“Você tem o Pincel, tem suas Tintas, pinte o Paraíso e depois entre nele”: Uma Entrevista Performática com Suzana Queiroga

 

Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio… [1]

 

Suzana Queiroga, Você tem o Pincel, tem suas Tintas, pinte o Paraíso e depois entre nele, 2013. [A legenda desta fotografia foi dada por mim. A legenda original é: Suzana Queiroga, Semeadura de Nuvens, julho de 2013. Fotografia de Rafael Leal]

 

Aos que preferem dar livre vazão à construção imagética, podem confiar na existência de tais personagens aqui narrados.

Aos que têm sede de veracidade: Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa ou Dama do Mar ou Ariana = Suzana Queiroga; Orlando = eu; Imagem da menina-balão = obra Eu Balão, de Suzana Queiroga; Isolda = Cinthya Pires; Aris = eu + Aristóteles; Biógrafo = eu + Virginia Woolf + Marc Augé + Zygmunt Bauman.

 

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Uma Longa Viagem Transoceânica no Interior de uma Garrafa

 

Foi no dia 11 de maio de 2012 que Orlando cruzou com a imagem de uma menina-balão em um lugar virtual. Ele que, naquele momento, atingiu o ápice de sofrimento da sua vida, irradiava-se ao contemplar as cores daquele desenho. Orlando escreveria talvez, em algum momento de sua vida, um soneto ou uma tragédia ou uma história sobre a imagem da menina-balão que poderia se transformar em uma nuvem. Ressalto que aquela imagem desencadeou, sim, um tumulto de paixões e emoções que todo bom biógrafo abomina. Mas, para continuarmos – Orlando solicitou gentilmente, naquele lugar virtual, as condições necessárias para que ele adquirisse aquele desenho para o acervo de seu futuro projeto de instituição cultural.

No entanto, no dia 12 de maio de 2012, a verdadeira Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa lhe respondeu: “a obra a que você se refere já pertence à coleção de Paulo Vieira. Caso você tenha interesse em conhecer outra obra, me avise, por favor. Na verdade, o site está um pouco desatualizado, as novas obras ainda não foram incorporadas”. Não contente com a resposta, inquieto, ele foi procurar outras representações virtuais dos “pertences” daquela real Dama do Mar. Pois bem, nada o convenceu, porque ele ainda estava penetrado pelo olhar da imagem da menina-balão.

Não mais que de repente, num ímpeto, olhou-se no espelho do quarto e, como se estivesse a escrever para a verdadeira Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa, ousou dizer para si mesmo: “Gostei muito dos seus mapas de cidades; achei extremamente interessante essa sua forma lúdica e geométrica de abordar e representar certos locais e fiquei pensando em ter um mapa da minha pequena cidade chamada Inhumas”. Repetiu, então, a mesma frase por escrito, e complementou com: “você desenharia um mapa dessa cidade?”, e enviou para a Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa – a real Dama do Mar.

“A princípio, a proposta é interessante. Trabalho com vários tipos de mapeamento, até com locais que não conheço pessoalmente. Vamos fazer o seguinte? Me envia o mapa de sua cidade? Você tem algum? Vou tentar achar pela internet também. Deixa eu olhar um pouco e pensar se é mais um mapa para trabalho em papel ou para pintura. São decisões que envolvem eu entender a cidade e ter algum sentimento por ela. Me envie informações, suas impressões, fotos, vídeos, recordações, o que quiser; encha meu imaginário com Inhumas e eu te digo se faço e o que tudo isso me sugere, tá?”, foi o que ela respondeu.

“‘Intensidade assusta!’, diria certamente Clara Averbuck”, ele pensou enquanto redigia o tal apelo a ela no dia 13 de maio de 2012. Anexar arduamente um infinito particular de imagens, em que algumas memórias de sua vida também foram narradas, fez com que a verdadeira Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa chorasse, sonhasse e, ao mesmo tempo, anotasse aquele impacto emocional que sentiu ao ver a última foto associada ao conjunto de revelações. Tudo isso foi registrado num de seus caderninhos de anotações, que habitualmente não usava. O interessante foi que esse arrebatamento que Orlando despertou nela, agora, ficaria eternamente vinculado às anotações do voo do balão rosa, das impressões e das filmagens de seu documentário-homenagem ao pai. Tudo seria resgatado no voo que fez pelo Sul um ano depois.

“Nem sei o que te dizer. Fiquei muitíssimo emocionada com o material que você me enviou. Você me mostrou sua infância, sua família, seu espaço íntimo. Que menininho bonito, que criança bonita… Vi você crescendo aos poucos até virar aquele homem com um olhar sensível e etéreo dentro d’água… impactante demais eu ter chegado nessa foto. As cores das fotos me evocaram vários sentimentos. A primeira foto que abri me disse muito: lençóis pendurados num varal. Disse tudo, foi lindo. Suas fotos, seu relato, tudo se encaixou… Sua mãe muito linda, jovenzinha, seus avós, sua tia. É como se eu tivesse entrado em sua casa. Impressionante. E como você foi generoso em abrir a casa para uma pessoa desconhecida sua. Isso foi muito forte, fiquei muito tocada e cheguei às lágrimas.

[…] O mapa não veio em anexo. Por favor, peça um mapa na prefeitura. Eles têm uma carta mais definida da cidade do que os mapas habituais, com topografia etc. Isso é importante. Marque no mapa: sua casa, locais afetivos importantes e, se puder, faça isso tudo num papel manteiga para não riscar o mapa. Aqui, você pode anotar coisas livremente e, se achar outros mapas, me envie também. Se quiser, faça fotos e desenhe seus roteiros, escreva. Faça tudo como você quiser.”

