1. Re-historiografia de uma figura mal compreendida
Considerada antes como inspiradora da Art Nouveau, ou mesmo do Simbolismo, a contribuição de Loïe Fuller ao Futurismo ainda não foi suficientemente estudada. O caminho tomado pelos historiadores da arte está repleto de clichês vinculados a uma frase de Marinetti, que se tornou o ponto em que a trajetória do pensamento se desvia em direção a uma compreensão parcial, mais focada nos efeitos cênicos do que nos conceitos artísticos: “Nós, os futuristas, preferimos Loïe Fuller e o cakewalk dos negros (utilização da luz elétrica e da mecânica)” [1].
Loïe Fuller. White Dance, Danse Blanche. Fotografia de Isaiah West Taber, São Francisco, 1896. Autógrafo de Loïe Fuller em 1903. 18 x 14 cm. (Coleção Adrien Sina)
Para além dos conhecimentos biográficos e artísticos, uma história conceitual do Futurismo resta a ser feita. Essa história tomaria um rumo bem diferente, privilegiando o detalhe das construções teóricas elaboradas pelos artistas durante o seu processo de trabalho. É por essa razão que me demorarei na fotografia de Isaiah West Taber [2], realizada em São Francisco durante a turnê norte-americana de Loïe Fuller em 1896, tornando-a o ponto de partida de uma pesquisa – ainda mais que essa dança não tem nada de elétrica, e portanto está bem longe de qualquer tecnicidade que poderia ser um critério de interesse para aqueles que preferem a visão mecanicista do Futurismo. Eu gostaria assim de avançar uma hipótese nunca tentada, uma análise comparativa das construções teóricas do espaço elaborado, com vários anos de intervalo, por Loïe Fuller e, em seguida, por Umberto Boccioni.
2. Formas Únicas / formas decompostas da continuidade no espaço
Na década de 1890, Loïe Fuller havia experimentado formas decompostas de movimento sob uma luz estroboscópica produzida por uma lanterna com disco giratório. Essa visão sequencial da dança coincide com os dispositivos de zoopraxiscópio, de Eadweard Muybridge, utilizados em 1878, ou de cronofotografia, de Étienne-Jules Marey, em 1882. Os prolongamentos artísticos desses sequenciamentos do movimento encontram-se, de forma mais ou menos direta, no Fotodinamismo Futurista, de Anton Giulio Bragaglia [3], em 1911, no Nu descendant un escalier de Marcel Duchamp [4], ou no Dynamisme d’un chien en laisse, de Giacomo Balla, em 1912.
Nessa corrida ideológica pela cristalização de novas formas dinâmicas do real levando à abstração, Boccioni posiciona-se de modo radical, em ruptura com todos os outros artistas, e avança em uma teoria bem mais engenhosa: “Para mostrar um corpo em movimento, tenho o cuidado para não dar a sua trajetória, isto é, a sua passagem de um estado de repouso para um outro estado de repouso, mas tento fixar a forma única que expressa a continuidade no espaço” [5].
Esse posicionamento é fundamental, pois mostra como Boccioni, indo além de Duchamp, vai ao mesmo tempo mais longe do que as decomposições do movimento dos outros futuristas, que também representam sucessões de estados de repouso, enquanto o conceito de continuidade de Boccioni a um só tempo incorpora e unifica as “transformações que o objeto sofre em seus deslocamentos em relação ao meio móvel ou imóvel” [6].
Nos escritos teóricos de Boccioni, a palavra “continuidade” é às vezes seguida de “simultaneidade”, entre parênteses. Na sua concepção, há uma interdependência entre essas duas palavras, mas a “forma única de continuidade” é um conceito que tem seus próprios determinantes e não pode ser reduzido à simultaneidade.
Com o orfismo na França, vimos como os cubistas souberam conservar preciosamente o nosso dinamismo, a simultaneidade e, o mais importante (já que falo de estado de espírito), o sujeito. Isso significa que mesmo os franceses, que poderiam ter resistido a uma renovação italiana graças a sua recente e maravilhosa tradição (do impressionismo ao cubismo), perceberam que o conceito de uma pintura pura, ocupando-se somente com relações de planos e volumes, acabaria por se repetir e andar em círculos; eles perceberam que essa pintura teria gerado uma sucessão infinita de trabalhos analíticos glaciais para cada um dos inúmeros efeitos pictóricos ou plásticos lá onde existe um tema, sem nunca alcançar uma síntese universal da sensibilidade moderna. [7]
Se, em abril de 1913, no sétimo número da revista Lacerba, ele toma posição em defesa da paternidade futurista da palavra simultaneidade, que o orfismo se apropria para estabelecer seu campo de definição, especialmente no terceiro número de Montjoie!, de março de 1913, não é tanto para si próprio como para os outros futuristas. Seu conceito de forma única de continuidade é, em termos de inovação e complexidade, muito superior a todas as noções multifacetadas ou simultâneas do cubismo e do orfismo. Só que ele teve de passar mais um ano para estabilizar um corpus teórico impressionante de 470 páginas que conta o seu livro Pittura escultura futurista – Dinamismo plastico, publicado em 1914 pela Edizioni futuriste di Poesia.
