Sobre “A Dama do Mar”

 

A dama do mar, direção de Robert Wilson. Fotografia: Ed Figueiredo/ Divulgação

 

O naturalismo de Ibsen? Eu não o amo. O meu teatro é antinaturalista, mas no meu trabalho o sobrenatural pode se transformar repentinamente em natural: o que me tocou neste texto é uma luz contínua que é atingida por uma linha de tempo sobrenatural. A beleza está no modo pelo qual estes dois mundos se chocam.

Robert Wilson

 

O texto acima abre o programa da encenação brasileira [1] de A dama do mar, dirigida por Robert Wilson. A partir dele e do espetáculo em questão, propõe-se a investigação de possibilidades de reinvenção de uma obra clássica na cena contemporânea. Neste caso específico, o tratamento sofisticado dos signos teatrais torna líquidas as fronteiras entre as artes, deixando o fruidor à mercê de experiências visuais e sonoras que reverberam recepções fragmentárias de diferentes dramaturgias.

Distante do sentido tradicional do termo, o conceito de dramaturgia vem sendo reinventado, envolvendo todas as artes da cena e multiplicando-se em muitos, tais como: dramaturgia do espaço; dramaturgia da cena; dramaturgia da luz; dramaturgia do ator; dramaturgia do corpo; dramaturgia coletiva; dramaturgia colaborativa, etc. Sabe-se hoje que o teatro é uma arte efêmera e complexa permeada por uma constelação de signos transitórios, e que o elemento linguístico é apenas uma parte do conjunto da cena. Porém, foi só a partir de 1850, com as pesquisas de Richard Wagner acerca da obra de arte total, que se abriram os caminhos para a autonomia da encenação ocidental como linguagem em relação à literatura [2]. Neste processo, a cena deixa de ser um subproduto literário, para tornar-se uma unidade sígnica – ainda que fragmentada –, ou seja, um agrupamento de linguagens combinadas de modo a produzir sentidos e provocar reflexão.

 

Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio de comunicação privilegiado, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral ou escrita (…) No entanto, em todos os tempos, grupos humanos constituídos sempre recorreram a modos de expressão, de manifestação de sentido e de comunicação sociais outros e diversos da linguagem verbal, desde os desenhos nas grutas, os rituais de tribos “primitivas”, danças, músicas, cerimoniais e jogos, até as produções de arquitetura e de objetos, além das formas de criação de linguagem que viemos a chamar de arte (SANTAELLA, Lúcia. 2006, pp. 10-11).

 

O pensamento de Lúcia Santaella leva à apreciação descontínua das diversas metáforas expressivas evocadas em A dama do mar. Buscamos analisar esta obra a partir das relações não lineares entre as dinâmicas do pensamento simbólico de Robert Wilson: o seu projeto poético, as sobreposições de linguagens da cena e os procedimentos do movimento simbolista.

Luiz Roberto Galizia (1986) acredita que o aspecto central do teatro de Wilson é seu caráter total. Por ser multiartista – dançarino, cenógrafo, encenador –, em sua obra nos deparamos com a multiplicidade de informações e linguagens própria da investigação wagneriana. O encenador, entretanto, não está interessado na fusão harmônica das artes (que visa à unidade da cena), e sim na justaposição de linguagens autônomas, cheias de metáforas de sentidos diversos para o fruidor.

Assim, a complexidade da fragmentação do espetáculo compõe um mosaico de elementos estéticos. Estes promovem um trabalho de decifração da obra, exigindo uma atenção maior do espectador que, na procura de uma unidade significante, rompe com catarse, pois o discurso não se fecha, é aberto. Desse modo, assistir A dama do mar é mergulhar em um labirinto de imagens provindas de outro espaço-tempo.

A encenação se baseia na peça homônima de Susan Sontag, inspirada no texto de Henrik Ibsen. Escrita em 1888, a obra antecipa procedimentos da última fase do dramaturgo norueguês, voltada para o drama introspectivo de traços simbolistas. Suas personagens, assim, começam a indicar representações de estados de alma, cuja verdade é interior: seres humanos solitários e alienados uns dos outros, em busca da libertação individual.