Orlando precisou de tempo,

Tempo,

TEmpo,

TEMpo,

TEMPo,

                                                                     TEMPO para criar o que lhe foi solicitado. Comprou um caderno branco e o transformou em um diário – aos moldes dos clássicos diários que fazia em sua adolescência. Hospital de nascimento, família paterna evocando o aborto, brinquedos da infância, árvore genealógica, primeiro aniversário, mãe super-heroína, o único irmão, avó materna, melhores amigos, rejeição paterna, história do detergente como presente de amigo secreto, paixão da infância, diários, história da arruda, tias-avós e tio-avô favoritos, modos de encarar a morte, tentativa falhada de abuso sexual por um tio paterno, a cantora favorita, troca-troca, quadrilhas, primeira paixão, revistas pornôs, primeira relação sexual, retirar o nome tatuado com caneta Bic, “romance violentado”, cura gay, anorexia e bulimia, a grave humilhação no colégio pela diretora-versão-feminina-de-Hitler, a tentativa de ser modelo, o teatro, “Calabar”, Rio de Janeiro, amor-Mickey, Porto, o livro “Cem Anos de Solidão”, aeroportos, reconciliação com o pai e o acidente dele, borboletas de Genaro de Carvalho, o “esperar” do nunca acontecer das pessoas, Budapeste, milk-shake de açaí etc. – tudo isso foi compactado pela caneta de Orlando a ela. Inclusive ele criou uma trilha sonora e algumas filmagens curtas dos lugares mencionados em seu material vivo.

“Faltaram inúmeras coisas, mas eu precisei colocar um ponto final, se não eu nunca iria te entregar”, foi o que Orlando escreveu no dia 14 de dezembro de 2012. Porém o diário só chegou às mãos da Dama do Mar no dia 16 de fevereiro de 2013. Chegou inteiro depois da longa viagem transoceânica no interior de uma garrafa, depois da extensa dedicação para a sua materialização, por conta do perfeccionismo de Orlando.

 

Reprodução do Instagram de Suzana Queiroga/ 16 de fevereiro de 2013

 

Força, graça, fantasia, loucura, poesia, juventude – a verdadeira Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa o leu por um livro. “Você é o desconhecido mais intimamente conhecido do mundo! Curioso isso!”, ela confessou. Orlando então nutriu as mais loucas, mais absurdas, mais extravagantes ideias acerca de relações, parentescos, parcerias e noções análogas. Tudo isso ocorreu por causa da consonância daquela frase que havia lido. Lembrou ele também de um poema de Camões que outrora lhe foi oferecido por sua melhor amiga, Isolda:

 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

 

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

 

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

 

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.

 

Tão grande era a sua timidez que, no dia 24 de fevereiro de 2013, ao conhecer Ariana, a verdadeira Menina-balão-nuvem-fadista-oceânica-misteriosa ou Dama do Mar, no calor do Rio de Janeiro, sentiu que lhe faltavam palavras. “Sonetos”, de Florbela Espanca, que gostou muito de ler outrora, foi o presente de aniversário que escolheu para dar a ela.

 

Reprodução do Instagram de Suzana Queiroga/ 4 de março de 2013

 

Reprodução do Instagram de Mãe Paulo/ 27 de março de 2013

 

Como só ao biógrafo é lícito fazer, um curioso traço dessa história estará no fato de que, ainda hoje, é digníssimo se fazer verdadeiros amigos “num mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível” [2]. Aris, o professor de Orlando, certamente diria que “louvados sejam os homens que amam verdadeiramente os seus amigos”. Encerro aqui, portanto, neste ponto da narração da história de Orlando e Ariana, pedindo ao leitor que fabrique as suas próprias ficções a partir de tudo isso que lhe foi contado, considerando esse momento em que ambos não haviam ainda ultrapassado o plano virtual-imaginário para atingirem o real encontro. A entrevista é posterior a essa construção ornada de fatos que mesclam ficção e realidade; nasceu das impressões e foi concretizada depois das constatações.

 

***

 

MÃE PAULO: Bom, no dia 23 de junho de 2013, via Facebook, você me contou: “hoje, na palestra, eu fiz uma coisa que aprendi assistindo há anos uma palestra da Lygia Pape. Ela começou dizendo que achava uma chatice o formato de palestras e, então, propôs uma inversão: começar pelas perguntas. Eu contei isso para o público e acabei dizendo que, em homenagem a ela, eu faria o mesmo”. Logo, eu decido que não vou começar essa entrevista te perguntando algo, mas te pedindo uma pergunta.

 

SUZANA QUEIROGA: Quando eu resolvi fazer uma homenagem a Lygia Pape, propondo à plateia o mesmo que eu presenciei numa palestra dela na Fundação Eva Klabin, eu queria experimentar a mudança de ordem das coisas e convocar o público a sair da confortável e previsível situação, a de assistir alguém e, ao final, perguntar (ou não) qualquer coisa, já tendo recebido de “bandeja” todas as informações selecionadas pelo palestrante em sua fala, ou seja, suas perguntas já não acrescentariam muito ao que foi extensamente dito antes…

Mas, ao jogar a bola para a plateia, me vi num jogo realmente muitíssimo mais interessante, pois eu não conduzia mais nada; quem dirigia meus caminhos era o público e suas inesperadas perguntas. Este, pouco a pouco, foi se sentindo mais à vontade e a sucessão de perguntas foi num crescendo tão fantástico que a “palestra” acabou no ápice, quando toda a audiência resolveu que já era o bastante, que o principal e mais potente havia sido falado por eles, nas perguntas, e por mim, nas respostas. Foi lindo não ter controle absoluto e dividir com a plateia essa livre navegação por duas horas.

A minha pergunta para você é: qual a motivação para me entrevistar? O que o move?

 

MÃE PAULO: Eu sabia que você ia me perguntar isso!!! O mais interessante foi que, quando você me enviou a resposta por e-mail, eu estava discutindo justamente as medidas da tatuagem [3] com o Tales e o Ricardo [funcionário da empresa Norcópia da cidade do Porto, em Portugal]. “Sintonia total!”, pensei. Bom, a minha história se conectou com a sua história. Isso é fato para nós dois. Nos falamos quase todos os dias e, em determinados momentos, você me deixa corado, sem palavras, mudo, pensativo, alegre, ciumento, eufórico… Enfim, resumindo: eu tenho um grande afeto por você e, muitas vezes, me pego até com saudades de você! Um dia, eu te disse: “Eu estou escrevendo um texto sobre o nosso encontro. Veremos no que vai dar. Não é nada acadêmico, mas, também, não é ‘franco total’ como o diário”. Por isso, preferi concretizar esse tal texto nessa nossa entrevista. Não é para ser uma entrevista qualquer; quero criar uma entrevista performática com você. No grand finale, você irá perceber melhor a performatividade que eu quero desenvolver aqui. Portanto, o que me move é estar percorrendo com você uma ponte que liga arte e vida: eu e você!!

