A Descoberta da Verdade

 

Imagem do vídeo Épico Culinário de Paulo Meira

 

Como nos vídeos governamentais produzidos no Brasil na década de sessenta, nos chega a voz de Paulo Meira no seu vídeo intitulado Épico Culinário. Numa cozinha industrial, cozinheiros trabalham, enquanto a voz oriunda de um rádio desponta como parte do cenário; sim, parte do cenário, pois esta não é um personagem a mais na cena. Fala sem ser e sem pretender ser exatamente compreendido, ainda que sua voz seja nítida, límpida e pausada. Seu texto é, antes de tudo, uma rasura no sentido da imagem, atravessa-a ou transpassa-a numa potência de sentido que nada constrói agregado à força da linguagem-imagem e que muito destrói da linguagem-palavra na sua exigência de rigor da sintaxe. Constrói um sentido na fissura entre palavra e imagem no breve instante, no qual o espectador é capturado para este não lugar, nem texto nem imagem, mas pleno de significado, pois é sentido estético provocado. Este não lugar é um lugar desprovido de identidade própria e definida, entretanto se configura como um lugar de co-habitação entre o espectador e a obra, no qual novos sentidos estéticos podem emergir.

Não é exatamente assim que inicia o vídeo que tem direção e roteiro de Paulo Meira, mas é por onde podemos esticar o fio que nos leva para esta aventura fantástica e repleta de sinestesia barroca e de recortes de histórias populares. Aliás, estes elementos da cultura popular, que se organizam em histórias de terror e fantasia, compõe um importante aspecto da pesquisa estética de Meira. Encontramos no curta-metragem 15 minutos no jardim de Alice Coelho a mesma presença de elementos da cultura popular transpostos para um ambiente que não é idêntico ao que habitam normalmente, mas que se referem a este ambiente diretamente, provocando, ao mesmo tempo, estranhamento e abertura de novos sentidos para estes elementos conhecidos, como a mulher barbada, interpretada por Paulo Meira, do vídeo citado acima ou os anões do Épico Culinário.

Além deste fio, que nos conduz às tradições populares de Recife ou da Europa medieval e barroca, para nos aproximarmos do Épico Culinário, podemos também retornar à imagem: o título do vídeo revela-se na tela, com textura de molho de tomate ou de doce de goiaba, pinga na tela e se enforma em letras de capas de antigos livros de culinária. Está lançada a aventura épica nos moldes dos contos de fadas.

 

Capa do livro Le Cuisinier françois (1651) de François Pierre La Varenne

 

Um cartão com a inscrição “sábado” é preso por dois pesos de papel, uma ampulheta e um crânio. Contamos os dias da semana retroativamente e avançamos, para dentro da imagem e para dentro da narrativa, já carregados pela estética característica do barroco. Impulsionados por estes elementos tão peculiares às naturezas-mortas barrocas, Paulo Meira nos desvela as marcas da passagem do tempo que corrompe toda beleza. Assim como a arte barroca coloca-se no limiar entre a beleza e o grotesco, Meira transporta para sua criação este limite e este confronto. Este embate é, em última instância, a consciência deste homem do século XVII que teme a morte, que reconhece na corrupção das coisas a passagem do tempo e o inevitável destino humano.

Os dias da semana são também os nomes dos sete personagens que trabalham na cozinha, segundo nos informa o texto/sinopse do próprio Meira. São cozinheiros anões, os sete que migram de uma antiga história europeia para este universo grotesco e fantástico. Interessante notar que o aspecto grotesco advém também do próprio universo dos contos de fadas, que ao contrário do que nos permite pensar as versões atuais, revelam aspectos do grotesco pertinentes às culturas populares da Europa medieval e moderna. A estes anões, o roteiro acrescenta uma mula com cabeça montada por uma figura isenta desse membro que solta fogo pelas ventas que passeia por ruas estreitas de alguma cidade. Há ainda a figura de um palhaço (interpretado por Moa Lago) vestido de preto e com o rosto coberto por uma densa tinta preta munido de guarda-chuvas com a mesma escura tonalidade. Em contraposição, em uma casa abandonada – talvez uma casa mal-assombrada – aparece uma mulher trajada de um longo vestido branco (interpretada por Luciana Queiroga). De seu vestido em movimento, podemos imaginar ondas brancas que alcançam a praia, e que talvez esta pálida figura seja Iara ou Iemanjá.

 

Imagem do vídeo Épico Culinário de Paulo Meira

 

As locações escolhidas permitem compor os aspectos fantásticos do roteiro, no qual todas estas personagens se encontram reunidas. Da cozinha industrial comandada apenas pelos anões, emerge um ambiente estranho, que apesar das suas paredes brancas, transmite apenas uma angústia de hospital ou de hospício, onde os anões – eles também muitas vezes são associados ao imaginário do grotesco, na obra O anão Sebastião de Morra ou O anão Francisco Lezcano, ambas de Diego Velásquez –, vestidos em uniformes brancos, transitam atarefados. Ou ainda, a “Cruz do Patrão”, monumento histórico de Recife, onde no passado eram realizadas execuções capitais e que se associa no imaginário local às histórias de mistério. A trilha sonora de Zé Cafofinho permite uma transição entre as diversas locações: a cozinha, o monumento histórico “Cruz do Patrão”, as ruas do bairro São José, todas em Recife, e a praia do Coqueirinho, em Jacuna na Paraíba.

A fotografia de Francisco Baccaro permite que a inusitada reunião de personagens e ações, que vão desde cenas cotidianas da fabricação de bolos em uma cozinha até uma batalha, ganhe forma de epopeia. Um épico que tem, na imagem, a manifestação da sua forma poética, como por exemplo, a bela cena de artefatos de cozinha flutuando dentro de águas verdes. O vídeo de Meira resulta numa imagem portadora do sentido poético necessário a todo épico, ao mesmo tempo, enquadra, na sua obra, as potencialidades da imagem como fabuladora e que abre possibilidades de outras narrativas para além do texto e do roteiro de cinema. Por um fio que esta fábula desvela o tempo benjaminiano, insondável e inimaginável que se revela num breve instante e que, entretanto, pode caminhar em múltiplos sentidos, afinal este tempo também pode ser poético e não possuir verdade alguma. Ainda assim, ser uma verdade, que como afirma o narrador numa das brechas pela qual o texto penetra, o sentido da imagem só se descobre a verdade quando a crença na verdade reside em algo de falso.

 

 

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