As noções de memória, para o filósofo francês Jacques Derrida, estão relacionadas com o tempo. O que nos acontece, acontece uma única vez. O instante é único. A memória arquiva esse instante e a escrita eterniza. Aqui, são registros e/ou relatos de experiências durante a realização do IPêrformático, o primeiro encontro de performance em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Também os considero balbucios, pois podem ser imperfeitos, hesitantes ou gaguejados.
O nome do encontro, que foi idealizado numa parceria entre mim e os artistas e performers Thiago Moraes e Yura, surgiu a partir do jogo das palavras: “ipê”, uma árvore nativa brasileira e muito presente nas terras sul-matogrossenses; o prefixo “hiper”, que significa exagero; e o IP do computador, o número que indica conexão, local de contato, identificação. E como tema “No princípio era nada”, porque não era mesmo.
As primeiras atividades do encontro foram as oficinas “Ajuntamento de criações performativas”, ministrada por mim e por Tiago Salis, de São Paulo, e “Performance: da ideia à finalização”, com Thiago Moraes e Yura. As duas oficinas, cada uma à sua maneira, traçou experimentos performativos com os participantes que, até então, não tinham contato com a performance.
Na abertura oficial, no hall do Museu de Arte Contemporânea, tivemos a performance Meu nome é Neusa, venho em paz…, de Yura. Uma ação carregada de autorreferencialidade do artista que, em muitas de suas obras – inclusive nas artes plásticas –, propõe questionamentos sobre o que é ser humano a partir de si mesmo.
Ainda no museu, nos espaços de entrada, tivemos a videoinstalação Reverso, de Tales Frey, que foi projetada no teto. Em outro ponto, numa televisão, foi exibido o registro da performance Aborto – medida performATIVA #2, de Lígia Marina. Enquanto isso, acontecia a Mostra de videoperformance e registros de performances no auditório. Sobre a mostra, importa comentar que contamos com a participação de vídeos de artistas e de coletivos do Brasil inteiro, como Coletivo Pi, Amor Experimental, Tete a Teta, Aquele Mario e Marie Auip, Tomaz de Aquino, Everton Lampe, Krefer, Roderick Steel, Rodrigo Abreu e Joto Gomo.
Na Praça das Índias, Givago Oliveira, cineasta e idealizador do coletivo T’amo na Rodoviária, se vestiu de índio e permaneceu dentro de um cercadinho de arame farpado na performance Matem o filme, feita com colaboração de Estefânia Bueno. A ação faz referência a um filme chamado Matem eles, produzido em Mato Grosso do Sul, que gerou muitas polêmicas por mostrar cenas explícitas de preconceito em relação aos indígenas. Durante a ação, havia projeção de imagens do filme com legendas das falas dos personagens.
Em Digestivo, o performer sul-matogrossense Tom Kyo ingere coisas, vomita. Tratou dos sentidos, do que é absorvido pelo corpo, alma. O que é processado nesse ser. O que faz mal, o que precisa ficar, o que precisa ser vomitado. E, de maquiagem carregada, salto, minissaia, Alaine Amaral iniciou sua performance Sede. Com as mãos amarradas, bebia água numa vasilha que estava no chão, enquanto a maquiagem se esvaía. A mulher tem sede. E o que temos sido? Sejamos. Sejamos?
Pontualmente às 23h59, o performer Stelio Barbosa começou o beijo de Samuc@, no meio da festa Rendevu, organizada pelo Teatro Imaginário Maracangalha. Entre textos lidos sobre desabafos e relatos pessoais, ações com um vibrador negro que, num determinado momento, é introduzido no ânus pelo performer. Questionamentos do ser menino, menina, meninx. Ser todxs. Ser sem nomenclaturas, sem padrões preestabelecidos.
Na mesma noite dessa festa, tivemos a oportunidade de ver Antimusa, com Estela Lapponi e Neca Zarvos, de São Paulo. É uma performance musical. Uma é guitarrista, outra é cantora. São backing vocal. São WoMan. Uma com um vestido levantado e um pênis de borracha verde colocado na frente do órgão sexual. Cantam, brincam, dançam, são elas antimusas.