 

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Suzana Queiroga, Chroma, 6’53’’, 2010. Neste vídeo, os fluxos das paisagens são sugeridos pelas águas coloridas manipuladas pelas mãos da artista. Fotografias de Ícaro Lira

 

MÃE PAULO: Escolhi aleatoriamente sete artistas para contarem suas relações com as cores, pois a cor é o que me interessa como tema dessa questão. São eles:

1) Paula Modersohn-Becker: “Quero dar às cores entusiasmo, plenitude e agitação” [4];

2) Emil Nodel: “Cores, o material dos pintores. Cores na sua essência, a chorar e a rir, sonho e felicidade, quentes e sagradas, como canções de amor e de erotismo, como cânticos e magníficos corais. As cores vibram como o argênteo repicar dos sinos e com tonalidades brônzeas. São os arautos da felicidade, da paixão e do amor, da alma, do sangue e da morte” [5];

3) Kasimir Malevich: “Tornou-se claro que devem ser criadas novas estruturas cromáticas, de cores puras, construídas a pedido da cor; e, em segundo lugar, que a cor deve deixar de ser misturada e tornar-se um fator independente, entrando na construção como um elemento individual de um sistema coletivo e com independência individual” [6];

4) Josef Albers: “Tal como ‘os homens preferem as loiras’, toda a gente tem preferência por certas cores em detrimento de outras. O que também se aplica às combinações de cores. Parece bem não termos todos o mesmo gosto. O que se passa com as pessoas na vida cotidiana é o mesmo que acontece com a cor. Mudamos, corrigimos ou alteramos a nossa opinião sobre as cores, e esta mudança de opinião pode ocorrer incessantemente” [7];

5) Maria Helena Vieira da Silva: “Quando estou em frente do meu quadro e da minha paleta, o esforço é constante; um pouco mais de branco, um pouco mais de verde, está demasiado frio, demasiado quente, linhas que sobem, que descem, que se encontram, que se separam. Significa tanto em pintura e tão pouco em palavras” [8];

6) Karel Appel: “Vamos supor que a primeira cor que aplico na tela é o vermelho. Essa ação determina tudo o que vai acontecer à pintura. Depois disso, podia acrescentar-se amarelo, e um pouco de azul; depois talvez pudesse fazer o vermelho desaparecer sob a cor preta e o azul talvez se tornasse amarelo, e o amarelo violeta, enquanto o preto mudaria para branco. Mas todo esse fascinante processo começou com aquela primeira cor vermelha e, se eu não tivesse começado com o vermelho, o quadro teria ficado completamente diferente. Haverá um sistema, haverá uma ordem nesse caos?” [9];

7) Rupprecht Geiger: “O vermelho é ‘a’ cor. O vermelho é maravilhoso. O vermelho é vida, energia, potência, poder, amor, calor, força. O vermelho eleva-nos” [10];

Suzana, você poderia me contar a sua relação com as cores?

 

SUZANA QUEIROGA: Faz muito frio agora, já está ficando tarde e me recolho ao quarto de dormir do Instituto Hilda Hilst, e aqui penso em sua pergunta sobre as cores. Logo me vêm possibilidades diferentes de resposta, e percebo que o que eu menos quero agora é ser professoral. Sim, a cor me interessa muito, gosto de observar esse fenômeno, falar sobre, e costumo dar aulas sobre cor, usar referências e tal, por isso fica automático para mim, para eu partir para esse tipo de resposta. Mas não, não gostaria aqui de falar sobre o fenômeno da cor do ponto de vista da ciência ou da história da arte ou, ainda, de como certos artistas a pensam, tampouco gostaria de contar uma longa história de como desenvolvi, ao longo dos anos, diferentes abordagens da cor nas diversas fases do meu trabalho; seriam tantas coisas a falar, tantos momentos… e acho que tudo isso agora poderia ser muito chato! Portanto, quero falar apenas do agora, do que me move e arrebata neste exato instante.

Estou, nesse momento, profundamente ligada a uma paleta de azuis profundos, azuis violetados, cinzas azulados e oceanicamente esverdeados. Minha relação com as cores agora só passa pelo que é céu, densidade atmosférica, ar, nuvem e também mar, oceano e profundidade. Tenho um respeito tão grande pela cor que é como se essa fosse algo que pairasse acima de tudo, pois a cor é a própria luz, e o seu comportamento mutante, desviante, relativo e infinitamente plural é de uma poesia imensa, a qual penso que poucos artistas conseguem tocar. Sinto que não é uma operação meramente técnica ou objetiva, não basta saber as misturas e conhecer os pigmentos. Existe uma resposta maior que a cor me dá e que é proporcional ao quanto eu consigo me aproximar mais e mais delicadamente de seus sutis momentos de transformação vibracional. A cor “ideia” logo me vem como algo pronto, idealizado e plenamente dominado, porém a cor que “realmente” torna potentes as minhas intenções diante de um trabalho somente será obtida a partir de uma busca, revalidada a cada instante, num percurso no qual é exigida a totalidade de minha atenção.

Realmente é impossível colocar em palavras, mas talvez consiga pensar por intermédio de uma analogia com a navegação (da qual pouco entendo!), e vou arriscar: imagine que eu tenha uma rota (um objetivo no trabalho) e, para chegar aonde quero, posso fazer traços em linhas retas na minha carta náutica (a cor racionalizada), porém, ao navegar, de fato terei que considerar inúmeros acidentes geográficos marinhos, como ilhas e arrecifes, e, não bastando esses, como estarão as condições climáticas. Estas mudam a cada momento. E a direção dos ventos, sua velocidade… e as chuvas, as tempestades… e a leitura do céu? Das estrelas? E o barco, estará leve ou não? E as ondulações do mar? E as correntes? E os meus instrumentos de navegação? Como estão? Precisos? Em ordem? Enfim, me deparo com inúmeras e fundamentais circunstâncias, que fazem aquele traçado inicial produzido com régua na carta náutica me parecer absolutamente insuficiente e até patético para que eu consiga chegar aonde quero.

