Dramaturgia Musical

 

Tânia Dinis, Mono-Logo. Performance realizada no Porto, Portugal. Dezembro de 2013. Fotografia de Jorge Quintela

 

Ao interpretar de forma literal toda a mise-en-scène que define um monólogo, alguém certamente pode ter sentido alguma preguiça de enfrentar o frio da cidade do Porto para chegar à Verde-Rubro Associação Cultural e Artística para assistir à performance de Tânia Dinis em dezembro de 2013.  Seguramente, ela surpreendeu quem erroneamente pensou que se tratasse de uma peça teatral a incluir uma personagem pronunciando um texto decorado. Enganou-se quem assim raciocinou.

Foi justamente uma rejeição da palavra e da personagem; não era Monólogo o título da obra, mas sim Mono-Logo. “Mono” referindo-se exatamente ao som monofônico, ao áudio monaural, a uma composição captada por um único microfone, enquanto “Logo” fazia alusão ao instante, ao tempo imediato, mas também à lógica, à razão, à palavra, ao verbo, ao logos.

 

Tânia Dinis, Mono-LogoPerformance realizada no Porto, Portugal. Dezembro de 2013. Fotografia de Jorge Quintela

 

Como se se sentasse ao piano para produzir música, Tânia acomodou-se diante de uma máquina de escrever e, com auxílio dela, copiou o texto de Pedro Bastos (disposto no lugar de uma partitura) e o desvirtuou para uma nova lógica: a musical. Ao mesmo tempo que fez uma reescrita, ela usou esse texto para tocar seu instrumento barulhento, cujo áudio foi ampliado por um microfone e distorcido com o auxílio de pedais tal e qual se faz com uma guitarra, por exemplo. Ao mesmo tempo que víamos o gesto banal de uma pessoa a escrever um texto num arcaico instrumento, ouvíamos uma fusão de sons que não correspondiam àquele objeto que contemplávamos, pois eram alterados e difundidos como mixagem em um concerto ao vivo.

Na arte da música, alguns criadores, durante o futurismo na Europa, deslocaram elementos cotidianos para o âmbito da arte, dando origem às músicas feitas de ruídos. Inclusive, em 1913, Russolo escreveu seu manifesto A arte dos ruídos.

John Cage, nos Estados Unidos da América, também se apoiou nos estrondos cotidianos para fazer música e, assim, acabou por desenvolver o silêncio como arte musical em 4’33”, onde provou que não existe a possibilidade da ausência de som em nenhum ambiente; sempre haverá alguma espécie de ruído em qualquer situação e em qualquer lugar em que estivermos.

Cage contou, certa vez, em entrevista feita por Richard Schechner e Michael Kirby, que “poderia perceber a vida cotidiana como teatro” [1], ou seja, que poderia perceber toda realidade ao seu redor como arte. Tânia, em sua performance, procurou fazer exatamente isso; transportou um objeto corriqueiro (já obsoleto com relação aos computadores que o substituem) para o palco, sob a finalidade de produzir palavra escrita, mas principalmente para calar a voz empolada advinda do teatro convencional e improvisar música anti-harmoniosa em seu lugar. A performer pareceu incorporar aquilo que Nietzsche pregava acerca do verbo com relação à música, pareceu compreender muito bem como o logos, para esse filósofo, desempenhava um papel repressor, enquanto a música libertava.

Mono-Logo é uma aproximação, mas também um afastamento da artista com relação ao texto cristalizado, exigindo que haja uma consideração da sua origem ritualística, pouco formatada: afinal, a arte cênica “configurou-se como um modo de comportamento e como uma prática antes de qualquer escritura” [2].

É certo que essas referências estão presentes na performance sonora de Tânia Dinis, a qual nos faz refletir tanto sobre o áudio estrondoso, como música, como sobre as noções impressas no logos. Emergiu ali, naquele singelo palco, na ação dessa performer portuguesa, uma reflexão de Jacques Derrida no que ele elegeu por “falologocentrismo” (junção de falocentrismo com logocentrismo) para avaliar a dominação masculina como um modo exclusivo de validação da realidade cultural. Tânia, uma mulher a discursar sem voz na terra de Camões, com agressividade no dedilhar da máquina de escrever, traz conotação de revolta com relação à dominação masculina e, então, tomba com o patriarcado literário, com o falo tagarela e ultrapassado que se julga ainda merecedor do lugar ao topo em uma sociedade que vive uma hierarquia sexológica.

 

Notas

[1] CAGE, John. An Interview with John Cage. In: SANDFORD, Mariellen R. (Ed.) Figures Happenings andothersacts. Londres e Nova York: Routledge, 1995. p. 43. Tradução livre para o português.

[2] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 76.

 

Julia Pelison é doutoranda em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes – Universidade de Coimbra, possui mestrado em Cultura, Crítica e Curadoria pela Central Saint Martins – University of the Arts London. É bacharel em Artes pela Universidade Federal Fluminense.

 

 

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