A trama é aparentemente simples, porém com um toque de misticismo: conta a história de Ellida Wangel, asfixiada em um lar burguês entre os fiordes, que a afastou de seu elemento, o mar. Devido à loucura da mãe e à morte do pai, abandona o farol onde vivia para se casar com um médico de aldeia viúvo, com duas filhas – Bolette e Hilda –, vivendo à sombra da memória da falecida esposa. Nesse enlace, quebra a promessa de amor feita ao Estrangeiro, um marinheiro que jurou buscá-la um dia. Sua imagem a atormenta como uma doença, principalmente após a morte de um bebê que tinha o mesmo brilho de seus olhos, que mudava de acordo com as marés. Certo dia, o Estrangeiro volta, e Ellida precisa escolher.

 

Pode-se dizer que esta peça de Ibsen está permeada por símbolos e significados que escapam de um discurso racional, atingindo assim certo parentesco com obras simbolistas ou que utilizam figuras do inconsciente (…) Ellida não consegue prosseguir a sua vida porque está ligada a uma promessa. O drama A dama do mar traz como problema a relação entre liberdade e determinismo. Ibsen trabalha com o tema da busca de si e da autenticidade neste novo conjunto de elementos (BARROS, 2009, p.70).

 

Assim como Barros, Conde Prozor [s/d], acredita que a obra evidencia o mistério, o livre-arbítrio e a luta contra si. Susan Sontag (1999), de outra maneira, reescreve a peça devido à necessidade de modificação de elementos essenciais do enredo – a partir do resgate de lendas escandinavas, do corte de personagens e de palavras, e da mudança no ritmo da exposição do texto em diálogos curtos e monólogos articulados. Ela revela que Ibsen, nos rascunhos de A dama do mar, estava na dúvida entre dois caminhos de criação distintos: o primeiro, arquetípico, fundamentado em lendas nórdicas, sobre a impossibilidade de relação entre seres de naturezas distintas; e o segundo, mais próximo dos moldes realistas do teatro do século XIX, tchekhoviano.

Por fim, o dramaturgo norueguês decide bifurcar as duas veredas. A condição selvagem de Ellida é incompreendida pela vila burguesa, pela família e por ela mesma, até que a liberdade de escolha, dada como um presente por Hartwig, a humaniza. Sontag conjectura que, levado pelo choque causado por  A casa de bonecas [3], Ibsen sente-se pressionado a escrever a história de uma esposa descontente que decide permanecer com a sua família. Ellida é “curada” pelo amor abnegado do marido médico, como em um antídoto à peça anterior.

A pensadora alega que o “final feliz” de A dama do mar não convence. Por ser uma criatura marinha, Ellida não cederia às parcas palavras do marido aflito; caso contrário a personagem seria apenas neurótica. A estabilidade do matrimônio como salvação da família pode ter sido revista por Ibsen com o retorno da personagem Hilda – manipuladora e diabólica – na obra Solness, o construtor.

Reconhecendo a atração causada pela peça, Sontag, em sua releitura, dá vazão ao caráter mitológico e arquetípico dos primeiros esboços de Ibsen – desse modo, pois, acredita aguçar a sensibilidade artística de Robert Wilson.  Foi ela que sugeriu a criação do espetáculo ao amigo encenador que, inspirado por seu pessimismo, utilizou várias camadas de símbolos, sobrepostas para representar os escombros das almas dos personagens em cena.

 

Ellida

Eu não gosto mais de nadar.

Você entende.

Hartwig

Ela me pertence agora, como antes, nos primeiros anos de nosso casamento. Está calma. Mas já não é a minha dama do mar.

Ellida

Estou calma como um tanque. Fico imóvel. Fiquei com ele (…)

Eu podia pular no mar. Podia nadar e nadar. Podia nunca mais voltar. Acho que vou fazer isso. Agora mesmo.

Só vou terminar este último pedaço de bordado e então vou me levantar e vou até o mar me jogar.

Ou melhor, vou levar Hartwig até a praia comigo e apontar o horizonte para distraí-lo e aí esmago a sua cabeça com uma pedra lisa e aí pularei no mar e nadarei, nadarei…

Hartwig

É tão maravilhoso, minha amada, ver você assim. Em paz comigo. Em paz com você mesma (SONTAG, 2013, pp. 63-64).

