“Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica (…)
São igualmente diferentes e muito mais complexas as condições
sociológicas e psicológicas do nosso perguntar” (Santos, 2005, p. 19)
Esse escrito não se pretende crítica, da forma como entendemos esse termo nos moldes formalistas de nossa “contemporaneidade”. Refiro-me aqui ao tempo contemporâneo e não à definição que costumamos dar a um tipo de estética assim nomeada após o pós-modernismo. Tampouco se pretende como um ensaio ou artigo onde apresento dados precisos, autores inquestionáveis ou teorias testadas. Ele é mais uma opção dialógica do nosso perguntar sobre modos de produção em arte contemporânea e sobre como esse produzir vem quebrando antigos paradigmas acerca do como apreciar e educar em arte.
Aspectos Contemporâneos da Pedagogia Musical é uma obra mediada dialogicamente por Thiago Salas Gomes e Cadós Sanchez, artistas da música, que fazem parte de um agrupamento independente denominado Circuito de Improvisação Livre, atuante no estado de São Paulo (Brasil).
Ao assistir essa obra, por duas vezes, questões me surgiram e a primeira delas diz respeito à “mediação”. Proponho que o que eles realizaram em cena, no contexto da exposição resultante da primeira residência artística promovida pelo Condomínio Cultural [1], foi uma mediação dialógica, uma vez que, na configuração, um corpo biomaquínico (Santaella, 2003) foi mediado por um Sujeito-EU em cena compondo com e junto a ele o Sujeito-SE (Couchot apud Machado, 2007).
Muito necessário esclarecer as duas teorias que cito aqui para chegarmos à obra. Para Santaella (2003), os corpos, quando em interação com suas extensões biomaquínicas, criam um organismo híbrido protético “que está instaurando uma nova forma de relação ou continuidade eletromagnética entre o ser humano e o espaço através das máquinas” (Santaella, 2003, p. 271-272). Para Couchot, aqui citado por Arlindo Machado (2007), o Sujeito-SE ou o sujeito-aparelho define, em parte, concretamente, como programado, parte da narrativa na relação corpo e máquina em uma imersão cibernética/artística.
O que esses dois artistas fazem em cena está intrinsecamente relacionado com essas teorias. Eles construíram uma extensão biomaquínica, que aqui denomino “corpo”, para fazerem e interagirem com composição sonora em cena, em tempo presencial.
Essa forma de configurar já propõe uma relação não usual entre o fazer música e realizar uma composição sonora, pois ela quase anula a possibilidade de denominar quem opera esse “corpo” como mero intérprete, ainda que esse aparelho possa ser definido, por puristas, como instrumento. Mas, o que se apresenta como instigante e, em minha avaliação, ponto importante para a ruptura dos atuais paradigmas a respeito de configurações da arte e propostas pedagógicas para esse fazer, é esse “corpo” ter sido o centro da performance e os outros elementos (humanos, sonoros, metafóricos e manipuláveis) o cercarem e estarem dialogando com sua performance. Aquele corpo também era um agente.
As escolhas estéticas e as metáforas construídas pela dupla também me parecem curiosas e assertivas. Como citei, essa obra foi feita em um contexto de residência artística em um espaço cultural em São Paulo. Curioso pensar que eles escolheram e habitaram um lugar no Condomínio Cultural que se chama “Sala Cirúrgica”, e lá criaram e instalaram um corpo biomaquínico em constante manipulação e operação humana.
A obra se configura quase como uma provocação que nos incita, nós, interatores [2] que dela participam, a repensar os conceitos clássicos sobre produção musical e sonora. A música apresentada nos convidou a entender produção sonora como música, ruído como metáfora, máquina como corpo, intérpretes como agentes, e ressignificaram o sentido da palavra pedagogia.
Parece-me que ao apresentar uma obra que se intitula e se qualifica como os próprios aspectos contemporâneos da pedagogia musical, os artistas colocam uma séria problemática, que no Brasil se torna inclusive uma pertinente crítica e posicionamento político que se refere a como o público vem entendendo música. Portanto, todo o ato performático que se passou foi pedagógico.
A palavra pedagógico, no sentido dado por esses artistas, cria outras possíveis significâncias quando conclama para si um tipo de aprendizagem muito específica e que, argumento, tem sido desenvolvida por meio da experiência, do fazer artístico, e não especificamente porque há escolas ou centros de ensino voltados a essa forma contemporânea de entender música. O que argumento é que essa obra aponta indícios de que possíveis mudanças em nossas formas de interagir com arte estão em curso, e isso muda nosso modo de existir.