O dinamismo é a ação simultânea do movimento característico ao objeto (movimento absoluto) e das transformações que o objeto sofre em seus deslocamentos em relação ao meio móvel ou imóvel (movimento relativo). Portanto não é verdade que a única decomposição das formas de um objeto é o dinamismo. A decomposição e a deformação possuem sem dúvida um valor de movimento por serem capazes de romper a continuidade da linha, quebrando o ritmo das silhuetas, e aumentando os encontros, as indicações, as possibilidades e as direções das formas. Mas ainda não é o Dinamismo plástico futurista, como ainda não são a trajetória, o balanço, o deslocamento de um ponto A ao ponto B.
Nesse sentido, de um ponto de vista conceitual, a distância que separa Boccioni dos outros futuristas como Balla, Severini, Bragaglia e, em certa medida, Russolo, é imensa. No entanto, ao comparar ponto por ponto as preocupações teóricas de Loïe Fuller e de Boccioni, o posicionamento e a noção de espaço de ambos são particularmente próximos.
Que outro futurista seria capaz de captar essas formas de prolongamento do corpo no espaço ou essas forças centrífugas e centrípetas que só uma dançarina como Loïe Fuller poderia experimentar no campo artístico? O automóvel da época se deslocava centenas de vezes mais lentamente do que os véus de Loïe Fuller; somente ela é que poderia trabalhar artisticamente com o material da velocidade, com as geometrias gravitacionais e centrífugas que só existem na matéria propulsionada por altas energias.
Para Loïe Fuller, o véu não tem qualquer relação com a skirt dancing ou com a dança dos sete véus de Mata Hari, uma espécie de striptease divinizado da sedução feminina. Para Loïe Fuller, o véu é um suporte escultural, ele desdobra geometricamente o conjunto de transformações, ondulações e deformações que sofre em seu movimento através do ar, seu espaço ambiente. Esta também é a busca de Boccioni.
Umberto Boccioni, Formas Únicas da Continuidade no Espaço, 1913. Legado de Lillie P. Bliss ao Museu de Arte Moderna, Nova York. Emulsão de gelatina e brometo de prata da época. (Coleção Adrien Sina)
É a própria Loïe Fuller que desenha a geometria dos véus específicos a cada dança, e registra as patentes de cada um deles. Trata-se, por vezes, de uma capa com borda circular, outras vezes de um véu mais complexo, com borda angular, dando, no espaço, as mesmas formas de magma derretido que as extensões musculares, ou que os volumes ambientes postos em movimento característico da escultura de Boccioni em Formas Únicas da Continuidade no Espaço [8], realizado dezessete anos mais tarde.
A concepção do objeto escultural que se torna o resultado plástico do objeto e do ambiente, […] produz o prolongamento de um corpo no raio de luz que o atinge, a penetração de um vazio no cheio que passa diante dele. Obtenho tudo isso juntando blocos atmosféricos a elementos mais concretos de realidade. Deve-se esquecer completamente a figura fechada na sua forma tradicional e, ao invés disso, dar a figura como centro de direções plásticas no espaço. [9]
Mais radical do que o simultaneísmo, o conceito de continuidade dinâmica incorpora ao espaço plástico uma nova dimensão, uma quarta, a carne fenomenológica do movimento:
Portanto, o velho conceito de nítida divisão dos corpos e o mais moderno conceito impressionista de subdivisão, repetição e esboço das imagens, substituímos pelo conceito de continuidade dinâmica como forma única. Não digo “forma” por mero acaso ao invés de “linha”, pois a forma dinâmica é uma espécie de quarta dimensão na pintura e na escultura, que não pode viver perfeitamente sem a plena afirmação das três dimensões que determinam o volume: altura, largura e profundidade. [10]
Loïe Fuller também realizou essa experiência de incorporar ao movimento os efeitos de força e de impulsão do espaço ambiente. Além disso, ela tem uma concepção ampla dessas forças, que podem ir do vento, do ar, passando pela matéria até às sensações…
O que é a dança? Movimento.
O que é o movimento? A expressão de uma sensação.
O que é uma sensação? O resultado produzido no corpo humano de uma impressão ou ideia percebida pela mente.
A sensação é a repercussão que o corpo recebe quando uma impressão atinge a mente. Quando a árvore se mexe ou se balança, é porque ela recebeu uma impressão do vento ou da tempestade. Quando um animal está assustado, o seu corpo recebe a impressão de medo. Ou ele foge e treme, ou ele permanece pelos cantos. Se ferido, ele cai. É assim que o material sofre a força da causa imaterial. O homem, civilizado e complexo, é o único capaz de resistir aos impulsos. [11]
3. Espirais ascendentes e descendentes
Movimentos, corpos e linhas de força, massas de ar agitadas pelos deslocamentos, trajetórias e simultaneidades: esses parâmetros de uma nova dinâmica geométrica instável e flutuante unificam-se na clareza da figura espirálica, tanto em Loïe Fuller como em Boccioni.
