Reminiscências a Partir da “Mostra Performatus #1”

 

Talvez nada do que eu diga seja exatamente uma análise crítica, mas sim uma constatação do que vivi, uma memória pessoal que pode ser partilhada tanto com quem imergiu num acontecimento tão intenso como a Mostra Performatus #1 quanto com quem quer tirar impressões sem ter estado fisicamente presente no mesmo espaço que eu. Crio aqui uma narrativa em primeira pessoa, uma descrição, uma crônica com impressões de quem frequentou toda a programação de um episódio marcante para a arte da performance que é desenvolvida, nessa segunda década do século XXI, em todo o mundo e não só no território brasileiro, não só na cidade de São Paulo.

Através do enredo O Corpo como Sujeito e Objeto na Arte, a Mostra Performatus #1, evento encabeçado por Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey, reuniu uma série de artistas (do Brasil e do mundo) que se apresentaram ao vivo entre 27 de março e 11 de abril e, também, um extraordinário conjunto de vestígios de ações performáticas que formou a exposição Corpo (I)materializado. Além das ações ao vivo e da exposição na Central Galeria de Arte em São Paulo, a Mostra Performatus #1 concretizou duas residências artísticas, sendo uma com o artista italiano radicado em Londres, Manuel Vason, que realizou o workshop Become an Image em parceria com nove artistas convidados, e outra com o coletivo ES3, que é composto por André Bezerra e Chrystine Silva.

Já na abertura da mostra nos deparamos com três ações que consagravam por completo o conceito estrito proposto no evento; uma delas foi executada por Ana Hupe, outra por Loop B e a terceira por Jorge Soledar.

Ao entrar no espaço, numa atmosfera completamente vibrante composta pelos sons simultâneos de quatorze vídeos (pertencentes à exibição Corpo (I)materializado), que se misturavam e formavam um caótico ruído, noto um pequeno muro de gesso que atravessava o canto da sala de exposição de forma diagonal e, ali, vejo uma performer aprisionada pela instalação/escultura, tornando-se, assim, parte dela também. O muro de gesso, rígido, foi construído por cima de suas pernas e a impedia de fazer muita movimentação; tornava o corpo da artista Sol Casal quase estático. Assistíamos apenas ao sutil movimento desempenhado pela sua respiração e, por vezes, a algum outro mínimo sinal que o seu corpo emitia, como o piscar dos olhos e o ato de umedecer os lábios. Claro, por vezes surgiam movimentos menos sutis que esses, mas eram raros. A ação termina com o artista Jorge Soledar a libertar aquele corpo feminino para devolver a sua fluidez para fora do espaço restrito em que estava. A ação, muito bem escolhida pela curadoria, era a mais pura manifestação do corpo (i)materializado, quando exibia três momentos: a instalação com o corpo atravessado pelo muro de gesso, o ato de libertar em público aquele corpo e o resultado do muro marcado pelo corpo que já não se encontrava mais ali materializado, que buscou novas formas de consolidação, novas materializações.

Ana Hupe, manteve-se também aprisionada em seu indumento Zentai com estampa tropical, descrevendo como seu corpo ornado e camuflado de cores que remetem à nossa fauna e flora está sufocado numa metrópole asfixiante como a cidade de São Paulo. A artista chegou já trajada no ambiente da galeria, ou seja, percorreu antes um caminho que envolveu grande parte da Vila Madalena.

Loop B fez música com instrumentos não convencionais, remetendo nosso olhar para a sua própria trajetória, a qual envolve uma série de composições sonoras experimentais, bem como para a da banda industrial Einstürzende Neubauten, enfatizando a relação existente entre o corpo e o espaço urbano quando se utiliza de resíduos pesados como latarias de carro, um andaime de construção, restos de ferro-velho, promovendo uma composição harmônica que bem ilustra os barulhos que ouvimos diariamente, os sons ruidosos que evidenciam nosso aprisionamento, nossa materialização inescapável que não está nunca fora do nosso próprio corpo, que, por consequência, está confinado ao espaço que habitamos. Mas Loop, ao mesmo tempo, torna isso lúdico e reinventa essa relação, tornando-a mais leve quando imaterializa, por meio da arte, sua existência num corpo ilusório, num corpo que brinca e nega (ou não precisa se apoiar) o termo fugere urbem, que foi utilizado na literatura árcade para subestimar o meio urbano como aprisionador.

Priscilla Davanzo, com a colaboração de Thiago Soares, crava na sua carne a relação existente entre o seu corpo e a cidade de São Paulo; ela se utiliza de objetos ganhados alguns dias antes do início de sua ação para prendê-los literalmente ao seu corpo através da sutura.

O trabalho de Clarissa Sacchelli, com colaboração de Renan Marcondes, faz alusão ao fardo que carregamos de não podermos escapar dos nossos próprios corpos, de não podermos extravasar a carne que cerra a nossa existência, mas quando libertados das fitas colantes que os prendiam na parede da galeria, eles ilustram a noção que nos é dada sobre o “corpo utópico”, explicam a devolução da ilusão de liberdade ao sujeito.

