Tortura e Prazer: Auto-Exposição de Deslizes Como Ostentação do Impecável

 

Imagem (frame) a partir do documentário exibido na performance Female de Tânia Dinis

 

Sucessão de erros, uma série de lapsos, uma cadeia de desacertos e o resultado é claramente positivo. Afortunadas falhas propiciaram a performance Female de Tânia Dinis apresentada em Novembro de 2012 no Núcleo de Experimentação Coreográfica da cidade do Porto.

Como numa conferência, a artista apresentava-se ali, vestida em seu traje cotidiano, despida dos artefatos da ficção dramática, embora Tânia provenha justamente de uma apropriada formação estritamente teatral, fato que lhe garante o absoluto poder de discursar por horas com base unicamente em um roteiro, sem nenhum texto decorado e, por vezes, para não se perder nos seus pensamentos, lia a sua alocução sob uma incondicional franqueza. A oratória foi improvisada com primor e, por isso, expor de forma crua as suas asneiras (categoricamente humanas), bem como os componentes todos desse natural desacerto de qualquer sujeito, garantiram o seu inquestionável bom desempenho.

Ao entrar no espaço da ação, o público se deparou com uma sala pequena, com poucas cadeiras, uma mesa com um projetor de vídeo para película em Super 8 ao lado de um arrojado equipamento para projetar um filme em formato digital. Tânia Dinis, quando percebeu que todos seus convidados estavam ali para presenciar o seu suposto “resultado final” (segundo o convite, seria um filme), fruto da residência realizada no NEC, fechou a porta e, estrategicamente, garantiu o silêncio para iniciar a sua performance (melhor nomenclatura para definir o que nos foi mostrado), inclusive encerrou o áudio do típico som dessa câmera analógica que estava constantemente se repetindo enquanto todos se acomodavam no recinto.

Tânia esclarece, ao longo do seu discurso, que não tinha propriamente um produto final para ser apresentado e, então, o que expõe ali é, na verdade, o seu processo de criação de forma aberta e corajosa. Foi estabelecido um rombo na sua privacidade e, por consequência, na de quem se envolveu com ela durante o seu período de criação. Ninguém saiu impune. A artista leu até o e-mail (inclusive a resposta) que lhe garantiu a tal residência artística, que, de acordo com suas afirmações, não aconteceu, pois poucas vezes esteve no espaço e, quando esteve, colou fitas adesivas no chão para simular um esboço de conceito, que na verdade, ainda não existia. Confessou que ansiou apenas criar códigos, marcar pegadas no espaço, o qual não lhe rendia grandes ideias e não lhe assegurava a mínima resolução para solidificar um possível produto final. Contou isso abertamente. Obviamente, todos que estavam ali presentes identificaram-se com essas declarações quando emitiram seus risos desconfortáveis e gargalhadas tensas. Ela estava cruel, de forma afetuosa, mas sempre impiedosa para apontar pessoas e citar os nomes dos envolvidos nas suas catastróficas tentativas de criar uma obra artística.

A descrição da série de falhas é iniciada. Um filme que poderia ser ali oferecido como o tão desejado resultado final não ocorreu conforme o esperado. A artista conta que mobilizou quatro mulheres para atenderem a ideia que lhe vinha à tona: retratar o nu feminino em um vídeo realizado em Super 8, o qual seria musicado. A autora queria reunir os corpos dessas mulheres de forma fragmentada e desprovida de libido, numa configuração que não fosse sexualizada. A ideia percorre o nosso imaginário, porém não há quase resquícios do seu trabalho, ou melhor, há quase nada. Isso foi exibido em formato analógico posteriormente à apresentação de todos referenciais que a mobilizaram na sua iniciativa, timbrados em Godard, Bergman, entre outros artistas-gênios do cinema.

 

Imagem (frame) a partir do documentário exibido na performance Female de Tânia Dinis

 

Visto que quase nada havia de registro, portanto de objeto artístico, a performer explica que, por sorte, pediu para que o seu namorado, o cineasta português Jorge Quintela, documentasse tudo que fosse filmado no fatídico dia em que o diafragma da câmera se fechou e anulou quase todo o conteúdo que haveria na negra película. Havia portanto esse filme que documentava o principal filme: um filme dentro do filme. Havia um objeto artístico dotado de um imenso potencial de argumento em sua sofisticada metalinguagem. E a performer confessou que a iniciativa de documentar o seu ato artístico foi por não conter o seu ego, somado à necessidade da garantia por saber dos riscos que existem em trabalhos feitos com material analógico. Ao envolver o seu namorado no trabalho, Tânia também quis ser um corpo nu no seu próprio vídeo, também quis ser esse corpo-provocador de desejos, intermediador do olhar por detrás do recurso digital a olhar corpos nus por detrás do aparato analógico. Conforme narra o artista Pedro Bastos enquanto um observador desse resultado metalinguístico:

 

Concentro-me então na mulher nua com a câmara de filmar. Ela torna-se na acção. Ela é a provocação. As outras mulheres nuas, estão vulneráveis à provocação da primeira câmara. A mulher nua de câmara de filmar, ainda não se sujeitou à provocação da segunda câmara. Ignora-a. Isso faz dela a provocação. Neste caso, a provocação está no facto de ela não saber que, é ela a provocação. Está a ser espiada. É perverso. [1]

 

A câmera analógica falhou na captação das imagens e Tânia falhou, quando sentiu ciúmes (algo humanamente justificável) ao ver seu namorado filmar jovens mulheres nuas em uma bucólica e ensolarada paisagem de inverno e, no ápice desse perturbador sentimento, na troca de cartuchos da Super 8, a artista repousou o conteúdo da filmagem anterior sobre o gramado. Essa situação a salvou, porque fez com que ela convocasse as mulheres nuas (as atrizes Diana Sá, Sara Pereira, Sofia Margarida e Teresa Alpendurada) para uma refilmagem, que desta vez, felizmente foi captada pela imprecisa câmera analógica. O tal lapso do cartucho esquecido no gramado só foi percebido quando a artista assistiu ao registro digital, cuja cena de ciúmes foi evidentemente o motivo para ela se perder na sua organização. Nem a menção de tudo isso foi poupada durante a performance-conferência.

Nem mesmo o documentário exibido estava resolvido ainda, não estava fechado, assim como tudo que víamos durante a ação e que nos era explicado como materiais para uma futura obra ou uma busca que não resultaria em nada concluído. Apesar da narração encomendada de Pedro Bastos, arquitetada com sobre-excelência, a artista assumiu a insuficiência de certeza para cerrar o que estava ainda acessível ao seu modo mais verdadeiro e vivo. Tânia, assim, colocou em questão a noção de “artista-gênio”, reafirmou a arte como algo oriundo do humano, não fantasiou o processo de criação como algo sublime; revelou a verdadeira e penosa condição do artista no ato criativo tão suscetível ao erro. Víamos, nessa performance, justamente esse “ato criativo”. Foi, por este motivo, algo vivo, o contrário de um resultado fechado, pronto, acabado.

Talvez, Female já seja o tal resultado final em seu caótico contorno. Talvez não seja possível mesmo encerrar as ideias contidas ali em um filme como objeto de arte, mantendo assim, a pulsante vida da obra que não se fecha em rótulos e coloca o aforismo como cerne, como resultado. Talvez o efeito do sublime esteja no momento latente mesmo e não na fria e derradeira obra assinada e assentada idêntica em sua forma onde quer que seja exibida.

 

Nota

[1] Texto narrado por Pedro Bastos para o vídeo (em formato digital) apresentado durante a ação.

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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