“Contos do Beiradão”: A Arte pela Arte e o Diálogo entre as Linguagens de Cena

 

Crítica realizada para a conclusão da disciplina Análise do Espetáculo II, no Curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas. Orientado e revisado por Vanja Poty.

 

***

 

Numa manhã de um sábado qualquer me levanto com preguiça e olho no relógio: nove horas. Pelo amor dos deuses! Esse não é um sábado qualquer. Tem espetáculo do 11º Festival de Teatro da Amazônia (FTA). Corre. Toma banho, escova os dentes, veste qualquer coisa limpa e voa para o Teatro Amazonas. Ufa! Cheguei a tempo. Sento em uma cadeira lá pela quinta fileira da plateia. Era um espetáculo infantil, mas eu já sabia. No FTA, os espetáculos adultos acontecem à noite e os infantis pela manhã.

Sempre gostei de peças para crianças. Lembro claramente dos momentos emocionantes que tive quando assisti a todas as apresentações do Sapo Tarobequê, no Teatro da Usina Chaminé. Essa memória sempre me faz querer voltar àquela época. Ótimo. Já borbulhava em expectativas acerca do espetáculo Contos de Beiradão, do grupo Arte pela Arte.

O primeiro ponto que me chamou atenção foi a iluminação: um degradê de cores frias, que iam do azul turquesa a tons mais acinzentados, projetados em um ciclorama. O som que vinha de uma das partes da coxia encheu toda a casa, do palco à última fileira. Aliás, pareceu alastrar-se para fora do teatro. A música era interessante, apesar do volume – um típico beiradão [1] que se escutava antigamente nas comunidades ribeirinhas amazonenses, e mesmo nas áreas urbanas de Manaus.

Os atores entraram em cena, reproduzindo o dia a dia ribeirinho: crianças correndo, mulheres lavando e estendendo roupas em um varal que descia até o palco, em um clima de beira de rio nos confins do Amazonas.

Ao que parece, não houve muita sintonia entre banda e atores. Era estranho perceber que os músicos estavam escondidos atrás das cortinas, o que certamente impedia que soubessem o que se passava no palco. Quando uma das atrizes começa sua primeira fala, a música ainda está tocando a todo vapor. Se foi proposital ou não fica difícil saber. Não se podia escutar o que a moça dizia: fosse a intenção dela se comunicar, sem dúvida, não houve êxito.

Após alguns minutos, o volume foi reduzido. Eis que entra em cena um ator vestido de pescador, com chapéu, calça dobrada na altura do joelho e um vício peculiar de puxar a camisa quando fala. Não se sabia mais onde se passava a narrativa: no interior do Amazonas, lá pelo Alto Solimões ou no sertão cearense. O sotaque confundia, atrapalhando a história por alguns momentos. O fato era que o rapaz que puxava demais a camisa e arrastava um sotaque, não se sabe de onde, apesar da voz gasguita [2] tinha uma ótima projeção vocal. Não posso falar o mesmo da dicção e da articulação.

A história era um apanhado de lendas amazônicas em uma miscelânea de dar nó na cabeça dos curumins. Misturava a lenda do Boto que se transforma em homem, encanta as moças, as engravida e desaparece; a lenda da Iara, que, ao contrário do Boto, encanta os homens e os leva com ela pro fundo do rio; a lenda da Vitória Régia, uma índia que se transforma em flor. A dramaturgia é inconsistente, dando a impressão de ter sido feita às pressas.

O ator gasguita e o texto mal-ajambrado foram o de menos. Depois de várias cenas em que o elenco todo fazia coreografias para cada dez palavras ditas, cheguei à conclusão de que não se tratava de um espetáculo de teatro, e sim de um recital de dança. Os bailarinos (atores) falavam, mas entre dança e diálogo havia um abismo enorme. As cenas não se conectavam com o argumento, sendo marcadas por piruetas, grand jetés e demi pliés. Sou fã de carteirinha de balé e a favor do diálogo entre as artes da cena, mas certamente esse não é o caminho.

Os bailarinos, por um lado, possuíam presença física interessante, mas suas falas não acompanhavam: sequer se podia ouvi-los, não havia intenção ou qualquer visualização de cena. Ao longo do espetáculo, era possível distingui-los dos atores. Estes, por outro lado, conseguiam doar um pouco de seus personagens à plateia, mas quando tinham que dançar, se atrapalhavam.

Os desenhos de luz encantam, preenchendo as cenas e estimulando a imaginação do espectador. Cabe lembrar que, merecidamente, a iluminação do espetáculo foi premiada na categoria infanto-juvenil. Era possível visualizar o entardecer do baixo rio Amazonas ao longo das cenas. Quanto ao figurino, colorido e vivo, fazia jus às vestimentas usadas nas comunidades do interior do Estado. Porém, pode ter incomodado atores e bailarinos na execução de movimentos mais elaborados, pois os tecidos pareciam duros e sem caimento.

No dia seguinte, durante o debate que acontece no Festival, compreendi a motivação do grupo para realizar Contos de Beiradão. O grupo Arte pela Arte surgiu da vontade de fazer teatro que acompanhava a Companhia de Dança Ballet da Barra, desde a sua fundação em 1995. Segundo Marta Marti, umas das criadoras do coletivo, os estudantes dos cursos de dança da escola manifestavam interesse em experimentar outras linguagens artísticas. Desse modo, contrataram o ator e diretor Tiago Oliveira – licenciado em teatro pela Universidade do Estado do Amazonas – para elaborar uma dramaturgia para o espetáculo de dança que a escola ensaiava.

O elenco também participou de oficinas de interpretação com Robson Ney, aluno do curso de Teatro da UEA e ator do TESC (Teatro Experimental do SESC Amazonas). A preparação corporal foi feita pela bailarina Magda Carvalho, coautora do texto. Sidney Fernandes e Marcelo Oliveira atuam na peça, compondo o elenco teatral do espetáculo. As bailarinas estudam na escola Ballet da Barra.

O espetáculo cairia muito bem em uma festa de fim de ano de escola, como conclusão de curso de iniciação teatral ou, ainda, como participante de um festival amador. Infelizmente, não está qualificado para participar de um festival como o FTA, de nível nacional – ainda que em fase de crescimento, mas com abrangência para os outros estados. Isso não significa que o intercâmbio entre linguagens da cena não seja possível. É uma questão de dedicação e comprometimento.

Fica a reflexão para futuros festivais: é preciso definir critérios mais rigorosos para a aceitação de espetáculos inscritos. Nove espetáculos para o mesmo número de vagas e inscrições na categoria infanto-juvenil foram aprovados, o que revela a falta de curadoria. É possível pensar, por exemplo, na divisão da ajuda de custo para espetáculos de mais qualidade, ao invés de trazer obras que não estejam aptas para o Festival. Por fim, vale ressaltar a necessidade de planejar melhor a divulgação do edital, com a devida antecedência. 

 

 

Notas

[1] Estilo musical típico da região Norte, que consiste em uma mistura de ritmos e diferentes influências. Surgiu nos anos de 1970 e até hoje é tocado em bares e festas de comunidades ribeirinhas.

[2] Termo tipicamente amazonense, refere-se à voz que é estridente e esganiçada.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

VASCONCELOS, Thaís; POTY, Vanja. “‘Contos do Beiradão’: A Arte pela Arte e o Diálogo entre as Linguagens de Cena”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e as autoras

Texto completo: PDF