Na ação de Shima, por instantes percebemos a presença da utopia do corpo quando este é coberto por uma densa camada de argila. Inicialmente, o artista apresenta-se revestido de um irreprochável terno arrematado pela tão sufocante gravata, criando uma metáfora do sujeito contemporâneo preso ao fardo do trabalho na lógica capitalista que nos rodeia. Ao despir-se e mergulhar na argila, conjeturamos sobre uma suposta libertação daquele corpo, mas, depressa, o corpo já não mais mantém-se nu, coloca-se prontamente impecável dentro do mesmo traje que inicialmente ocupava, no entanto, dessa vez, com a argila intermediando o contato da pele e do tecido, com uma camada a mais a distanciar o olhar de fora para o cerne daquele sujeito.

Tenho tudo arraigado e ainda em processo de “cozimento” na minha memória: Nathália Mello, que estabelece uma reflexão sobre a sua subjetividade, resgatando suas origens referenciadas através da reconstrução da memória resgatada de sua avó índia e de outra, que foi operária, gerando, então, uma nova estruturação do seu self; Felipe Cidade, que remarca em coloração negra o desenho de um mapa em cada uma das palmas de suas mãos com o recurso da tatuagem produzida ao vivo, realçando imagens que já foram realizadas em outro momento, refazendo, reafirmando, portanto, uma simbologia já assinalada na sua pele; Nathália Coutinho e Luiza Prado, que focam no que é comunicado sem verbos; Daniel Toledo, que debocha com precisa maestria sobre a condição de pudor relacionada ao indumento; Ana Montenegro e Maurizio Mancioli, que magnetizam os espectadores com uma composição minimalista e fazem com que muitos percam a noção de tempo num concerto instrumental, que chega quase a ser hipnótico.

Muita imagem percorre a minha cabeça ainda: o chá no meio urbano com as meninas do Contratempo Coletivo; a hidratação obsessiva de Vivianita; o desvario de longa duração sob efeito de calmante de Rubiane Maia; o dizer o próprio nome por extenso sem quase nunca errar, de Paulo Vega Jr.; a singeleza para abordar um assunto tão pesado como o da prostituição, na ação de Solange Bonfil; a violência e determinação na performance de Elen Gruber; a precisão da composição (des)equilibrada de Renan Marcondes; as relações de trocas vivas estabelecidas com Maíra Vaz Valente; a composição perspicaz de Tiago Cadete sobre a construção da sua própria subjetividade, ao envolver sua situação de estrangeiro (ou de um novo cidadão cosmopolita) e, também, categorias correspondentes à sexualidade.

Ainda possuo vivos em mim os ruídos vindos das palavras digitadas por Tânia Dinis, assim como o sarcasmo de Lucio Agra na sua composição que misturava Jesus Cristo com Helio Oiticica. De Grasiele Sousa, guardo a sua imensa genialidade para refazer, de forma oportuna, uma ação clássica da história da performance brasileira: Pancake (2001), de Márcia X. De Fernando Ribeiro, o humor apreendido por todos é, evidentemente, a prova de que seu discurso, circunscrito em promessas que os seres humanos fazem uns aos outros, ultrapassa a obviedade. Mercedes Torres e Esteban Faroles me emocionaram e me fizeram atingir a percepção de como a proposta de acampar por três dias ininterruptos na galeria pode resultar numa analogia de uma verdadeira relação afetiva, com início, meio e fim. Snežana Golubović me ensinou a não ter medo de dizer “eu te amo”. Por fim, o coletivo ES3, assim como a forte parceria da dupla que realizou a mostra, Paulo e Tales, confirmaram que vale mesmo a pena proferir, quantas vezes for preciso, o amor que sentimos, mesmo que seja no trabalho, mesmo na vida e/ou na arte. Vale a pena.

Das palestras, reverberam os discursos coerentes, completamente racionais e sem deslizes de Suianni Macedo sobre performance e espaço urbano, a ousada conversa com Vanja Poty – que, para discutir ritual nas artes cênicas, apresentou-se despida e serviu vinhos para serem bebidos no gargalo, propondo uma ritualização efetiva no espaço, transformando toda a massa de pessoas em communitas –, o bate-papo sobre processo de criação com o fotógrafo Manuel Vason, a emocionante história que mescla arte e vida contada por Suzana Queiroga, as ações de Snežana Golubović apresentadas através de palavras por ordem alfabética, a fala precisa (com certo tom de humor) de Fernanda Carlos Borges, o vasto conhecimento teórico de Lucio Agra, bem como o trabalho de raça do Coletivo ES3.

O que ficou vivo na recordação de quem percorreu a Mostra Performatus #1 entre os dias das apresentações ao vivo pode não ser lembrado numa cronologia exata, mas, naturalmente, não escapa facilmente das nossas lembranças, que resgatam as imagens, misturam os sons, os cheiros, os tatos e, também, todo o paladar que sentimos nos encontros que se sucederam a cada dia. Os cinco sentidos foram acionados diariamente e isso impossibilita um total descarte da memória que constitui aquela vivência. É irrevogável o que foi promovido pelos fundadores da eRevista Performatus e amparado pela Central Galeria de Arte e pelo Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol; este é um evento que, provavelmente, entrará para a história e, naturalmente, fará imenso sentido para a posteridade comprometida com a arte da performance no Brasil e em todo o mundo.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

PELISON, Julia. “Reminiscências a partir da ‘Mostra Performatus #1’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e a autora

Texto completo: PDF