Numa esquina movimentada da cidade, Maíra Espíndola construiu uma mandala de areia colorida no chão, enquanto entoava cantos budistas. A ação se desdobrou com um canto que faz menção à figura mitológica do candomblé Iansã, e Michelly Dominiq iniciou movimentos e uma dança até que se destruísse a mandala. Durante a ação das artistas, um camburão da Guarda Municipal parou, desceram quatro guardas municipais e permaneceram de braços cruzados até que a performance finalizasse. Uma postura de intimidação.
O artista Thiago Silva Moraes, que tem pesquisa em gênero, vestido com figurinos da cantora Madonna realizou Confessions on the Justice Floor, na calçada em frente ao Fórum de Justiça da cidade. A performance alude a sétima turnê da cantora – Confessions Tour –, feita em promoção para seu décimo álbum de estúdio Confessions on a Dance Floor. O performer dublou as músicas e executou as coreografias. A duração da ação foi a mesma do show de Madonna. Enquanto a performance acontecia na calçada, o vigilante do prédio público abordou o artista dizendo que não poderia estar naquele local e, em seguida, acionou a Guarda Municipal. O camburão ficou circulando na rua por um tempo.
O grupo Teatro Imaginário Maracangalha fez a intervenção Cabeça de papelão, na qual os quatro integrantes, com caixas de papelão na cabeça, proferem frases que denotam a alienação da sociedade. A intervenção fez um trajeto por alguns pontos da região central e adentrou no corredor central do Fórum. Os seguranças do prédio também acionaram a Guarda Municipal e mantiveram os artistas detidos no local por algumas horas. Eles só foram liberados com a chegada de um advogado. Isso ocorreu porque, segundo o juiz do Fórum, o local “é um espaço público privado”.
De Fortaleza, mas residindo em São Paulo atualmente, Natália Coehl fez a performance PET, com a participação de André Tristão. A artista estava com um vestido preto elegante, salto e maquiagem, e era puxada, como uma cadela, por uma coleira de pérolas. Um passeio “pet” pelos corredores do shopping principal da cidade.
Além dessas performances, a programação do encontro contou com duas rodas de conversa. A primeira foi numa sala do curso de Artes Cênicas e Dança, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, e teve como tema “Intervenções urbanas e ações relacionais”. O performer Tiago Salis, de São Paulo, nu, com a pele pintada de vermelho, retirava, com um conta-gotas, tinta vermelha de um recipiente e pingava em algumas panelas. Os movimentos eram lentos, calmos e precisos. A ação aconteceu enquanto eu e Fernando Cruz, diretor do grupo Teatro Imaginário Maracangalha, falávamos sobre nossas experiências a partir do tema da roda de conversa.
A segunda roda de conversa, que foi realizada no auditório de Arquitetura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em parceria com o curso de Artes Visuais, teve como tema “Performance e gênero”, com a participação de Stelio Barbosa, Thiago Silva Moraes e Yura. Enquanto o tema era abordado pelos convidados, Yura fez em si uma maquiagem com tons coloridos.
Depois de tentar relatar algumas das performances que aconteceram nos quatro dias de encontro, vou ater-me a escrever registros mais pessoais. Como já mencionei anteriormente, ministrei a oficina “Ajuntamento de criações performativas” juntamente com Tiago Salis. Foram três dias de trabalho, nos quais procuramos desdobrar provocações no corpo dos participantes e as inquietações com a cidade.
A partir de inquietações comuns, minhas e de Tiago Salis, sobre a sociedade, propusemos, como um dos temas principais, a questão indígena, pois este tema é uma incógnita não só em Mato Grosso do Sul – o segundo estado com maior população indígena –, mas também no país todo. É um microcosmo dentro do macro, que envolve todas as injustiças com marginalizados pela sociedade, sejam eles índios, negros, homossexuais etc.
Desse modo, elaboramos um roteiro poético e um programa de ações. Nos encontros, os participantes compartilharam suas inquietações e levaram mais elementos para complementar o nosso roteiro. Então juntos criamos a ação performativa, que não recebeu nome, para ser executada na região central da cidade.
No dia 15 de novembro de 2014, às 7 horas da manhã, nos reunimos no ponto inicial do trajeto da ação performativa, eu, Tiago Salis, Silvia Miranda e Tom Kyo. Esse ponto inicial é uma praça denominada “das Índias”, que tem a estátua de uma índia com um cesto na cabeça. Com elementos pessoais, montamos um altar para a estátua; uma santificação da “mãe índia”, nossa ancestral, a nossa terra materna.
