Glitter is a Bitch’s Best Friend [1]

 

Assisti, em 2013, ao trabalho Keep it real, do artista Sergiu Matiș, no SODA [2] Research Showings, no Uferstudios em Berlim. Por ter me atraído o desejo e a curiosidade, e por ter me retirado do meu lugar confortável de público, escrevi sobre essa obra.

A quebra de uma cena convencional, em que a quarta parede impera, se instaura na primeira interpelação de Matiș: Welcome, bitchies! Nós, o público, estávamos claramente num jogo de não passividade perante o espetáculo. O artista nos transforma em parte da cena. Nos transformou em bitchies. Esse é o propósito do The Bitch Manifesto, como também se chama a obra: usar da palavra bitch, carregada de abjeções, para transformar o mundo. Com isso, nos transforma em sujeitos, não mais de uma ideologia que nos submete violentamente, mas como um termo político que nos empodera.

Sempre considerei de fundamental importância conhecer a história de vida dxs [3] artistas, pois acredito que crítica e corpo estão conectados. A pessoa está implicada na cena, mesmo que em seu subtexto. É impossível apagar a biografia nas escolhas em relação aos elementos cênicos. Nesse caso, é um trabalho de jogo de poder. Xs subalternxs falam.

Matiș é um artista da Romênia, do Leste Europeu. Pela sua biografia geopolítica, é um artista pós-socialista. Um artista queer feminista, como ele se intitula. Utiliza em sua obra o ensaio “Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, de Donna Haraway, para construir sua dramaturgia. Com isso, nos apresenta uma obra político-ficcional, tramada com ironia, para desestabilizar o sistema capitalista e um mercado de arte centralizador, fazendo parte dele. Na cena, corpos dançantes empoderados: mulher, Negro, queer. Corpos ciborgues como uma proposição ao conflito antropológico (leia-se: colonizador) entre natureza e cultura. Prazerosos e perturbadores, como a coreografia. Ciborgues no campo metafísico, nas relações de poder e nas lutas para desconstruir o patriarcalismo. O corpo ciborgue como fronteira transgredida, de perigosas possibilidades políticas.

Os corpos se mesclaram com o midiático e a dança contemporânea. Trabalharam a repetição dos movimentos como elemento, uma repetição dos videoclipes da MTV (Music Television), que contaminaram uma geração. Na dança, reprodução e repetição a fim de chegar a um movimento tecnicamente perfeito. Dupla crítica exposta: à dança e à sociedade industrial. Ou a uma dança a favor de uma sociedade industrial?

A obra é uma ficção e age nessa esfera. Nós somos bitchies, com prazer. E bitch que se preze necessita de seu momento de glamour. O glamour é o poder! Ao postarem-se com um foco de luz, e ao jogarem purpurina prata nos ventiladores ligados, estava feita a paródia que mesclava a cena do vento na saia de Marilyn Monroe no filme O pecado mora ao lado (Billy Wilder, 1955) e os diamantes oferecidos à mesma atriz no musical Os homens preferem as loiras (Howard Hawks, 1953). Eram os diamantes/purpurina que voavam em direção às garotas/bitchies em cena. Um excesso de purpurina que contaminou a todxs, incluindo nós e o espaço.

Ao final, na leitura do texto de Matiș, ele revela que a purpurina prata representava a transformação dos corpos em corpos ciborgues. Para mim, os corpos já eram ciborgues em suas proposições coreográficas, de acordo com o texto de Haraway. A purpurina me remeteu diretamente à estética Camp [4]. A cultura queer contemporânea herdou as estruturas e estratégias do Camp, de acordo com Gregory Woods. A parte final da coreografia de Matiș se mostrou também interessante: me remeteu a vermes purpurinados rastejando em purpurina! Organismos animalescos, vermes glamourosos e necessários: bitchies!

Para concluir, escolhi o nome do texto “Glitter is a bitch’s best friend” como uma paródia povera, livre e política em relação ao “Diamonds are a girl’s best friend” para demonstrar a crítica ao sistema capitalista que a obra apresenta. Purpurinas prata brilhando como diamantes. Diamantes como o glamour capitalista, patriarcal, heteronormativo, classista e racista. Purpurina como o truque, o glamour pobre, queer e crítico. A obra é boa ao criticar o caráter glamouroso consumista do sistema e ao usar da ironia, como estratégia que Haraway utiliza em seu texto, para desestabilizar as cenas clássicas da dança e o lugar confortável e passivo da plateia. Apesar disso, os corpos em cena são corpos aparentemente normativos, com uma estrutura de balé clássico. Porém, em suas subjetividades, biografias e ficções, não! Essas são as vertigens do pós-humano. São as miragens das traduções. São os ruídos dos desejos. Afinal, meu tênis Adidas me colocará em apuros? [5]

 

NOTAS

[1] Paródia política da canção “Diamonds are a girl’s best friend” (Jule Styne e Leo Robin). Mantive o título em inglês porque originalmente foi escrito nessa língua e pela dificuldade de traduzi-lo e manter a mesma potência política. Uso a palavra Bitch a partir de uma perspectiva queer feminista: “Em um contexto feminista, pode indicar uma mulher forte ou assertiva, aquela que pode fazer os homens se sentirem ameaçados”. Ver em: <http://reallifeglobal.com/bitch-please-como-usar-a-palavra-bitch-corretamente/>. Acesso em: 30 de maio de 2015.

[2] SODA – Solo Dance Authorship é um programa internacional de mestrado na UDK Universität der Künst (Universidade de Artes) em Berlim.

[3] Eu uso o “x”, como em matemática, para indicar todas as possibilidades de pronomes nas questões de Gênero.

[4] Camp é interpretado como exagero, uma atitude irônica em relação ao mainstream cultural, e uma forma estética que celebra o artifício sobre a beleza. Camp é associado à cultura homossexual, à cultura drag queen e a um erotismo autoconsciente que questiona construções de gênero binárias. Pode ser compreendido também como paródia gay. Uma de suas características estéticas é o uso e abuso da purpurina.

[5] “When I am wearing my costume to a protest I wonder if it is not gonna be it that will start suffocating me… Are my Adidas shoes going to walk me into trouble?”, por Sergiu Matiș.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

COSTA, Pedro. “Glitter is a Bitch’s Best Friend”. eRevista

Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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