É assim que me sinto em relação às cores, pois uma pequena mudança, numa vibração de uma cor, transforma todo o contexto e, para cada momento, outro raciocínio se impõe para negociar e articular o quadro a partir da nova situação, sempre atualizada. Por isso, a experiência com a cor é, a cada instante, outra, e nunca poderei me lançar a ela com a certeza de uma linha que, sendo reta, definiria precisamente áreas numa superfície. Não, cor é desvio e incerteza! E isso é de uma beleza e risco excepcionais! Henri Matisse se referia a isso como rapport de forces entre as cores. Considero essa colocação perfeita!

 

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Suzana Queiroga, Eu Balão, 2008. Nanquim, tinta acrílica, lápis e papel vegetal sobre papel. 43,5 x 34 cm

 

MÃE PAULO: A primeira obra sua que conheci foi Eu Balão. Você poderia me contar como ela surgiu?

 

SUZANA QUEIROGA: Tenho uma relação muito forte, desde a infância, com nuvens; parte significativa dela foi dedicada a simplesmente observar da varanda esse eterno “deixar-se ir” no azul e de querer ir (e creio que de alguma forma já ia) eu mesma, junto… Mas há um aspecto importante aí; o voo das nuvens e suas infindáveis transformações me conectavam com a minha tragédia pessoal, a morte de meu pai em pleno voo, ocorrida poucos meses antes de meu nascimento, quando o avião em que ele se encontrava caiu na Baía de Guanabara. Portanto, olhar o céu e olhar as nuvens me transportava para uma outra dimensão do tempo, interna, onde se fundava o imenso desejo de ser uma nuvem.

O sonho de ser/ter um balão seria o de experimentar a condição do voo da nuvem, que é o de apenas estar na corrente de ar e ser levada por ela. Esse desenho a que você se refere em sua pergunta nasceu como um pequeno rascunho em meu caderno de anotações, e dizia, em sua voz silenciosa: “Quero sair daqui, desamarrar-me e voar solta na calma do tempo!”

Eu guardei esse pequeno desenho e me esqueci dele, e, após um bom tempo, o recuperei nos meus guardados. Havia passado por uma reviravolta muito grande e intensa em meu trabalho na direção dos mapeamentos, e esse desenho vem a fazer sentido neste momento. Bom, mas para chegar a este ponto, preciso contextualizar um pouco.

A questão do tempo sempre me foi importante e, nos últimos quinze anos, esteve realmente muito mais presente em meu trabalho; os enigmas do tempo, o paradoxo do tempo, seu permanente fluxo e a impossibilidade de percepção integral do instante foram aspectos essenciais em minha produção. E, novamente, aqui a questão subjetiva assenta essas preocupações, por ser o meu tempo de vida diametralmente oposto ao tempo de morte de meu pai.

Mas, retornando à questão do desenho e à sua pergunta, o problema do fluxo do tempo acabou por me fazer chegar às cidades pela compreensão delas como soma pulsante de sistemas dinâmicos, interconectados e interdependentes, ou seja, um organismo vivo. Por observar nas cidades essa fluidez concreta e em sua maior parte invisível, me direcionei à cartografia e aos mapeamentos, e em todos os aspectos implicados no termo. Afinal, o que é o mapear, para além das cidades e das cartografias? E tudo isso me fez chegar à construção do meu balão e, com ele, viver a condição de suspensão das amarras habituais e visualizar o mundo a partir de um outro lugar. Entendo o próprio voo como obra de arte, não apenas a aeronave em si (pois ela tem um desenho criado por mim), mas a ação de me lançar ao vento como uma radicalização do Sublime, além, é claro, do aparecimento inesperado nos céus, havendo aí uma certa performance da própria obra no mundo.

O estupendo da arte é que o pequeno desenho do Eu Balão se antecipou em muito à minha “chegada” ao balão e ao meu voo efetivo! Por isso, quando aconteceu, logo me lembrei do pequeno desenho e o reencontrei e, então, nesse novo contexto, já ressignificado, eu o reelaborei nessa obra a que você se refere, e que me parece ter sido a “responsável” pelo nosso encontro.

 

O balão Velofluxo foi projetado em 2006 e construído em 2008. E o esboço de Eu Balão foi feito em 2000-2001.

 

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Suzana Queiroga, Voo Velofluxo, 2008. Foto de Joel Queiroga

 

Suzana Queiroga, Voo Velofluxo, 2009. Foto de Pedro Vitor Brandão

 

MÃE PAULO: “Dentro do contexto de autoexpressão, a biografia é especialmente importante. Ela não é uma parte do presente nem uma parte da história, nunca um mero passado. Embora o passado seja um passado desordenado, mesmo se houver um antes e depois, a biografia é um passado ordenado, estruturada em blocos dirigidos a um objetivo, um histórico analisado pelo menos.

Na autobiografia, a relação da pessoa com o mundo é descrita pela própria pessoa, enquanto um biógrafo está distanciado da pessoa cuja vida ele escolheu descrever. Em ambos os casos, contudo, a pessoa é particularmente distinguida por sua vida ou trabalho, ou sua vida e trabalho assumem uma função exemplar, e isso é verdade também no sentido negativo. Um momentum post factum é sempre inerente a um momento biográfico. Por essa razão, isso é sempre temporal, porque isso é baseado na temporalidade” [11].

Você poderia criar uma breve autobiografia – onde não exista uma separação rígida entre arte e vida – de como a performance Voo Velofluxo surgiu? Como você poderia descrever metaforicamente as suas sensações nessas viagens de balão? Qual é o significado do mapa impresso nele?

