Bernard-Marie Koltès representado na ilustração da artista Veridiana Scarpelli para a décima edição da eRevista Performatus
Jornal Le Monde, 17 de fevereiro de 1983 [1]
Nas paredes do apartamento de Bernard-Marie Koltès estão pendurados retratos de Jack London, Bob Marley, Bruce Lee, Robert de Niro, Burning Spear. Ele escuta reggae. O telefone toca: ele fala em espanhol. Na mesa de trabalho, há uma pequena foto colorida emoldurada: um hangar construído sobre pilotis, no antigo porto de Nova York, lugar da sua próxima peça, assim como o canteiro de obras francês perdido na África foi o ponto de partida para Combate de negros e de cães.
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HERVÉ GUIBERT: Você escreveu sua peça em 1979-1980, ela é encenada agora em 1983; de que maneira o tempo pode ter passado por ela, ou pode tê-la marcado?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Em geral, com La Nuit juste avant les fôrets [A Noite antes das florestas], por exemplo, se não me esforço, ao cabo de um ano, esqueço o que escrevi. Embora procure manter um interesse constante por essa peça, eu me desliguei dela, releio-a como se fosse uma peça estrangeira. Mas vê-la encenada renova o meu interesse: revejo coisas que já tinha esquecido, um pouco arquivadas. Se estou distante em relação à peça, não estou em relação ao espetáculo, e é isso que me permite ir aos ensaios sem sofrer, poder relembrar sem dificuldade as minhas primeiras impressões e assim transmiti-las aos atores.
Descobrir os próprios defeitos também me ajuda bastante na peça que estou escrevendo. [2] Eu queria que os dois personagens masculinos, Horn e Cal, conversassem, e, após ter escrito o que eles iriam dizer, tive de procurar o que é que os havia reunido, e os coloquei diante de um tabuleiro de jogo. Esse tipo de coisa só funciona se vêm realmente do diálogo e da sua razão de ser, e não de uma maneira exterior. Se tivesse de recompor a atuação dos personagens, seria preciso que, por meio do jogo, algo acontecesse. É preciso encontrar as ações numa relação mais dialética com a linguagem.
O negro que vai buscar o corpo do irmão só me veio quase no fim do trabalho. Queria que o negro entrasse no local, eu estava muito interessado pela noção de teimosia, e de uma linguagem clara, de uma maneira direta de ver as coisas. No final, de todas as evidências sobrou apenas uma: era preciso que o negro viesse reclamar algo. E esse motivo, saído da peça, lhe deu um impulso novo, já não era mais só um efeito.
HERVÉ GUIBERT: Mas a mudança de governo [3], por exemplo, que sobreveio entre o momento em que a peça foi escrita e o momento em que foi encenada, não acabou por atenuar um pouco da sua violência?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Acho que não. O fato de ser um canteiro estrangeiro de obras públicas, na Nigéria, não muda em nada as relações de violência entre as empresas dos países ocidentais e a África. O contexto não é de governo a governo. E fico contente que o lugar original da peça não seja um país fraco, nem colonizado. A Nigéria é um país forte, avançado, mas completamente invadido por empresas norte-americanas e francesas. O neocolonialismo não é o tema da peça: pode-se, é claro, aprofundar todas as direções, ainda que não sejam diretamente abordadas.
HERVÉ GUIBERT: Por sinal, nessa peça a luta de classe não é levada ao que poderíamos chamar de uma luta de raça?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Posso dizer sim, como posso dizer não. Podemos dizer que existe uma luta de classe entre Cal e Horn. Mas não acho que o conflito esteja aí, nem neste caso nem no outro, embora eles interfiram na trama. O maior conflito se ergue nestes muros altíssimos, nestes obstáculos muito complexos que existem em cada indivíduo. Quando vamos à Nigéria, nos vemos em face dos negros, nos olhamos, nos encontramos, dá para sentir um fosso imenso. E procuramos a origem disso: é porque não falamos a língua deles? É porque somos brancos? Não seria por causa de algo muito maior e mais complicado? O fosso é o mesmo entre os dois brancos e entre um branco e um negro. Me deixou desorientado o fato de ter escrito a peça na América Latina [4], num momento de grande efervescência política. [5] Antigamente, quando pensava na África estando em Paris, eu acreditava ter ideias claras sobre a luta de classe; pensava que bastava ter boa vontade para falar disso. Mas, quando se está na Guatemala em plena guerra civil, ou na Nicarágua durante um golpe militar, estamos diante de uma confusão tamanha, de uma tal complicação das coisas, que se torna impossível escrever a peça sob o ângulo político. Tudo se torna mais irracional. Ao descobrir a violência política de dentro, eu não podia mais falar em termos políticos, mas em termos afetivos, e, ao mesmo tempo, esse estado de coisas me revoltava.
HERVÉ GUIBERT: Na sua peça são os brancos que têm um odor, e a poesia está no campo dos negros…
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Devo ter sofrido um fenômeno de osmose de tanto frequentar e escutar os negros. É mais do que um modo de pensar: é um modo de falar. Acho belíssima a língua quando ela é manejada pelos estrangeiros. Isso leva a uma mudança completa da mentalidade e do raciocínio. Começamos a sentir os cheiros das pessoas quando estamos com estrangeiros, quando falamos uma língua que não é a nossa.
