O coma é bom para os vivos.
Samuel Beckett
Ao longo dos últimos anos, fomos assistindo a uma recorrência da temática ligada ao corpo em diferentes áreas da chamada produção cultural, numa configuração com perspectivas distintas mas sempre com uma intensidade notável. Este fato pode ser entendido como mero resultado das marés que vão procurando renovar ciclicamente o cardápio das indústrias culturais, ou então, como eu prefiro, integra um movimento menos superficial e de mais longa duração que é sobretudo sintoma de uma crise da ideia que vamos continuamente construindo à volta do que possa ser o nosso corpo. Só aceitando essa crise estaremos em posição de compreender algumas das principais linhas de força que, por exemplo, a arte nos tem oferecido desde, sensivelmente, o início dos anos de 1960. De outro modo, como explicar esse movimento constante à volta de uma ideia do corpo que se foi tornando cada vez mais difusa, ao ponto de nos obrigar até a pensar sobre a eventualidade (para alguns, fatalidade) do desaparecimento do seu objeto?
Essa crise leva-nos a colocar a hipótese de um estado pós-humano, uma outra forma de nos referirmos ao desvanecimento do corpo. Mesmo sem recorrer aos lugares-comuns da ficção científica, é possível detectar um sem número de sinais dessa condição pós-humana, e a sua simples enumeração seria assunto para todo um outro texto. Sistematizando, podemos associar esses sinais ao deslocamento e ao desvanecimento das fronteiras que nos habituamos a desenhar em redor da ideia do corpo, limites esses fundamentais para a construção de uma identidade distintiva do humano. Essa batalha intensa, que faz do organismo humano campo de ação, participa na reconstrução e desfocagem, por exemplo, da velha dualidade cartesiana entre corpo e mente, da oposição entre orgânico e mecânico (o homem e a máquina), ou mesmo da linha de separação entre a vida e a morte.
Como qualquer identidade, também a ideia do humano se definiu sempre por oposição àquilo que lhe era pretensamente exterior. Seguindo Mario Perniola (1998, p. 12-14), podemos verificar um movimento distintivo vertical (ascendente em direção ao divino e descendente no sentido da animalidade), e um outro horizontal (face às coisas que nos rodeiam). Enquanto no movimento vertical estaria sempre presente um sentido latente da coisa viva, no movimento horizontal seríamos confrontados com a coisa inanimada. Ora, é nesse movimento horizontal que podemos encontrar o desafio mais espantoso que a ideia do corpo e, por arrastamento, uma certa identidade do humano enfrentam. Pois não é exatamente no domínio dessa horizontalidade que se encontram todos os objetos inanimados que, entretanto, reclamam uma vida própria, quando não mesmo uma fusão com os nossos próprios corpos? Pois não podem essas coisas serem uma coisa que pensa (em boa medida, uma negação daquilo que entendemos por uma coisa)? E não são muitas delas pensadas como uma metáfora da complexidade dos nossos próprios organismos (bastaria aqui dar o exemplo das chamadas redes neuronais)?
Uma das hipóteses distintivas nesse movimento horizontal, já que as coisas podem agir e pensar (aprendendo mesmo de uma forma evolutiva), seria o nível das emoções, ou, como refere Perniola, a capacidade de sentir. Mas a pergunta de Perniola — Por acaso é uma coisa um homem que não sente? — acaba por revelar o absurdo que é centrar a distinção nesse ponto. Termina pois propondo para o ser humano a definição de uma coisa que sente, muito provavelmente uma diferente fórmula para a ideia de que vivemos dentro de um corpo e que é isso que nos distingue de uma máquina.
De qualquer modo, a questão será sempre a de saber se há um limite — mais uma linha divisória — na articulação entre uma máquina inteligente e um ser humano.