Em frente à estátua, deitamos em posição fetal, com os pés pintados de vermelho, e ali permanecemos por um tempo. De lá, seguimos pintando uma linha vermelha ininterrupta no chão, num trajeto pelo centro da cidade, como um cordão umbilical. A linha foi feita com pincel e a tinta vermelha era cal diluída em água com corante vermelho.
A linha vermelha se finalizou numa escada abandonada e inutilizada ao lado do prédio da Antiga Rodoviária que, além do mais, estava cheia de urina e defecações. Nos degraus da escada e na lateral interna, escrevemos algumas palavras, versos e desenhos. Nesse momento, dois guardas municipais nos abordaram, em tom agressivo, afirmando que estávamos fazendo pichação.
Finalizamos a ação e explicamos que se tratava de uma performance, uma intervenção artística, mas permaneceram irredutíveis. Outros guardas se aproximaram, apreenderam nossos pincéis e a tinta e nos comunicaram que teríamos que nos dirigir até a delegacia para “falar que é arte pro delegado”; aqui uso as palavras de um dos guardas.
Nosso meio de transporte até a delegacia foi o camburão. Como ainda estava com o celular em mãos, fiz ligações para alguns amigos para contar o que estava acontecendo. Na chegada à delegacia, houve a ordem “encostem na parede”. Enquanto estávamos encostados na parede, amigos, conhecidos, uma vereadora chegaram para tentar nos ajudar e nos acompanhar nos procedimentos. Os guardas não deixaram ninguém se comunicar conosco, tampouco ficar por perto de nós.
Não podíamos desencostar da parede nenhum centímetro. Os guardas conversavam entre si e nos olhavam com ar arrogante, emitindo comentários como “Isso não é arte”, “Arte é outra coisa”, “Eu sou estudada, sei o que é arte. É outra coisa, menos isso”, “É até legal o que fizeram, mas não é arte não”.
A tensão estava instaurada e só aumentou quando nos chamaram, retiraram nossos pertences e nos colocaram dentro de uma cela minúscula, apertada. De dentro da cela, podíamos ouvir os presos conversando e nada mais sabíamos do que estava acontecendo fora dali. Permanecemos por horas naquele lugar, assim como os bandidos ficam antes de serem efetivamente presos e encaminhados para outras celas.
Não sei precisar quanto tempo tudo durou, pois a noção de tempo fica muito esgarçada. No estado performativo o tempo parece ficar dilatado, é um presente concentrado. No estado de aprisionamento dentro de uma cadeia, parece não ser possível medir o tempo em horas ou minutos. Então, o que se passou conosco foi sair do estado performativo e entrar num estado de tensão, que não é a tensão de corpo em prontidão, mas uma tensão próxima ao medo.
Depois desse tempo na cela, o escrivão nos chamou um a um para fornecer dados e nos explicou que tínhamos duas opções: assinar um termo para respondermos pelo “crime” em liberdade ou recusar e sermos encaminhados para o presídio. Nesse instante, descobrimos que três advogados estavam na recepção da delegacia para acompanhar o caso.
Por fim, a orientação dos advogados foi para assinar o termo. No termo estava escrito que estávamos cientes de que havíamos cometido o crime de pichação e que seríamos julgados no Juizado Especial. Para esse tipo de crime, geralmente a pena é entregar cestas básicas, limpar espaços públicos, por exemplo. Fomos informados de que poderíamos recusar a pena proposta e continuar o processo com a alegação de que não houve crime, pois se tratava de uma performance.
Então aguardamos a intimação da justiça e os desdobramentos do processo. Se mudarmos de endereço, devemos informar à polícia. Estamos “fichados” por pichação, embora não conste como antecedente criminal. Todavia, as inquietações e questionamentos continuam. Fica latente, agora mais do que nunca, a discussão sobre a performance, a arte pública e os espaços públicos, os espaços da cidade. Performar é preciso.
PARA CITAR ESTE TEXTO
LOURO, Carin. “De Como foi a Realização do IPêrformático ou Balbucios sobre Experiências Performáticas em Mato Grosso do Sul”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e a autora
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