HERVÉ GUIBERT: A personagem feminina, Léone, sai “enegrecida” da peça, como, no sentido oposto, se diz usualmente “tornar-se mais branco”, “purificar-se”. Através de uma automutilação, ela perjura sua própria raça…
BERNARD-MARIE KOLTÈS: No início, esse não era o tema da peça, mas no final acabou se tornando o motor. Léone vê no negro uma maneira de carregar sua condenação. Cada vez mais, de modo ao mesmo tempo vago e decisivo, eu divido as pessoas em duas categorias: aquelas que são condenadas e aquelas que não são. Do ponto de vista de Léone, os negros são pessoas que carregam, no sentido literal, uma condenação no rosto, mas que não lhes pertence: é mais uma maldição global à qual estão assimilados. Léone sente a sua de um modo muito mais secreto e individual, ela não pode se apoiar na ideia de ser o pedaço de uma alma, como dizem os negros. Com sua condenação, ela se vê sozinha, e incapaz de exprimir seu sentido ou sua natureza: essa condenação está delineada por detrás dela de maneira imemorial e aparentemente precisa. A condenação dos negros lhe parece mais invejável, ela quer trocar, ela sente ciúmes, ela acha seu fardo mais pesado e idiota, sobretudo idiota.
HERVÉ GUIBERT: A linguagem dos seus personagens é constantemente “dupla”: para os brancos, por meio do fundo falso das segundas intenções e do poder, que perfuram a superfície, e, para os negros, por meio da poesia ancestral…
BERNARD-MARIE KOLTÈS: O negro Alboury é o único que utiliza as palavras com o seu valor semântico: porque ele fala uma língua estrangeira, para ele, isto é isto, aquilo é aquilo. Os outros utilizam a língua como qualquer homem francês utiliza sua língua materna, como um veículo convencional que arrasta coisas que não são convencionais. E essas coisas podem se encontrar ora bem próximas da superfície, ora no subsolo. Não vejo como falar de outra forma no teatro. Na primeira cena, por exemplo, se Horn empregasse a mesma linguagem que Alboury, que lhe diz: “Venho buscar o corpo do meu irmão”, ele teria respondido: “Ele está boiando no esgoto”, o que só faz na cena dezoito, e desse modo a peça teria terminado.
HERVÉ GUIBERT: Patrice Chéreau diz que o texto é difícil de ser interpretado pelos atores, porque é um texto obsessivo, e que é preciso enfrentá-lo, que não se deve se deixar guiar por indicações realistas…
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Tenho a impressão de escrever em linguagens concretas, não realistas, mas concretas. E tenho a impressão de economizar o máximo que posso: passo um tempo enorme a cortar o texto, tento deixar somente as frases úteis. Escrevo como escuto as pessoas falarem, a maior parte do tempo, e não sei lá muito bem como isso é fabricado, não sou um teórico.
HERVÉ GUIBERT: Como anda a sua nova peça?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Quanto mais avanço, mais a peça vai se formando de conflitos minúsculos, que se sucedem, em que sei que há uma unidade, mas ainda não sei qual é. Por vezes são lutas: um personagem luta contra os elementos, contra o rio. As histórias se correspondem um pouco, mas ainda não encontraram a sua razão de ser, um fio condutor. Sempre esbarramos com o problema das motivações externas, da segunda réplica das cenas, que diz o porquê dos personagens estarem lá. Não tenho a segunda réplica, e não confio em soluções policiais. Eu aguardo. Aguardo que uma evidência ligue as coisas entre si. O mesmo ocorre na vida, quando queremos saber, por exemplo, o que pode ligar o fato de que alguma coisa aconteça na rua e de que uma segunda coisa lhe suceda, que a amarre a uma terceira. Na vida, as coisas estão aí, mas, no teatro, isso deve ser discutido. Não podemos mandar alguém a algum lugar sem motivo e sem finalidade, e não podemos deixar que o tempo escorra. Pegamos os exemplos na vida, onde o tempo escorre e as pessoas caminham sem razão. Em seguida, é preciso inventar uma história.
HERVÉ GUIBERT: Como são criados os diálogos?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: Nas minhas primeiras peças não havia nenhum diálogo, apenas monólogos. Em seguida, escrevi monólogos que se dividiam. Um diálogo nunca vem naturalmente. Vejo facilmente dois personagens cara a cara, um expõe seu caso e o outro continua. O texto da segunda pessoa não poderá surgir sem um primeiro impulso. Para mim, um verdadeiro diálogo é sempre uma argumentação, como faziam os filósofos, só que deformada. Cada um se desvia do assunto, e assim o texto flui. Quando uma situação exige um diálogo, é porque há a confrontação de dois monólogos que desejam coabitar.
HERVÉ GUIBERT: Por que escrever peças teatrais ao invés de romances?
BERNARD-MARIE KOLTÈS: O romance me atrai bastante, mas ainda sinto um certo medo da liberdade formal que ele dá. O que permite escrever, apesar de tudo, é a acumulação de restrições, se colocar na mesa de trabalho até que algo apareça e permita ver como iremos nos mover. No teatro, pesamos nossas palavras. Se escrevesse um romance, eu pesaria da mesma forma as minhas palavras e levaria dez anos para escrevê-lo.
NOTAS
[1] Esta entrevista foi revista por Bernard-Marie Koltès.
[2] O autor refere-se ao texto Quai Ouest.
[3] A eleição de François Mitterrand em maio de 1981.
[4] Em Guatemala, verão de 1979.
[5] A estadia na Guatemala ocorre imediatamente após a chegada dos Sandinista em Manágua (Nicarágua), onde Bernard-Marie Koltès teve tempo de passar alguns dias numa atmosfera de revolução.
PARA CITAR ESTA ENTREVISTA
GUIBERT, Hervé. “‘Como carregar sua condenação’: Uma entrevista com Bernard-Marie Koltès”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução de Fernando L. Costa
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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