 

SUZANA QUEIROGA: Existe sim uma relação autobiográfica seminal em minha vida, dada a minha certeza desde a infância sobre ser pintora, ser artista. A pintura me foi apresentada pelas pequenas telas de paisagem que meu pai pintou aqui no Brasil, cerca de onze telas que foram o seu legado material, devido a sua morte tão precoce, aos 26 anos, num desastre aéreo.

Havia, em minha casa, uma pequena pintura dele sobre uma mesa, e eu me lembro de ficar olhando para ela durante muito tempo, numa época em que eu tinha a mesma altura da mesa em que ela estava apoiada. Eu devia ter quatro ou cinco anos, a julgar pela minha altura! Foi nessa época que soube que o meu pai era aquele moço da foto na sala e não meu avô materno. Foi quando soube que tinha nascido órfã e que meu pai havia morrido num avião que caiu no mar, e que meses antes escolhera o meu nome.

Para mim, aquela pintura ERA ele, eu a observava todos os dias, fascinada com o ar que sentia naquela pequena paisagem que retratava um caminho de terra. Havia ar naquele pequeno mundo e eu podia me sentir dentro daquele lugar e até sentir o ar fresco. Ela me provocava uma atração incontrolável e, seguidamente, me deslocava para aquele pedaço de chão, totalmente alheia ao mundo ao meu redor. Aos nove anos, tive um sonho muito forte, que consigo lembrar até hoje. Sonhei que eu pintava uma tela enorme, na qual eu construía, em tonalidades terrosas, três silhuetas: um pai, uma mãe e uma filha. Quando acordei, tinha certeza de que ia ser pintora e contei à minha mãe o sonho. Aos onze anos, ganhei meu primeiro livro de arte no Natal; este era dedicado à pequena artista da família, um livro com os afrescos do Fra Angelico. Passei anos e anos (até hoje) absolutamente fascinada pelas anunciações de Fra Angelico, em especial pelas asas dos anjos e, claro, apavorada com o Juízo Final, páginas que pulava sempre!!!

Fui para a pintura entendendo que a arte me conectava ao meu pai, e isso era tão claro, tranquilo e definitivo para mim que jamais houve qualquer dúvida quanto ao caminho que via na minha frente. O primeiro trabalho que fiz, e que ganhou prêmios e coisas assim, foi uma gravura em metal onde havia uma sequência de quadros com as três figuras, o pai, a mãe e a filha, e, depois, aparecia a mãe e a filha já sozinhas [Essa obra a que Suzana se refere é Álbum de Família I, II e III, gravura em metal, 1981]. Era um trabalho sobre a minha biografia.

Depois, na continuidade de minha formação em arte, a direção tomada seria no sentido oposto, o de pensar dentro das questões da arte e “me” esquecer. Mas meus trabalhos sempre foram, como me disse uma vez uma crítica de arte, todos “aos pedaços”, fragmentados, pois, mesmo afastada de uma autobiografia, o “espedaçamento” vencia a construção racional. Uma coisa que me dilacerava por dentro era saber que meu pai e todos do avião haviam sido transformados em pedaços de corpos. Do meu pai foi encontrado, depois de três dias, apenas a cabeça e a mão esquerda, na qual estava a aliança com o nome de minha mãe. Meus dois avôs ficaram durante três dias num pequeno barco na Baía de Guanabara, junto com os bombeiros, em busca do rescaldo do acidente, e minha mãe, grávida de mim, em terra, olhando para o mar na esperança de meu pai aparecer vivo por milagre. Assustador pensar um enterro de apenas dois pedaços do corpo de meu pai e devastador saber que o mar também foi seu túmulo e que ele está misturado e dissolvido no mundo. Essa paisagem, o mar e o céu, me levou ao trabalho com o voo. Porém, antes de chegar aos voos propriamente ditos, trabalhei muito com a questão do tempo, por entender o trágico da vida, que vivemos para morrer, e ainda por ser o tamanho de minha vida sempre igual ao tamanho da morte de meu pai.

Mas, voltando à sua pergunta, tenho um desenho/poema que diz assim: “Voo como quem morre, some, dissolve”. Para mim, voar em meu balão (que foi construído quase como um presente de filha para esse pai) é como experimentar um pouquinho da morte, me dissolver no mundo e me libertar de todas as amarras. A morte é a libertação do corpo: a vida pesa, a vida é grave. O contato com a tragédia, desde tão cedo, me fez entender a perspectiva de nosso inexorável desaparecimento de uma maneira estranha e dolorida, porém não tão assustadora.

O balão Velofluxo reúne diversas camadas de significado… mas ele é, para mim, uma gigantesca ampulheta, e estar na cesta é estar posicionada entre duas esferas; acima de mim, a cidade imaginada e desenhada no corpo do balão e, abaixo, a cidade concreta incrustada sobre a esfera terrestre, que vejo a cada segundo diferente. Neste lugar, na pequena cesta de vime, o tempo passa por mim como a areia no gargalo de uma ampulheta. A terra lá embaixo é permanente mobilidade e sua superfície é que desliza para mim. Eu navego numa corrente de vento, sou o próprio vento, sou finalmente a nuvem.

Minha percepção do mundo, a partir desse lugar, minimiza todas as importâncias, todas as vaidades humanas. Somos nadas, vaidosos nadas. Observar o mundo dessa perspectiva me apequena mais e mais à condição de uma poeira, de um simples sopro de vento. Nisso, me dissolvo e mais me integro ao imenso. E o voo de balão é silencioso, suave e de uma absoluta entrega ao vento. Tem uma passagem no Livro de Eclesiastes que discorre sobre o tempo das coisas mundanas e sua efemeridade e, ao final, diz algo assim: “no mais, tudo é vaidade e correr atrás do vento” (Ecl. 2,11) [12].

O mapa do balão é um mapa do impossível, não é uma cidade apenas, eu defini a geometria de seu desenho me relacionando de forma sutil, porém bastante observável, aos padrões árabes, novamente aqui esbarrando em minha autobiografia, por ser meu pai português, oriundo de uma família moura, que guarda desse passado, embora já não tão conhecido, os traços ainda bastante presentes na fisionomia de todos.