A matematização crescente da realidade, expressa através de uma abstração reduzida aos zeros e uns da computação, tem tido, nesse processo de criação da ideia de um corpo pós-humano, um papel fundamental. Digamos que essa sequenciação numérica foi o último passo para que possamos afirmar que a informação não tem corpo, levando-nos a acreditar que esta pode circular inalterada entre diferentes substratos materiais (HAYLES, 1999, p. 1-2). Essa imunidade da informação digital perante os diferentes substratos físicos dos seus canais, foi por mim, num outro momento, identificada através do termo metamorfopsia digital, movimento imparável através do qual quaisquer mutações deformantes da realidade e das suas representações se tornam indiferentes face à natureza niveladora dos zeros e uns da computação (LEAL, 2001).
O mais impressionante exemplo dessa intromissão do digital no mapeamento e redefinição do nosso corpo é a recente sequenciação do genoma humano, operação que parece não querer terminar por aqui: ainda o projeto HUGO (Human Genome Organization) não tinha chegado ao fim e já se lançava o HUPO (Human Proteome Organization), que tem como missão a análise em grande escala dos padrões de produção das proteínas. Tal processo opõe à nossa corporeidade a abstração aparentemente neutral da computação. A numerização tem-se então estendido a todo o corpo do mundo, mapeando indistintamente coisas, animais ou vegetais, nivelando a realidade através da massa informe e enfadonha das sequências numéricas 2. Ao mesmo tempo é engraçado verificar que a visualização dessas abstrações matemáticas se torna uma necessidade imposta pela sua cada vez maior complexidade. Trata-se porventura de uma rematerialização em busca de novos códigos, de novos padrões de visualização do real, fechando assim o grande círculo do jogo metamorfoseador do mundo.
Pensar o corpo no meio dessa espiral é traçar um eixo permeável — mas não seccionável — que podemos designar como bio-tecno-político, recuperando assim o terreno indispensável de uma política do corpo. Mais não fosse, esse estado de crise tem essa virtude: repolitizar o corpo. A construção de um modelo que alguns consideram pós-humano também vai implicando a descoberta de toda uma nova galeria de fantasmas de sinais contrários, onde revemos, por exemplo, a possibilidade de uma sublimação final da carne, agora volatizada e purificada, o que para uns é motivo de um terror apocalíptico que anuncia a possibilidade dos dias do humano estarem terminados, e para outros a libertação final da corporeidade como uma inevitabilidade da vida humana. Em ambos os casos, estaremos sobretudo perante tentativas extremas de responder a um novo entendimento daquilo que possa ser o corpo.
A ideia que fazemos do corpo é hoje, muito provavelmente, uma metáfora da complexidade dos sistemas que o envolvem, pelo menos tanto quanto esses sistemas procuram replicar a sua própria complexidade (do corpo). Por isso permanecem tão válidas as comparações entre a permeabilidade e contingência da vida e a fragilidade e elasticidade dos dispositivos tecnológicos, a que a introdução de uma variável biológica cada vez mais intensa só vem acrescentar densidade. De fato, Katherine Hayles, na conclusão do seu livro sobre o pós-humano, já avança a tese de que os organismos melhor talhados para sobreviver são aqueles capazes de desenvolver mecanismos internos que sejam boas metáforas para o mundo que os rodeia, padrão a partir do qual teremos um melhor entendimento daquilo a que ela chama pós-humano não apocalíptico (HAYLES, 1999, p. 290). Dessa perspectiva não é mais possível uma divisão clara entre uma pretensa solidez do real e uma ilusão volátil do virtual, até porque se o corpo se prolonga para as redes informacionais — como facilmente se deduz das anteriores reflexões sobre a matematização do mundo —, podemos dizer que de alguma forma somos já todos cyborgs habitando o espaço entre as coisas. Não é pois meramente uma questão de abandonar o corpo em definitivo mas antes de alargar uma certa consciência incorporada (embodied awareness) de forma tão complexa que seria impossível de concretizar sem as próteses eletrônicas (ibidem, p. 291). Eu gostaria antes de utilizar a expressão campo expandido do corpo para definir essa situação, escapando assim ao prefixo do pós-humano.