Fiadeiro e Eugénio, em seu texto Dos modos de re-existência: Um outro mundo possível, a secalharidade propõem
Mas, e se imaginássemos um outro mundo possível? Um terceiro regime sensível, nem complementar nem simétrico? Um mundo em que existir não fosse reproduzir ou rebelar, e em que resistir não consistisse no cancelamento da relação? Um modo de vida em que a coisa toda não se resumisse à certeza ou à alternância. Um mundo no qual a diferença não fosse identitariamente congelada, como no regime moderno, mas tão pouco fosse cancelada na indiferença do “tudo pode” pós-moderno. Um mundo no qual a diferença pudesse se propagar em sua assimetria infinitesimal, sem ser oferecida em sacrifício para que haja encontro, e no qual tão pouco o encontro precisasse ser sacrificado para que houvesse simetria? Um mundo dissensual, em que o viver juntos fosse feito do cromatismo microscópico dos ritmos singulares? […] Fantasia de torná-lo habitação de o visibilizar numa ética do suficiente (não do necessário, muito menos do compulsório) em relação à proclamação do Eu. Um mundo que se inaugura não a partir da cisão, mas do esforço por perpetuar a relação ou a “des-cisão” produzindo como plano comum de atuação o Acontecimento. (Fiadeiro e Eugénio, Texto “manifesto” que sustenta e enquadra o projecto AND_Lab – Investigação artística e criatividade científica).
Identifico que a proposta estética dessa obra vem pôr à luz essa outra forma de des-cindir sujeitos-objetos, música-ruídos, arte-público, ensino-aprendizagem. O que parece romper, na realidade vem encontrar, vem falar de outros modos possíveis de re-existência, de re-existir.
O que esses artistas propõem talvez não seja uma NOVA forma pedagógica para abordar música, corpo, máquina – o que seria enfadonho, pós-modernista e inevitavelmente inútil nos tempos críticos e extremos em que vivemos –, mas eles perceberam o quão necessário é nessa atualidade do more is better [3] mudar o enquadre sobre pedagogia para, daí sim, criar um ruído crítico sobre nossas atuais formas de perceber o mundo.
Por fim, esse texto também é um ruído de uma não especialista em música, intrusa, que trabalha sobre os mesmos parâmetros de todos com quem dialogou durante o escrito e que quer, sobretudo, que outras possibilidades do fazer artístico sejam legítimas e possíveis.
NOTAS
[1] Espaço cultural independente, sediado na cidade de São Paulo, na rua Bica de Pedra, n. 141, Vila Anglo Saxônica. Esse espaço promoveu, em 2013, com verba do Programa de Ação Cultural (PROAC) da Secretária de Cultura do Estado de São Paulo, seu primeiro programa de residência artística, selecionando, entre outros artistas visuais, os dois músicos que estruturaram essa performance.
[2] Para Machado (2007), termos como “usuário”, “receptor” e “espectador” não mais correspondem à complexa rede formada pelos fenômenos inter-relacionais, por isso adota o termo “interator”. A própria palavra “interator” nos remete a uma ação: a de interatuar, agir junto com. Essa conceituação trazida pelo autor traça um perfil adotado por esse corpo-pessoa que age em conjunto para modificar a obra.
[3] Expressão idiomática estadunidense que define o consumismo voraz capitalista.
BIBLIOGRAFIA
FIADEIRO, E.; EUGÉNIO, F. Dos modos de re-existência: Um outro mundo possível, a secalharidade. Ver em: <http://and-lab.org/manifesto>. Último acesso: 24 de novembro de 2014.
MACHADO, A. O sujeito na tela: Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.
SANTOS, B. S. Um Discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2005.
SANTAELLA, L. Culturas e Artes do Pós-humano – da cultura das mídias a cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Jaqueline Vasconcellos: Mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia (2012). No momento atua junto ao Conexão ZAT como criadora e articuladora cultural. Coordenadora da Plataforma Internacional de Dança 2010, organizou eventos internacionais, tais como o Seminário Economia da Dança: Fluxos Colaborativos de Gestão Para a Mobilidade na América Latina (2010) e a Jornada de Discussão e Reflexão em Curadoria (2010). Em 2012, coordenou o Seminário de Gestão Curadoria e Criação, Lá em Casa, em São Paulo, do qual é coidealizadora. Criadora e coordenadora da linha de ação Gran(de) Angular do Conexão ZAT, realizou esse projeto de estímulo à videodança na América Latina. Em 2013, idealiza e organiza o Zona Pirata #1, encontro em torno de formas horizontais de comunicação para as artes cênicas, ganhador do Edital Prêmio Meses Temáticos do Circo, Dança e Teatro 2013: Diálogos e Reflexões da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Ao lado de Talma Salem, em 2013, gere o projeto Guerrilha Poética: Cartografia dos Sentidos, contemplado com o Prêmio FUNARTE-PETROBRAS Klauss Viana 2012. Enxerida de plantão, gosta de escrever o que pensa sobre o que vê.
PARA CITAR ESTE TEXTO
VASCONCELLOS, Jaqueline. “Corpos Biomaquínicos e Composição Sonora: A Atual Complexidade do nosso Perguntar”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e a autora
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