Estou realizando um filme com os voos do meu balão, no qual reviro ao avesso toda essa amálgama de memórias. A maior parte das filmagens no Brasil já foi concluída. Quero voar e filmar em Portugal e capturar nesses voos a imensa melancolia de algumas paisagens e a relação lusitana, que é minha também, com a dor, apresentada pelo mar por meio dos fados. Também pretendo voar na paisagem mais árabe, fazendo de alguma maneira uma espécie de caminho de busca às origens e incorporando-as ao filme. Meu filme já carrega em seu título, Flutuo por Ti, um bocado da proposta. Portanto, o balão é, para mim, um veículo que desenhei para realizar a ação do voo como obra de arte e como entrega existencial.

 

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MÃE PAULO: Você pensou em mim enquanto voava no Sul, certo? Isso se deu, na manhã de seu voo, ao você encontrar um texto sobre o impacto emocional que eu te causei ao mostrar, pela primeira vez, o meu universo particular em um e-mail. Há uma diferença de um ano entre esse voo e esse texto. Enfim, mencionei isso para dizer que eu estava com você e seu cinegrafista nesse voo. Bom, você passou por um processo de “tocar o vazio”, ao entrar em uma nuvem e, com isso, poderíamos dizer que, por uns quinze minutos, você experimentou o Sublime. Você poderia me contar um pouco como foi essa experiência e o que ela representou para você? Eu acredito firmemente que ela tenha sido muito intensa e que algo mudou em como você vê o mundo.

 

SUZANA QUEIROGA: Sim, é fato, eu reencontrei um pequeno texto que escrevi no exato momento em que recebi o seu e-mail com todo o relato de sua vida e seu mapeamento como pessoa. Ele estava num caderninho de notas que, desde então, não usara e que resolvi, de última hora, levar para a viagem com o objetivo de anotar minhas impressões durante os voos. Coincidência ou não, você estava sim, de uma certa forma, naquela cesta comigo.

Já voei algumas vezes com o intuito de capturar imagens para o meu filme Flutuo por Ti.

Os voos são, para mim, uma experiência radical de descolamento da realidade terrena, do peso da gravidade para um lançar-se ao espaço, e possuem uma conexão direta com a morte. Voar é desconectar-me do corpo terrestre, assim como deixar a vida o é em relação ao nosso corpo. A cada voo que faço, experimento uma pequena morte, talvez porque a arte precise passar por esse estado de desprendimento para que viva o estado da mudança. Talvez porque eu mesma esteja me aproximando da morte já com uma outra perspectiva, que não mais a da tragédia da morte de meu pai, mas, hoje, eu mesma passo a entender a natureza da morte como algo que deve ser bem-vindo por ser o único destino possível, esse arco da pulsão vida/morte no sentido dado por Heráclito, o de que vivemos para morrer.

Tenho um desenho que diz: “somente hoje entendi a nuvem que sempre fui”. No balão, eu sou a própria nuvem, pois, como ela, deslizo com a corrente do vento e sou o próprio vento. Não há um voo igual ao outro, é possível testemunhar o “tempo fluido” pelas permanentes mudanças na paisagem, a cada instante e a partir do olhar do céu. Como o balão não “enfrenta” a massa de ar, mas se integra a ela, não existe vento para quem está dentro dele e até é possível acender um isqueiro e ver a chama parada. Pela mesma lógica, a cesta não balança e fica tão estável que a Terra é que parece rodar embaixo de nós.

No meu último voo, em maio de 2013, tive uma experiência transformadora para muito além do que cada voo para mim já é em si. O voo começou com um “momento-Heráclito”, a corrente de ar estava mínima, e logo o vento zerou; isso significa que o balão fica parado no ar, e o meu parou logo acima de um rio! Fiz uma das filmagens mais lindas, pois, com o rio passando por debaixo de mim, eu via o reflexo de meu balão na superfície da água como se estivesse me dizendo: “Olha bem para você aí, de nuvem, você Suzana e você Suzana/balão. Veja-se bastante por esse espelho para que acredite!” Às vezes, passava um vento rasante na superfície da água e transfigurava o reflexo do meu balão, desfazia seus limites e bagunçava as linhas do meu mapa desenhado, que ficava fluido, o que fazia minha cidade toda dançar embaixo de mim. Nas ondulações da água, eu estava ali, via o meu rosto dentro da grande esfera fluida sobre o fluido rio, um mirando o outro, a cada instante um. Foi fabuloso.

Depois desse longo tempo sobre o rio, finalmente uma corrente de ar bem leve nos levou sobre um imenso charco e ali ficamos presos numa térmica durante muito tempo com outros sete balões. Para sair da térmica, subíamos na tentativa de entrar em alguma outra corrente, e nada…, até que, numa dessas subidas, conseguimos sair, mas entramos numa nuvem branca. E a nuvem era imensa e com visibilidade zero. Ficamos pelo menos quinze minutos no branco absoluto, que é um branco cego, como se houvessem pintado os meus olhos com um guache branco, tudo some, absolutamente tudo, para baixo, aos lados… Mergulhados no branco. O silêncio no branco. A morte do mundo, a ausência de referências. Tive muito medo, na mesma proporção do encantamento. Era pressionada ao máximo pelo terror e me catapultava em seguida ao deslumbramento de um mundo sem bordas, sem mundo. Entendi a questão do Sublime dentro da vivência deste! Era alternância constante, durante quinze minutos que pareciam eternos, que iam da compressão absoluta, quase desfalecida, até o oposto do encantamento e leveza brancos. Novamente, é impossível colocar em palavras algo dessa ordem, pois sequer raspam na imensidão paradoxal desse instante.

O imprevisível foi a grande presença durante esse voo e no fluxo acelerado dessas situações; vivi a própria ausência de bordas, de margens, tudo se reuniu no branco dentro dessa nuvem. Meus dois cinegrafistas estavam em terra quando fiz esse voo e viram o balão sumir na nuvem no exato momento em que passei por celular a seguinte mensagem para eles: “Estou com medo”. Havia risco ali, éramos vários balões voando e não podíamos nos ver, a tensão foi grande e eu tinha que me desligar do medo para monitorar, da minha “esquina”, meu lado da cesta, caso aparecesse alguma mancha de outro balão vindo por baixo. Já por cima não podíamos observar, pois a cúpula do balão era só o que víamos… Houve momentos lindos, como uma sombra gigante do balão que foi projetada sob a nuvem, o momento que furamos a nuvem e vimos os outros balões surgirem. Consegui filmar tudo com minha câmera modesta, portátil; o equipamento profissional estava com os cinegrafistas em terra, que capturavam a mim voando. As imagens estarão no filme.

