Performance como resistência: a coabitação na Casa Amarela, na Vila Romana

 

O Cenário

O que havia aqui? Uma pergunta teima em ressurgir a cada saída na rua, pelas calçadas de um antigo bairro operário da Zona Oeste da cidade de São Paulo. É uma pergunta saída da boca do flâneur suburbano que todo o dia enfrenta o trânsito maquínico com o corpo humano, transeunte que ganha os espaços flexíveis que os automóveis preenchem, mas que não podem dobrar (o corpo pode), mudar abruptamente de direção, correr e deslizar pelos vãos dos espaços das calçadas. O transeunte não tem carro, por isso tem maior disponibilidade de visão: tem de atravessar a rua, olhar o sinal de trânsito, atento que está a um entorno freneticamente mutante, tornado irreconhecível em tempo tão curto. A visão do flanêur capta essa mudança que as pessoas comuns mal percebem, já que um dia, para elas, é a repetição do outro e, ademais disso, não têm tempo. Como na cena baudelairiana, a disponibilidade funcional do flâneur é o segredo de sua poética. Ele é capaz de ver o desaparecimento de um mundo, coisa que, para os outros, tal como no caso do movimento de rotação da terra em torno de seu próprio eixo, é verdadeiramente imperceptível. A guerra entre automóveis e pessoas reproduz-se, no espaço urbano, na guerra entre a fixidez da memória dessas visões cotidianas e a força fáustica da destruição para construir – no caso: destruição de casas (casas simples, geminadas), de galpões e fábricas inteiras para dar lugar a novos empreendimentos imobiliários de duas, três garagens, espaço gourmet e seguranças vestidos de preto.

O que havia aqui? Uma pergunta cumulativa a respeito de destroços. A cada saída à rua, uma nova destruição. Aqui havia um tintureiro, ali um camiseiro, acolá uma loja (agora se veem, por outro lado, muitos cabeleireiros). A paisagem urbana, produto da gentrificação, é um fenômeno bem conhecido, comparável, detectável. Estudiosos do urbano e das cidades conhecem-na muito bem. Mas os processos interiores, produtos da subjetivação da experiência do confronto entre o conhecido e o estável, por um lado, e uma força que não se domina e que é avassaladora na sua voracidade destrutiva, cimento contra cimento, por outro lado, estão completamente fora do alcance da possibilidade de controle – esses processos, pois, são ainda pouco conhecidos.

A Vila Romana é um bairro da cidade de São Paulo situado na Zona Oeste e caracteriza-se por ser uma região que concentra um rico patrimônio industrial formado por galpões, casas operárias e antigos sítios fabris. Para ser mais preciso, melhor seria dizer: concentrava. A especulação imobiliária atualmente em curso em toda a cidade foi particularmente dura nessa região, destruindo boa parte dos espécimes edificados que atestam a importância histórica da cidade e do bairro para a industrialização do país, traço imamente do moderno em nossa experiência histórica. Por essa razão, a preservação desses conjuntos construídos, muitos deles bem antigos, datando dos primeiros anos do século XX, constituiu um movimento de contracorrente à subtração da memória que de outra forma jamais será restituída. É sobre a base desse movimento dos moradores que vai atuar a performance do dia 27 de abril de 2014, concebida pela artista plástica Janice de Piero em parceria com o músico Loop B, chamada Coabitação na Casa Amarela. Janice tem um histórico de exibições em mostras e galerias da cidade; Loop B é um pesquisador de sons trabalhando na confluência entre a música eletrônica e a intervenção sobre objetos comuns que, no entanto, geram uma sonoridade incomum. Ambos acordaram sobre a necessidade de exprimir o mal-estar no pedaço.

 

