentro de seus trabalhos. O texto Pretofagia traz também algumas referências teóricas, que é um outro tipo de coletividade, importante para este indivíduo que constrói a própria ficção.

 

Por outro lado, PRETOFAGIA é também uma estratégia de vida, crescimento, encorpar o preto, resgatar atores, atrizes, agentes. O preto come o preto, na dor e no prazer que significa crescer, resgatar suas referências, aquelas do núcleo saudável e renascer pretofagicamente no berço da sua ancestralidade, em sua cena-realidade, uma cena não de caos, mas de organização, uma cena de poder. PRETOFAGIA é a boca que come a si, um movimento autorreferencial, de memória, entre o passado-presente e o passado-futuro.

— Yhuri Cruz, Pretofagia, 2019

 

As segunda e terceira cenas que se seguem contam histórias mais específicas, mas que gravitam em torno do mesmo tema – comer e ser comido por estes “corpos saudáveis”, isto é, pretxs que contribuem para a fissura da narrativa colonial. Farol Fun-Fun: Pangeia foi uma cena realizada com a atriz Tatiana Henrique numa série de três dias no Museu da República, durante o XXII Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela narra um conto de criação do universo, inspirado numa cosmologia afro-brasileira, protagonizado pelas personagens Escura, Farol Fun-Fun e o Tempo. No candomblé, os orixás funfun são divindades do branco (funfun: cor branca), primordiais, os primeiros orixás criados. O artista utiliza a cor branca como instrumento para sua própria narrativa, ressaltando seu significado religioso, e não como uma possível alegoria para a branquitude. Na cena, além do farol, é singular a presença do tríptico em granito que representa a Pangeia, criada a partir do ato de pintar durante a cena. Nela, Yhuri reúne, portanto, esses diferentes suportes muito caros às artes visuais: pintura, escultura e performance. É um ato criador que constrói o mundo a partir da criação da imagem.

 

Yhuri Cruz, Farol Fun-Fun: Pangeia, 2019. Fotografias de Luiz Baltar / Cortesia do artista

 

A Cova do Escravo, encenada no Solar dos Abacaxis, no início de 2020, é uma história de fantasma e vingança, cujo lugar e tempo estão inseridos diretamente no passado colonial. Mais um meio é explorado na performance: o canto. A história de homem negro que trabalhava numa fazenda de cana-de-açúcar no século XIX e escuta uma canção racista tocada na casa-grande, a qual lhe imprime um trauma. Ele atravessa o tempo e retorna em forma de assombração. O drama abre espaço ao terror. A Cova do Escravo encerra a primeira trilogia pretofágica, um acontecimento que impacta tanto o artista quanto aqueles que dela participam – incluindo os espectadores.

 

Yhuri Cruz, A Cova do Escravo, 2020. Fotografias de Gabrielle dos Santos / Cortesia do artista

 

Como disse Marcelo Campos, curador da mostra individual, mesmo quando pronta, Pretofagia era uma exposição em processo, na medida em que ela ia se construindo conforme aconteciam as encenações e encontros. Em última análise, isso acontece com o conceito geral de pretofagia. Cada ação realizada e cada corpo pôs mais uma peça nessa construção, e acredito que ela continue infinitamente, para além de Yhuri, até que se torne maior que a estrutura histórica violenta que persiste. A desconstrução começa pelas fissuras.

Quero finalizar com um fim. Olho para a imagem da lápide com uma representação gravada da pintura A Negra (1923), de Tarsila do Amaral. Parte de mim perguntou por que ele não utilizou a figura do Abaporu (1928) se a intenção era apontar o fim da utopia modernista sintetizada pelo conceito de antropofagia. A figura escolhida é, no entanto, um posicionamento mais assertivo e menos literal. A Negra é uma representação objetificante de um ser humano – isso fica claro em exposições onde vemos esse quadro ao lado do autorretrato de Tarsila, por exemplo, representada quase como um símbolo de civilidade burguesa. A negra está nua e com características físicas exageradas; é um corpo dessubjetivado, e este é o fim que interessa. “Quem comeu quem? Que antropofagia é essa que se toma como boca universal? ANTROPO-FAGIA. Comer o humano. O branco brasileiro europeizado come o preto e o indígena, digere suas memórias assumindo como suas, violentando e incorporando narrativas. PRETOFAGIA é boca que critica, que aponta, que recusa e fragmenta espetáculos.” A representação de corpos pretxs pelo olhar da branquitude teve seu lugar no modernismo enquanto movimento feito pela burguesia branca, mas não pode mais ser reproduzida, ou mesmo tolerada, na contemporaneidade tal como a experimentamos no Brasil. É o fim da antropofagia eurocentrada e o início do reconto de uma mesma história, a partir de outro ponto de vista: o pretofágico.

 

Yhuri Cruz, Túmulo Antropofágico, 2019. Fotografia de Ygor Landarin / Cortesia do artista

 

Yhuri Cruz, Pretofagia (Grandes Cenas), 2019. / Cortesia do artista

 

Agradeço imensamente ao artista Yhuri Cruz pelo seu acolhimento de sempre e pelas trocas realizadas durante a escrita deste texto.

07 de maio de 2020

 

Este texto foi escrito antes de assassinatos como o do adolescente João Pedro, baleado dentro de casa durante uma ação policial no Rio de Janeiro, e o de George Floyd, nos Estados Unidos, que reacenderam a revolta sobre o estado de emergência no qual vivem constantemente pessoas negras no Brasil e nos Estados Unidos. Infelizmente não foram eventos isolados, e por isso é também infeliz ter ainda que pontuar que, num mundo que se diz livre, a manutenção da vida não é negociável. Sem vida, não há arte. Toda vida importa, mas algumas vidas têm sido mais importantes do que outras, e é disso que se trata. Enquanto não nos revoltarmos, a história se repetirá. Questionar e enterrar monumentos é uma via necessária porque eles são alguns dos símbolos que edificaram o imaginário dessa sociedade racista e genocida na qual vivemos. Não nos abstenhamos. Fogo nos racistas.

09 de junho de 2020

 

NOTAS

[1] Frequentemente conhecida como “Escrava Anastácia”, a mulher escravizada no Brasil colonial é uma figura religiosa, cultuada principalmente em santinhos de papel (com uma imagem numa face e a oração na outra) como realizadora de milagres. Sua iconografia, popularizada a partir de uma gravura do século XIX, mostra uma mulher negra que traz no rosto opressiva a máscara de flandres e, no pescoço, uma coleira de ferro, símbolos de castigo eterno. Sua festa é celebrada por seus devotos no dia 13 de maio.

[2] Ver em: <https://issuu.com/yhuricruz/docs/manifesto_completo>. Acessado em 07 de maio de 2020.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

COSTA, Bruna. “Yhuri Cruz em Cena”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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