Minha construção arquitetônica espirálica cria, diante do espectador, uma continuidade de formas que lhe permite seguir idealmente (através da forma-força surgida da forma real) um novo contorno abstrato que expressa o corpo em seus movimentos materiais.
A forma-força é, em razão da sua direção centrífuga, o potencial da forma real viva. É de uma maneira mais abstrata que percebemos a forma na minha escultura. O espectador deve construir idealmente uma continuidade (simultaneidade) que lhe é sugerida pelas formas-forças equivalentes à energia expansiva dos corpos. [12]
Queremos moldar a atmosfera, desenhar as forças dos objetos, suas influências recíprocas, a forma única da continuidade no espaço. Essa materialização do fluido do etéreo, do imponderável. [13]
Cheguei finalmente à conclusão de que cada movimento do corpo provoca, na dobra do tecido, nas cores dos panos, um resultado matemático e sistematicamente previsto.
O comprimento e a largura da minha saia de seda obrigavam-me a repetir várias vezes um mesmo movimento de modo a conseguir dar a esse movimento sua forma especial e definitiva. Obtinha um efeito em espiral mantendo os braços esticados para cima enquanto eu girava para a direita e para a esquerda, e recomeçava o movimento até que a forma da espiral se fixasse. A cabeça, as mãos e os pés acompanhavam as evoluções do corpo e do vestido. [14]
NOTAS
[1] F. T. Marinetti. Manifesto da Dança Futurista, 1917. (Coleção Adrien Sina)
[2] Loïe Fuller. White Dance, Danse Blanche. Fotografia de Isaiah West Taber, São Francisco, 1896. Autógrafo de Loïe Fuller em 1903. 18 x 14 cm. (Coleção Adrien Sina)
[3] Anton Giulio Bragaglia. La Fotografia del Movimento. La Fotodinamica Futurista. Oito páginas, revista Noi e il Mondo, 01 de abril de 1913. (Coleção Adrien Sina)
[4] Marcel Duchamp. Nu descendant un escalier, N. 2, 1912, óleo sobre tela.
[5] Umberto Boccioni, Catálogo da 1a Exposição de Escultura Futurista do Pintor e Escultor Futurista Boccioni, 20 de junho a 16 de julho de 1913, Galeria La Boëtie, Paris. (Coleção Adrien Sina)
[6] Umberto Boccioni. Manifesto Técnico da Escultura Futurista. Direção do movimento futurista, Milão, 11 de abril de 1912. (Coleção Adrien Sina)
[7] Umberto Boccioni. Pittura Scultura Futuriste (Dinamismo plastico). Com cinquenta e uma reproduções de quadro – escultura de Boccioni – Carrà – Russolo – Balla – Severini – Soffici. Edição Futurista de Poesia, 1914. (Coleção Adrien Sina)
[8] Umberto Boccioni. Formas Únicas da Continuidade no Espaço – Forme uniche della continuità nello spazio, 1913-1972, bronze.
[9] Umberto Boccioni, Catálogo da 1a Exposição de Escultura Futurista do Pintor e Escultor Futurista Boccioni, op. cit.
[10] Umberto Boccioni. Pittura Scultura Futuriste, op. cit.
[11] Loïe Fuller. Quinze Anos de Minha Vida. Prefácio de Anatole France. Traduzido pelo príncipe Bojidar Karageorgevitch. 288 páginas, capa: retrato de Loïe Fuller. In-16. Paris, Librairie Félix Juven, 1908. (Coleção Adrien Sina)
[12] Umberto Boccioni, Catálogo da 1a Exposição de Escultura Futurista do Pintor e Escultor Futurista Boccioni, op. cit..
[13] Umberto Boccioni. Manifesto Técnico da Escultura Futurista, 1912. (Coleção Adrien Sina)
[14] Loïe Fuller, Quinze Anos de Minha Vida, op. cit.
O texto Loïe Fuller – Umberto Boccioni: Formas Únicas da Continuidade no Espaço, escrito pelo colecionador e curador Adrian Sina e traduzido para língua portuguesa por Fernando L. Costa, foi originalmente publicado em língua francesa no catálogo da exposição Feminine Futures pela editora Les presses du réel. Adrian Sina é responsável pela curadoria da exposição e editor da publicação realizada em 2011.
PARA CITAR ESTE TEXTO
SINA, Adrien. “Loïe Fuller – Umberto Boccioni: Formas Únicas da Continuidade no Espaço”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução francês para o português de Fernando L. Costa
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
Texto completo: PDF