O Pedaço: a Rua 

A demolição é para sempre. Ruínas não podem ser repostas, a menos que sejam em uma outra forma, cujos material, contorno, linha e “espírito” já estão sob nova influência, a do arquiteto e das injunções econômicas e paisagísticas de uma outra época. O calçamento de paralelepípedo e a ignorância da garagem são impensáveis numa construção contemporânea. Exigências funcionais da vida urbana impõem novos critérios de beleza e alteram a percepção do gosto, na medida em que introduzem um contrapeso à mera fruição descompromissada e do livre curso da inspiração e do traço, ainda que canalizadas numa ordem de “estilo” de construção mais ou menos padronizada (como as casas de vila, por exemplo). O grau e o alcance da estandardização são proporcionais ao raio de incidência dessas novas e progressivas exigências, que não respeitam diferenças de classes sociais e de tempos históricos. O sentimento de “apertamento” vindo de todos os lados vigora com uma frequência que é muitas vezes sentida mas raramente verbalizada ou racionalizada pelos espectadores desse espetáculo da destruição que é a voracidade com que as empresas de construção se apoderam dos terrenos calculadamente adquiridos num mercado de terras urbanas cada vez mais mergulhado em uma lógica financeira abismal de difícil acesso. Esses espectadores, contudo, são pessoas comuns. Moradores e proprietários de casas de bairros com características comunitárias por vezes marcantes, como é o caso dos bairros paulistanos com implantação de populações de imigrantes. A Vila Romana, como o nome diz, foi formada por imigrantes italianos, muitos deles trabalhadores das fábricas que por ali se implantaram, como as do muito conhecido Conde Matarazzo. E essas pessoas comuns viveram anos nessas casas, desenvolvendo aí uma experiência de interioridade com os objetos que dela faziam parte. São esses objetos que agora parecem estar vindo para fora, para a rua, como que numa espécie de transbordar do sentimento de “apertamento” e de sufoco que a especulação imobiliária impõe àqueles que ficaram no local, que não venderam suas casas, que não se moveram com todos os que, expulsos ou de bom grado, abandonaram a terra arrasada da promessa de qualidade de vida e de convivência. A Casa Amarela, uma casa construída em 1921 por uma geração de italianos oriundos da região de Friuli e de Padova, não tem o conforto gentry, da pequena nobreza rural. Mas tem o charme de uma teimosia elegante e singela, que é evidente no desenho simples e interiorano, contrastando com a modernidade kitsch dos edifícios do entorno. Ela é uma referência quase acidental para os passantes da esquina entre as ruas Camilo e Sepetiba. Muitos deles reservam alguns minutos a mais admirando-a, como se a materialidade de sua presença e o brilho de sua cor fossem o anúncio da permanência sonhada num turbilhão de mudanças sem sentido. A Casa Amarela é uma performance em si. Sua fixidez acaba sendo crítica, pois direciona seu alvo contra um movimento doidivanas, nervoso e vazio de ocupação do dinheiro sobre o espaço. Ali há tempo para uma pausa, para a cadeira na calçada e a porta aberta. De fora se vê um ateliê, que ocupa todo um lado da casa, enquanto o outro lado é o lar propriamente dito. Essa disposição foi usada exatamente dessa forma para a apresentação do dia 27 de abril, um domingo.

 