O voo foi em maio de 2013 e, logo ao voltar, em junho, fiz um trabalho na Artur Fidalgo Galeria, que chamei de Semeadura de Nuvens, uma pequena instalação na parede. Para mim, Semeadura de Nuvens é tudo junto; água, ar, nuvem e os sistemas em fluxo. Transbordamento. A chuva é o transbordar da nuvem. Somos plenos de “transbordes”, quando o fluxo não “cabe” em seu curso e rompe a barreira da borda. Esse trabalho foi uma primeira experiência acerca dessa questão. Como meus elementos AR e ÁGUA estão tão ligados a essa paisagem existencial, entendi finalmente que a nuvem é tudo isso junto; como gosto de dizer, é “um jeito que a água deu para voar”. Moléculas de água muito próximas, sofrendo todas as oscilações das correntes de vento e da eletricidade, condutoras ímpares que são. Reunindo-se, tornando-se maiores, menores, esparsas, aceleradas, para cumprirem em algum momento seu fatum, sua pequena morte, transbordar-se novamente em água e chuva.

Com toda a intensidade e aceleração que tenho vivido, um mês depois dessa instalação, em julho, já estava numa residência artística no Instituto Hilda Hilst, e me deparo com um pequeno parágrafo de um livro de um autor que foi muito importante para ela. Pareceu-me, então, que ter vivido tudo isso e toda a minha vida foi somente para naquele exato momento encontrar essas palavras de Níkos Kazantzákis: “Me olhaste. E enquanto me olhavas senti que este mundo era uma nuvem carregada de trovões e ventos. Senti que a alma do homem era uma nuvem carregada de trovões e ventos. Senti que o sopro de Deus está sobre elas e que a salvação não existe” [13].

Me sinto dentro do turbilhão da mudança e posso reconhecer que ela é “carregada de trovões e ventos”, porém é impossível ver seu perímetro e saber sua escala em minha vida. Sinto que ainda estou a digerir todas essas experiências, ainda tão recentes, seguidas e intensas, mas me transformo e trabalho como um livro que escrevo com esse mesmo transformar.

 

***

 

Reprodução do Instagram de Suzana Queiroga/ 18-31 de julho de 2013

 

MÃE PAULO: “Você tem o pincel, tem suas tintas, pinte o paraíso e depois entre nele” [14], escreveu outrora o grego Níkos Kazantzákis, que tanto influenciou Hilda Hilst a procurar sentir mais a cintilância do invisível e definir menos a realidade, em 1966. Isso se deu após ela ler o livro Testamento para El Greco. Bom, em julho de 2013, você fez uma residência artística na Casa do Sol e teve contato também com esse livro. Além dessa leitura, gostaria de saber o que o universo da Casa do Sol propiciou ao seu novo trabalho Livros, que fará parte da mostra “Olhos d’Água”, em outubro, no MAC-Niterói, e, se puder, me conte um pouco mais sobre esse novo trabalho.

 

SUZANA QUEIROGA: Chegar na Casa do Sol, de Hilda Hilst, pouco tempo depois de viver os voos, foi incrível. Encontrei-me num outro tempo, pois ali ainda emana a presença de Hilda. E sabemos que a biblioteca de um escritor é como um mapa para se chegar ao DNA de seu universo literário. Nesse contexto, foi fundamental conhecer Níkos Kazantzákis e seu livro Testamento para El Greco, com sua relação com a morte, e, ainda, entender melhor a questão de Hilda com a morte de seu pai e a sua opção pela literatura para entrar em diálogo com ele. Tudo isso logo me afinou existencialmente com ela e sua casa.

Fui para lá com o intuito de me dedicar à série Livros, que são desenhos em que, em geral, imagens migram para a folha simultaneamente às palavras. Esse é um trabalho muito novo e delicado e é todo fragmentado, folhas soltas que podem ser lidas em diversas ordens. O que o define é que são capitulares: o livro do AR, o livro do MAR e o livro da DOR. Foram quinze dias mergulhada em desenhos e textos na atmosfera serena de lá. Acho que nunca observei tanto um quintal, os ventos, o passar das horas e os sons como nesse período, da varanda onde diariamente desenhava. Tudo o que me afetou naqueles dias está ainda muito perto da produção que estou fazendo aqui neste exato momento no ateliê. Trouxe um pouco da nuvem e um pouco do quintal para cá, como um instante vivido que traz os ecos de outros instantes e que ainda ressoam quando respiro.

Estou preparando uma exposição chamada “Olhos d’Água”, que foi contemplada com o 5o Prêmio Marcantonio Vilaça/Funarte. É um projeto centrado numa grande escultura de ar que carrega o título da mostra. Esse trabalho se relaciona com toda a questão da morte de meu pai no avião que caiu no mar. O MAC fica em frente ao aeroporto Santos Dumont, que seria o destino do pouso, mas infelizmente este não aconteceu. A localização do museu é essencial para esse projeto, por ser situado à entrada da Baía de Guanabara. Lido com essas memórias simbolicamente, o despedaçamento e a dissolução do corpo no mar, o fado, a espera de quem jamais virá. É um contato cada vez maior que faço com minha origem portuguesa. Simultaneamente à exposição do MAC, farei uma exposição individual na Artur Fidalgo Galeria, que também será conectada a esse universo, e ainda uma pequena homenagem a Hilda Hilst, que vou desenvolver num projeto de parceira do Artur Fidalgo com a Livraria da Travessa, no Rio de Janeiro.