 

A peça segue quase fielmente o texto escrito e as didascálias, com exceção de uma pequena cena cortada. Entretanto, as palavras tomam sentidos e formas diversas ao sair da boca dos atores, seguindo a plasticidade típica do encenador estadunidense, a partir da desintegração do discurso e da construção de estruturas fonéticas complexas [4]. O corpo dos artistas também desenha partituras exageradas, fantasmagóricas e de deformação física, com Leitmotivs de movimento ao longo da obra e máscaras faciais.

O espetáculo caracteriza-se pela sucessão de tableaux vivants, e os atores são como tintas dessas telas. A ópera de Wilson é uma paisagem povoada por sombras, ruídos ensurdecedores e metáforas marinhas: um barco a vela, barulho de mar e gaivotas, ondas quebrando, um ciclorama sobre o qual luzes assumem desde tons azulados de céu e de água a cores vivas de representação de estados interiores, o vestido escuro que sugere a cauda de uma sereia morta, utilizado pela personagem central.

Ellida movimenta-se como o mar, flutuando lenta e instável, alheia a tudo – está dopada pelos remédios receitados pelo marido; Hartwig comporta-se às vezes como narrador perverso de sua versão pessoal dos acontecimentos, científico e em busca da “evolução” da esposa; Bolette e Hilda fazem contrapontos superestimulados à aparente calmaria da madrasta, formando cacos na obra que oscilam entre a passividade da primeira e a agitação da segunda – que com suas partituras repetitivas e sua voz aguda já demonstra índices do mimo infantil e da perversidade que se intensificarão em Solness, o construtor; o Estrangeiro não fala e quase não age, é apenas o arquétipo do homem viril, salvador de mulheres indefesas e, assim sendo, Ellida conversa com ele em um monólogo solitário, dando voz às suas ações como se tudo não passasse de fruto de sua imaginação.

Estamos diante do tempo do sobrenatural, da artificialidade de um universo onírico distante. Tais características ressaltam o conceito pós-dramático de experiência que, por meio da produção de novas formas de presença do artista e da encenação, traz consigo propostas de percepção anti-ilusionistas. Neste sentido, a validade da cena não está na literatura, e sim na composição de signos abertos que jogam entre si.

 

A tarefa do espectador deixa de ser a reconstrução mental, a recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar sua própria capacidade de reação e vivência a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida (…) O que está em primeiro plano não é a encarnação de um personagem, mas a vividez, a presença provocante do homem (LEHMANN, 2007, pp. 224-225).

 

Wilson é mestre da encenação pós-dramática e já no início de sua carreira encontra no trabalho terapêutico ensinado por Byrd Hoffman, na adoção de Raymond Andrews (surdo-mudo) e de Christopher Knowles (autista), os estímulos fundamentais de seu projeto poético. O contato com esses distintos níveis de percepção reverberou na evocação de outras formas de linguagem cênica, baseadas na composição pictórica de múltiplas interpretações possíveis. Trata-se de um teatro de imagens simultâneas, reconstruídas a cada momento, no qual o corpo do ator é suporte para a pintura cênica. Também corroboram para a construção da sua estética paisagens sonoras que trazem “textura” aos espetáculos, transformando o discurso verbal em fala coreografada.

O elevado custo da produção dos espetáculos de Wilson levou-o a buscar alternativas de criação e inserção mercadológica, tais como videoinstalações, filmes para televisão e cinema. Entretanto, a despeito da excelente qualidade da encenação, acredito que, no caso de A dama do mar, o espetáculo está de certo modo pensado para uma fórmula fácil de ser adaptada aos diferentes países nos quais é reencenado. Por um lado, o intercâmbio entre artistas de diferentes realidades poderia ser bastante frutífero para a recriação do espetáculo e, por outro, as partituras extremamente marcadas “permitiram que o encenador se ausentasse da maior parte dos ensaios da montagem brasileira” [5], que ficaram a cargo de seus assistentes.