O Ato: Coabitação na Casa Amarela

Os convidados e pessoas comuns ficaram em torno da porta da casa, aguardando possíveis surpresas saídas do seu interior. Curiosamente, a performance não está nas obras expostas dentro, guardadas no ateliê (cuja exibição, no entanto, estava aberta ao público interessado: chama-se Lugar Mítico), mas no uso que se fez dos utensílios ordinários da cozinha, do banheiro, da copa, do quarto de dormir e da sala de estar. Objetos inesperados, acompanhantes materiais da permanência, foram eles tornados obras de contemplação sonora graças à intervenção de Loop B, o artista que é capaz de extrair som desses objetos, tendo por base uma batida eletrônica bem dosada e cativante. Concebida por Janice de Piero, a dona da casa amarela, e registrada com grande maestria por Samuel Malbon, companheiro de outros eventos no mesmo local, a performance sonora de Loop B, feita na calçada da casa, parecia dar vazão ao sentimento de “apertamento” que exige o descarte das coisas velhas (afinal, a Casa Amarela é uma casa velha) como uma ordem impessoal que chega até a esfera do privado, da interioridade, sem consideração com o que essas coisas velhas, afinal, significam. Sem a cumplicidade dos perdedores da memória (memória essa que tais objetos ainda conservam – a tigela da nona; a louça de porcelana do enxoval da mãe; a baixela da sala…), a performance jamais teria sido bem-sucedida. Ela precisou do sorriso dos moradores dali e d’alhures que para a Casa Amarela acorreram, atraídos que foram pela convocação de uma cohabitação bem arquitetada por Janice (graças a uma versão anterior, de 2013, feita ali). O sorriso de espanto e aprovação deles era como que um alimento ou combustível para Loop B seguir em frente, já que a empreitada continha algum risco, afinal, tudo pareceria muito improvisado e improvável, apesar do comprovado profissionalismo do artista. Mas eles reagiram positivamente à migração dos objetos que fazem parte do interior para o espaço do exterior, do privado para o público. Objetos do cotidiano atual também foram empregados, tais como pregadores de roupa, chinelos da filha, a gaveta da geladeira, um criado-mudo, uma manequim (a Beth, habitué de outros eventos) e até uma escada. De alguma forma, a performance artística comunicou essa expectativa difusa das pessoas do bairro de que o sufocamento e a compressão do espaço pelos condomínios altos e sem vida (um exemplo de intervenção-denúncia nesse sentido foi o ato organizado por Janice, em 2012, chamado “A Caçamba da Vez”) mereciam uma expressão de transbordamento do privado para o público, para a calçada. Há relatos sobre os tempos antigos do bairro que dizem que os italianos e seus descendentes ouviam ópera na rua, do som saído do gramofone ou do rádio – esses relatos muitas vezes circularam nas conversas da Coabitação n. 1 que, por sua vez, repetiram depoimentos e conversas anteriores na Casa Amarela, de maneira espontânea. Portanto, a vida pública do bairro, muito mais desenvolta no passado do que no presente, retomava um caminho já percorrido, mas deixado de lado pelo progresso. Era a lembrança de que algo (a ópera na rua, por exemplo) já tinha estado “ali” – como o sentimento de quem procura se lembrar da casa que havia antes de os tratores a terem reduzido a pó e entulhos –, e o sentimento, resultante dessa percepção, de que, ao se esquecer o que havia antes do novo empreendimento, algo se perde para sempre, porque não haverá mais nada para marcar que alguma coisa como uma casa já existiu naquele pedaço preciso. O mapa da memória vai ficando, com o tempo, repleto de lacunas. O que havia, afinal, aqui? – pergunta o transeunte interessando e nostálgico, atravessando as ruas da região. No mesmo diapasão, os objetos saídos da interioridade privada, como baú do tesouro da memória, vão dando algumas respostas, algumas pistas. Essas pistas são feitas de lembranças.

Muito feliz, nesse sentido, o encontro da artista Janice com o músico performático e experimental Loop B, que realizaram uma “comunicação das almas”, como diria Proust. O produto do encontro dos dois foi a performance pública na calçada da Casa Amarela, que ativou as lembranças das pessoas e, ao mesmo tempo, as respostas inconscientes à pergunta O que havia aqui? Em 27 de abril, numa tarde de outono, com sol tépido e claridade transparente, uma exibição de extração de sons improváveis de objetos bem prováveis de uma casa comum teve lugar na Vila Romana. Por conseguinte, essa performance foi, ao mesmo tempo, uma apropriação do espaço público por intermédio – pasmem! – do sacro domínio do interior e da intimidade, daquelas coisitas que devem ser escondidas (como uma panela), e não expostas a todos. Janice concebeu a Coabitação como um espaço aberto – a casa – em que as pessoas entrariam e contariam a sua história. Concebeu, portanto, um ato político-performativo (e não político-institucional), em que a experiência e a palavra seriam os elementos “do contra”. Na verdade, inadvertidamente rememorou, com isso, o sentido original da política como palavra que cria o mundo humano, nas trilhas deixadas por pensadores como Hannah Arendt: 

 

A ação que ele [o ator] inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (…) Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. (A Condição Humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 5. ed., 1991)

 

Associando-se ao estilo ready-made de Marcel Duchamp, Loop B, por sua vez, deu uma feição sensorial à presença da casa como símbolo da permanência, usando os materiais de que dispunha. Trabalhar com o que existe parece ser o seu mote, conforme já se havia visto em apresentações anteriores (na Casa do Núcleo, com Fernando Sardo, em março de 2013, por exemplo). Na estrada desde 1992, o percurso de Loop B é vasto e rico, conforme pode ser visto em diversas ocasiões. Nele são menos as palavras e mais os sons que falam, comunicam.

Assim como Loop B não constrói os instrumentos de que se utiliza nas performances, usando o que está disponível no momento (tal como as sucatas), Janice não cede ao afã do novo, mas cria um ambiente em torno da positividade da permanência. Afinal, a Casa Amarela, nonagenária, é uma espécie de vitória sobre o tempo. Lembra aos moradores que pode haver um espaço neste mundo onde a pergunta O que havia aqui? deixa de carregar uma conotação de perda e desconforto: eles sabem que ali, naquela esquina, sempre houve uma casa, com pessoas dentro, com nomes e história. Janice e Loop B ajudaram, cada um à sua maneira, a contar essa história.

 

 

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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