Tales Frey (Cia. Excessos), Re-banho. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Outubro de 2010. Fotografia de Suianni Macedo
Intercessores
Mudança do lugar de quem olha – consequência de assistir a uma performance capturada por dispositivos. Entramos no âmbito que afirma as possibilidades das imagens. O pensamento a respeito das noções e experiências da imagem que surgiram na imbricação entre as linguagens e manifestações artísticas das artes contemporâneas necessita, por si só, de uma visada que procure por derivações. Para Deleuze e Guattari, o papel da filosofia é criar conceitos. Eles consideram ter criado pelo menos um de fundamental importância – o de ritornelo. O ritornelo é um problema relacionado ao território, referente às entradas e saídas do território. Então, isso nos leva à compreensão de uma nova pretensão do conceito de desterritorialização: é que não há território sem vetor de saída, e não há saída do território sem, ao mesmo tempo, um esforço de territorialização. As imagens da videoperformance interessam, sobretudo, por seu aspecto de partilha, de disponibilidade no mundo e por sua conjugação entre olhar e imaginação. Em Re-banho existe um desconforto experimentado com a rememoração do vivido no espaço topológico da cidade – reside aí uma espécie de edificação mítica que instaura um campo de batalha. Uma batalha contra a paralisia que o mito e seu regime de crença fortalecem.
Impressões da imagem
A primeira visão que o vídeo nos dá é de cima. Performers, baldes e uma sonoridade de respiração. Se nesse momento estamos claramente em um lugar de observador, outras tomadas nos colocam juntos aos performers – a câmera como personagem que escolhe os ângulos de visão. Acompanhamos o percurso realizado na rua quase como testemunhas. Esse movimento insinua um apagamento do primeiro, mas, juntos na montagem, faz pensar na ideia inversa – talvez estejamos sempre sendo vigiados, porém, ironicamente, por nós mesmos. A ação que testemunhamos se volta e nos olha. Muitas vezes, querendo ou não, nos vemos investidos em ajuizamentos.
A sonoridade da respiração imediatamente se mistura ao som urbano. John Cage disse em uma entrevista que, quando escuta música, parece, para ele, que alguém está falando, como se escutasse alguém falando sobre seus sentimentos ou sobre suas ideias de relacionamentos. Mas quando escuta o som do trânsito, tem a sensação de que o som está em ação. É como uma atividade do som que ele adora. Realizar a apropriação da ideia da atividade do som urbano em Re-banho tem o caráter de fazer surgir certos questionamentos que misturam a cidade e o corpo que age. O que é espaço externo? A cidade ou o corpo, na medida em que os dois viram agentes? Não estaríamos processando uma interioridade da cidade? Se o desejo máximo da subjetividade é adquirir uma insistente individualidade, a ação privada do banho realizada em espaço público empreende um movimento que refuta o natural. E se esse é um modo pelo qual no mínimo designamos alguma coisa por arte – contraponto ao natural –, dá-se um embaraço no ajuizamento, tanto do que seria o natural como do que seria o construído. Assim, nossa noção mesma de subjetividade fica desterritorializada, derivando entre essas polaridades. Nossa sorte será encontrar um ponto de fuga. Talvez a fuga possível seja se voltar para a realidade e investigar seu caráter de construção.
Re-banho focaliza o corpo alegorizado, quase como uma montagem de ícones. O vídeo faz o trabalho de recorte dos corpos-como-ícones diante da igreja. Na visão frontal, com os performers de costas, ela se mostra com força de monumento. As variações das imagens que nos chegam não impedem a afirmação de alguns motivos iconográficos que se repetem e, assim afirmados, tomam a feição de um evento histórico. À igreja é atribuído um valor de testemunho que, pelo menos em alguma medida, depende da atividade mental de uma época. Vemos, então, duas épocas em um confronto materializado no corpo – estatuária de Aleijadinho que aponta criticamente para o que a criou. Por meio da ação dos performers em se banhar vestidos, esfregando o corpo com água e sabão por baixo das roupas severas, cria-se uma espécie de escritura. Talvez uma nova escritura, uma liturgia às avessas que transforma a função da água. Ela não limpa, não acalma, mas quase que escarna os corpos. Nesse sentido, a imagem é simultaneamente texto. Um texto escrito pela fricção que coloca em xeque aquilo que consideramos nossa identidade: legado de autodestruição.
O (re)fazer que acontece na exibição da videoperformance menos confere eternidade ao presente específico da ação do que instala novas atualizações. Se o peso do testemunho tradicional se perde com a imagem reproduzida, a atualização do fenômeno parece se aproximar do que Walter Benjamin ressaltou a respeito das possibilidades da reprodução técnica de “colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar o indivíduo da obra”.
Outras implicações do corpo em Re-banho sugerem um modo de se relacionar com a questão divina da imagem assimétrica que origina o homem. Como nos diz Viviane Matesco em um texto esclarecedor, o pecado original introduz a dessemelhança de uma imagem decaída. A semelhança cristã, por mais que não se repita muito isso por aí, está pautada numa hierarquia, pois fixa uma cópia que se assemelha ao seu modelo, mas o inverso não é possível. A relação modelar do corpo cristão é com uma imagem; assim, existe uma necessidade imposta de mediação. Então, o que parece ser escrito pela imagem é a dessemelhança, que deixa de ser um tema e inclui o outro na ação.
A formulação básica do “coeficiente artístico” de Marcel Duchamp é que a obra de arte se abre no espaço do receptor, na temporalidade que vai detectar uma intensividade na obra. A arte que comumente chamamos de contemporânea, mais do que querer estabelecer lugares idealizados, procura por modos de convivência no espaço público em meio a nossa atualidade de experiências fragmentárias. O lugar do corpo inscrito na dessemelhança de Re-banho se refaz de uma teleologia que o fundamenta.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 168.
MATESCO, Viviane. Corpo imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
PARA CITAR ESTE TEXTO
CESARE, Dinah. “Imagem e Dessemelhança”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 3, mar. 2013. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2013 eRevista Performatus e a autora
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