Além disso, a dramaturgia do ator e seu processo de criação são sufocados em prol da dramaturgia da cena, construída em “escala industrial”. Os artistas Lígia Cortez, Ondina Clais Castilho, Hélio Cícero, Bete Coelho e Luiz Damasceno, integrantes da montagem nacional, contam que tentaram buscar alternativas para deixar sua marca na obra [6], que infelizmente é uma fórmula pronta para o mercado. Talvez não tenha acontecido o mesmo com a primeira encenação, realizada na Itália em 1998.

 

[Luiz Damasceno] “Não adianta, nós não somos europeus, não temos aquele distanciamento que se costuma ver nas produções de Wilson”, explica. O encenador discorda. Afirma não notar grandes alterações na montagem brasileira, mas admite ter modificado algumas marcações: “Meu trabalho alcançou o mesmo resultado em todos os países onde exibi a peça” (MELLÃO, 2013).

 

Tais questões não alteram a beleza do espetáculo. Arthur Holmberg (1997) divide a trajetória do encenador em quatro fases. A primeira, acerca das óperas barrocas sem palavras, extremamente sinestésicas e estimuladas por Hoffmann e Andrews; a segunda, da desconstrução arquitetônica da linguagem, por influência dos jogos matemáticos de Knowles; a terceira, da dramaturgia do fragmento e da semiologia, incitada pela poesia cênica de Heiner Müller; e a atual, da confrontação com os clássicos. A dama do mar é fruto deste último momento, no qual a mediação com a obra-prima é filtrada por aspectos do contexto cultural. Sontag adverte, no entanto, que não lhe interessa a simples “roupagem contemporânea” da dramaturgia e sim seu diálogo franco com a sensibilidade do encenador.

Holmberg afirma que Wilson não ilustra o texto escrito, mas o ilumina. Transgride o realismo literário e, por meio do artifício, evidencia o caráter grotesco da encenação, em um movimento oscilatório entre a negação e o resgate do clássico. Vale lembrar, ainda, que A dama do mar traz um epílogo ausente em Ibsen, quando trata do questionamento da escolha [7]: do instante fugidio de liberdade que escapa como água dos dedos e tudo o que resta é melancolia – sentimento que permanece ao sairmos do espaço de representação.

 

Notas

[1] A obra foi encenada com elencos locais em diversos países: Itália (1998), Coreia do Sul (2000), Polônia (2005) e Espanha (2008). Graças às precisas partituras e estruturações plásticas do espetáculo, o encenador não esteve presente na maior parte dos ensaios com os artistas brasileiros. Estes foram, em sua maioria, conduzidos pelo assistente Giuseppe Frigeni. Ainda no artigo, discutiremos a fragilidade desta metodologia de trabalho.

[2] Vale lembrar que, desde os rituais antigos, o teatro popular sempre subverteu a ditadura da escrita.

[3] A autora se refere à decisão da personagem Nora de abandonar marido e filhos, em busca de si mesma.

[4] GALIZIA, op. cit., passim.

[5] MELLÃO, 2013, passim.

[6] Id, passim.

[7] Transcrito acima. No trecho, nos deparamos com Ellida depois de sua escolha. Está seca, ainda mais desaclimatada do que antes.

 

Bibliografia

BARROS, Wagner de. Notas sobre o conceito de existência autêntica. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Marília, 2009.

GALIZIA, Luis Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986.

HOLMBERG, Arthur. The Theatre of Robert Wilson. United Kingdom: Cambridge University Press, 1997.

IBSEN, Henrik. A dama do mar. Seis dramas. São Paulo: Ediouro, [s.d.]. (Parte II)

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: CosacNaify, 2007.

MELLÃO, Gabriela. À moda da casa. Revista Bravo Online. Edição 190, junho de 2013.

PROZOR, Conde. A dama do mar – Prefácio. In: IBSEN, H. Seis Dramas. São Paulo: Ediouro, [s.d.] (Parte II).

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2006.

SESC-SP. A dama do mar. Programa do espetáculo. São Paulo: 2013.

SONTAG, Susan. A dama do mar. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

______. Rewriting The Lady from the Sea. Theatre 29 – n. I. Yale School of Drama 1999. p. 88-91.

 

 

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