Se o corpo replica aquilo que lhe é exterior para melhor assegurar a sua sobrevivência, podemos afinal dizer que a nossa porta com o mundo habita já o limbo dos canais de comunicação onde circula a informação incorpórea? Será que de algum modo podemos falar da desmaterialização do nosso próprio corpo? Será que é isso que representa esse campo expandido do corpo?
Antes de mais, esse campo expandido do corpo representa um espaço liso capaz de cortar com as ameaças de um totalitarismo tecnocientífico, que, à semelhança de outras versões totalitárias (entendendo aqui o termo na acepção de uma pensadora como Hannah Arendt), se pode revelar assustador. A única forma de entender a deriva do corpo num campo expandido de possibilidades é escapando à fatalidade tecnológica que nos parece impor um modelo evolutivo (dissolutivo) para o corpo. Teremos assim o imperativo de uma desfatalização da tecnologia, na senda do que Hermínio Martins afirma na entrevista publicada na revista Número (n. 11, nov./dez. 2001, p. 112-121).
Não podemos falar de uma desmaterialização do corpo, mas antes de uma rematerialização que obriga a um entendimento diferente da identidade humana, até porque a conceptualização da experiência ligada ao digital merece uma reatualização a partir de um triângulo de complementaridades (percepto>afeto<concepto) capaz de o libertar dos riscos empobrecedores causados pela metamorfopsia digital (LEAL, 2001).
Finalmente, depois de dissolvida a nitidez das distinções entre a pretensa solidez do real e a ilusão volátil do virtual, entre a abstração do digital e a figuração analógica, ou entre a sensualidade do orgânico e a frieza do inorgânico, renova-se o interesse pelo trânsito entre as diversas polaridades formadas de um lado e do outro dessas linhas que ganharam agora espessura. Os movimentos sem destino entre esses territórios aparentemente apartados fazem-se sobretudo na membrana (interface) que os une e separa, constituindo assim um campo aberto de possibilidades para o corpo. Devemos pois recordar que o corpo é, apesar de tudo, ainda o lugar e o motor da experiência, e que essa membrana é cada vez mais o espaço que ele habita. Aliás, é no espaço entre as coisas que melhor se realiza a deriva e só aí seremos capazes de compreender o campo expandido do corpo.
BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1998.
GUARDA, Dinis; URBANO, João. “O Mundo dos Compossíveis”. Entrevista a Hermínio Martins. Revista Número, n. 11, Lisboa, nov./dez. 2001, p. 112-121.
HAYLES, N. Katherine. How we Become Posthuman: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
LEAL, Miguel. “Estranheza e Deslocação: Notas Sobre um Museu de História da Medicina”. In: Imagens Médicas: Fragmentos de uma História. Porto: Porto 2001/Porto Editora, 2001, p. 301-315.
PERNIOLA, Mario. El Sex Appeal de lo Inorgánico. Trad. de Mario Merlino. Madrid: Trama Editorial, 1998.
Este texto foi publicado pela primeira vez há vários anos, num pequeno livro que reunia as comunicações de um colóquio que teve lugar em 2002, na Casa das Artes, no Porto (Arquitectura – Prótese do Corpo, FAUP/Hangar, Porto, Portugal, 2002). É sempre estranho republicar um texto tantos anos depois e pensei que faria sentido acrescentar-lhe um post-scriptum. No entanto, ao relê-lo, à distância, pareceu-me que continua a fazer sentido assim e que nada do que pudesse escrever agora poderia torná-lo mais atual. Os textos que escrevemos, como tantas outras coisas que fazemos, têm vida própria e viajam por aí como coisas que já não nos pertencem verdadeiramente.
PARA CITAR ESTE TEXTO
LEAL, Miguel. “O Campo Expandido do Corpo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor
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