A Escuridão Que Nos Olha

 

Marcelo Evelin e Demolicion Inc., De repente tudo fica preto de gente, 2013. Bienal Sesc de Dança 2013, Sesc Santos, Santos, SP, Brasil. Fotografia de Caroline Moraes/ 7X7

 

Eles são sujos. Gosmentos. Devoram-se. Eles são vis. Asquerosos. Babam-se. Empurram e atrapalham quem está por perto. No geral, são despercebidos. Mas, em alguns casos, podem alterar tudo. Marcelo Evelin os coloca em um ringue, cujo parapeito ilumina o interior, e o resto do ambiente se assemelha a essa gosma ignóbil. Menos o público.

As pessoas que comparecem para assistir dentro do ringue ficam no canto delas, mas são apertadas pelo vai-e-vem do grupelho. Mesmo sem se deslocarem e discretas, elas são incomodadas por essa massa que se move de modo extremamente junto, aglomerado, e que anda ao léu. A curiosidade que emana desse muco coletivo cobra dos que o rodeiam que se desvie dele, ao risco de ter a roupa manchada pela gentalha. Seria o menor dos males perante o embate sensível de reflexão posto no ringue.

 

Marcelo Evelin e Demolicion Inc., De repente tudo fica preto de gente, 2013. Bienal Sesc de Dança 2013, Sesc Santos, Santos, SP, Brasil. Fotografia de Caroline Moraes/ 7X7

 

Esses seres, que se juntam e se separam e se juntam sem alterações significativas, são a sobrevida da escuridão. Há, neles, muitas poucas evidências de particularidades. É uma dança tosca, talvez a única possível, da rebelião moral dos escravos. O alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) afirmava que a moral do escravo é que venceu na sociedade ocidental moderna, em que o bom é aquele que é igual e o diferente causa ojeriza. Ele criticava a falta de ímpeto emotivo, de vida audaciosa na sociedade de seu tempo. Isso causava a ausência de um corpo que determinasse seu desejo que desdobraria na transformação daquele para ser exaltado. O humano deveria ter sede de força e sobressair-se dos demais e, assim, dançar uma dança desintegradora dos códigos, dos lugares-comuns, da normalidade. Seria a experiência de si como transgressão. Mas a civilização gerou um mar de iguais medíocres que não dançam com êxtase. Como afirmou Christine Greiner (professora da PUC-SP), essa obra nova é o negativo de Matadouro (2011), do mesmo grupo. A “massa”, tema tão estudado por Evelin, tende à reprodução diluída de códigos mais sofisticados e à homogeneização coreográfica social. Mas, por vezes, sua parte enigmática contradiz isso. Podendo, inclusive, despertar boa parte do mundo massificado, mesmo que por poucos dias. Mais ou menos como na música Rosa-dos-ventos (1970), de Chico Buarque.

Talvez essa revelação esteja em nós. O colorido está em posse do público em De repente. Esse visual é desafiado pelo seu negativo. Se o público é, aqui, um coletivo maior, de independência entre suas partes, os pretos são poucos, mas sempre conectados uns aos outros, mesmo quando desgrudados. Mas se eles parecem estar em menor número, são suas ações que causam as revoluções de todos no cenário e esse, por sua vez, se confunde com os pretos. Além do mais, talvez essa confusão esconda outros muitos pretos escondidos. Presenças sem presença. Uma arte escondida, à espreita, mas exposta e ativa. Talvez ninguém escape de se contaminar, mesmo se de repente sair do ringue.

 

Marcelo Evelin e Demolicion Inc., De repente tudo fica preto de gente, 2013. Bienal Sesc de Dança 2013, Sesc Santos, Santos, SP, Brasil. Fotografia de Caroline Moraes/ 7X7

 

Então, nesse lugar, esse ruído visual das cores aparentes, que são sujadas e sugadas pelo carvão moído besuntado grudado nos corpos dos performers, esta invisível, apesar de iluminado. Esses entes escuros são também obscuros: sugam a luz e as diferenças que os rodeiam. Por mais que os olhemos, não é possível ver tudo. Seus movimentos, em sua maior parte tão inconvencionais, não são claros: se mexem quase como se estivessem pedindo esmola, quase como se extorquissem por algo, ou quase como se observassem seus opostos com ódio. Seus gestos são muito incertos. Talvez porque o dialeto corporal deles seja de outra natureza.

A leitura fica muito borrada, pois é desconhecida a profundidade deles. A mente registra que os olhos estão olhando. Todavia, mais não enxerga do que enxerga [1]. Uma demência que pode confundir e atordoar. Causar, quem sabe, gracejos escapistas. Mas que, com os olhos abertos e despertos, ao se observar deliberadamente as complexidades e as tragédias de mundo, pode-se reparar na pequeneza do nosso conhecimento e na fragilidade da nossa força, sejam elas no âmbito pessoal ou coletivo.

O mundo apresentado por Evelin e companhia é diretamente o que podemos projetar quando nos apoiamos no futuro para nos alienarmos do presente. Se o preto pode ser uma cor para os excluídos, das ovelhas negras sociais, também é a mesma que é possível enxergar – e que provoca injúria – quando se pretende entender e compreender efetivamente a dinâmica da vida social humana no mundo real. Uma realidade por demais inalcançável.

 

Nota

[1] Referência à metáfora de Giorgio Agamben, do seu ensaio O que é o contemporâneo? (2009).

 

Arthur Moreau é bacharel em Comunicação das Artes do Corpo, na PUC-SP, e estudante de Filosofia, na USP. Também é integrante do 7X7.

 

 

© 2014 eRevista Performatus e o autor

Texto completo: PDF