Para mergulhar nessa proposta, precisei pesquisar sobre o acidente e abrir recentemente, junto com minha mãe, os arquivos que ela não via desde a época do acidente, as matérias do jornal, as cartas de amor de um para o outro, os diários do meu pai, telegramas, enfim, toda sorte de coisas que fizeram com que eu pudesse passar a conhecê-lo, e houve sintonias incríveis, os desenhos dele em azul, diários dele com as capas no mesmo azul que eu uso, telegramas de minha mãe falando de azul. Aos poucos, conheço esse homem com uma memória construída no hoje, o que talvez revestirá com algum tipo de membrana esse buraco enorme que sempre senti dentro do peito.

Parece que o fluxo de experiências recentes a que o trabalho de arte está me levando é, em si mesmo, um caminho redesenhado por passos, em que eu conduzo e sou conduzida por ele. Portanto, a soma ou a conclusão não existem e, quando chego numa etapa, não tenho a percepção de seu espectro. Esse estado de permanente errância e devir é o que me interessa viver radicalmente no trabalho e na vida, a “incerteza como princípio”. Digo isso como um espelhamento ou rebatimento mesmo, da formulação do “princípio da incerteza”, de Heisenberg [15], a sua constatação do dado imensurável, quando, em partículas quânticas, o campo de energia do observador atravessa o do observado. Esse lugar de troca e polarização permanentes e, ainda, a própria dualidade onda/partícula, me parece dizer tanto do campo da arte ou pelo menos desse lugar onde eu me coloco nesse campo, um lugar em trânsito.

Está sendo muito intenso todo o processo dessas exposições, por serem conteúdos que existiram em meu trabalho como uma espécie de eixo fundamental, mas que agora estão mais evidentes. É uma questão infindável e labiríntica, talvez por isso esse projeto navegue por tantas mídias, pois é mesmo impossível apalpar esse “vento”. Escolhas sobre escolhas, que deixam outras infinitamente para trás, como no conto de Borges [16]. O que me entusiasma e vivifica a experiência hoje no ateliê é ver como um trabalho se comunica com outro sem borda alguma, o que me lembra um trecho do meu poema predileto de João Cabral [17]:

 

Na paisagem do rio

Difícil é saber

Onde começa o rio;

Onde a lama

Começa do rio;

Onde a terra

Começa da lama;

onde o homem,

Onde a pele

Começa da lama;

Onde começa o homem

Naquele homem.

 

MÃE PAULO: Gostaria de agradecer imensamente pela entrevista concedida. Ainda gostaria de pedir que fizesse algo para finalizarmos o que começamos aqui. Você poderia gravar um áudio que seja o resumo de todas as sensações evocadas a partir dessa entrevista? Gostaria que dissesse tudo que viesse à sua cabeça, que usasse a livre associação e não se preocupasse em elaborar um discurso coeso. Seja intensa, INTENSA! E siga os estímulos do instante, da sintonia. Não se programe; assim será melhor. Esse áudio não será escutado por agora, mas somente em 2047, quando eu tiver sessenta anos. Ele faz parte de um projeto de uma performance chamada Vozes de uma Eterna Saudade, que está, desde já, em processo de criação. Eu colho esses áudios de pessoas com quem tenho (ou tinha) vínculo afetivo. Confie em mim, por favor! Guardarei esse arquivo sonoro no meu e-mail pessoal, no e-mail p**************@gmail.com, num pen drive e num CD, para não ter como se perder com o tempo. No final da gravação, diga o seu nome e a data de hoje, por favor.

Um beijo grande! Muito obrigado por tudo! E até breve!

 

Reprodução do Facebook de Suzana Queiroga/ 19 de julho de 2013. Foto de Maira Mesquita

 

Eu te daria, Dionísio, a cada dia

Uma pequena caixa de palavras

Coisa que me foi dada, sigilosa [18]

 

 

NOTAS

[1] Canção II, de Hilda Hilst. Ver em: <http://goo.gl/I6M9Sd>. Acessado em: 15 de agosto de 2013. Também se pode ouvir esse poema cantado por Verônica Sabino no CD Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé. De Ariana para Dionísio, organizado por Zeca Baleiro.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido – Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 7.

[3] Do meio das nossas conversas diárias, surgiu a ideia de fazermos uma tatuagem juntos. A Suzana me propôs o desenho, que faz parte da videoperformance Olhos d’Água, para ser essa tatuagem em comum.

[4] WATHER, Ingo F. (Org.). Arte do Século XX. Colônia: Taschen, 2010, p. 49.

[5] Ibidem, p. 50.

[6] Ibidem, p. 161.

[7] Ibidem, p. 179.

[8] Ibidem, p. 230.

[9] Ibidem, p. 243.

[10] Ibidem, p. 295.

[11] WULFFEN, Thomas. “Thoughts on Marina Abramović’s The Biography”. In: ABRAMOVIĆ, Marina. The Biography of Biographies. Milão: Charta, 2004, p. 11; tradução livre para o português.

[12] BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Difusora Bíblica, 2008, p. 1039.

[13] KAZANTZÁKIS, Níkos. Testamento para El Greco. Trad. de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 20.

[14] Citação de Níkos Kazantzákis retirada do blog Casa do Sol – Um encontro com Hilda Hilst. Ver em: <http://casadosolhildahilst.blogspot.pt/p/voce-tem-o-pincel-tem-suas-tintas-pinte.html>. Acessado em: 15 de julho de 2013.

[15] HEISENBERG, Werner. A Parte e O Todo. Rio de Janeiro: Contratempo, 2005.

[16] O conto a que Suzana se refere é “O Jardim de Veredas que se Bifurcam. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Rio de Janeiro: Globo, 1997.

[17] MELO NETO, João Cabral de. O Cão sem Plumas. Rio de Janeiro: Editora Alfaguara, 2007.

[18] Canção X de Hilda Hilst. Ver em: <http://goo.gl/I6M9Sd>. Acessado em: 15 de agosto de 2013. Também se pode ouvir esse poema cantado por Angela Maria no CD Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé. De Ariana para Dionísio, organizado por Zeca Baleiro. 

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MÃE PAULO. “‘Você tem o Pincel, tem suas Tintas, pinte o Paraíso e depois entre nele’: Uma Entrevista Performática com Suzana Queiroga”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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