“Vulva’s Morphia” [A Morfina da Vulva], 1992-1997

 

Durante muitos anos, pesquisei representações do poder da sexualidade genital encontradas em culturas nominalmente excluídas da istória [1] da arte ocidental. Em meados da década de 1990, desenvolvi um ensaio sobre sexualidade feminina para o boletim Lusitânia. Eu tinha acumulado resmas e resmas de anotações: mutilação genital feminina, o papa reclamando do feminismo e da bruxaria, deformações lacanianas da sexualidade feminina, castigos a adolescentes grávidas em escolas de ensino médio, pesquisas atuais distorcidas a respeito de orgasmo feminino. Fazia semanas que eu batalhava para compor e editar o material. Uma noite tive um sonho com uma voz instrutora que afirmou: “Você nunca vai ser uma artista de volta ao estúdio, trabalhando com as mãos, enquanto estiver com esta enorme pilha bagunçada de anotações espalhada pelo chão. POR QUE NÃO DEIXA A VULVA FALAR?”

 

Vulva’s School [A Escola da Vulva], 1993-1996

 

Carolee Schneemann, Vulva’s Morphia, 1997. Palestra performática, “Boudoir-in-exile”. New Museum of Contemporary Art, Nova York, Estados Unidos. Fotografia de Barbara Yoshida. Cortesia de Carolee Schneemann

 

Carolee Schneemann, Vulva’s Morphia, 1992. Grade de fotos suspensa: 35 impressões a laser coloridas sobre papel pintadas a mão, montada em tábua, cada uma 28 x 21,5 cm, tiras de texto, 147 x 5 cm. Quatro ventiladores elétricos pequenos instalados nos cantos. Instalação de parede total 152 x 244 cm. Cortesia de Carolee Schneemann

 

Vulva vai à escola e descobre que não existe…

Vulva vai à igreja e descobre que é obscena… (citação de Santo Agostinho)

Vulva decifra Lacan e Baudrillard e descobre que não passa de um signo, uma significação do vazio, da ausência, daquilo que não é masculino… (dão a ela uma caneta, para que possa fazer anotações…)

Vulva lê biologia e compreende que é um amálgama de proteínas e hormônios oxicitocina que governam todos os seus desejos…

Vulva estuda Freud e percebe que vai precisar transferir seu orgasmo clitoridiano para a vagina…

Vulva lê Masters e Johnson e compreende que seus orgasmos vaginais não foram medidos por qualquer instrumentalidade e que ela só deveria experimentar orgasmos clitoridianos…

Vulva decodifica a semiótica construtivista feminista e percebe que não tem nenhum sentimento autêntico; até suas sensações eróticas são construídas por projeções patriarcais, imposições e condicionamento…

Vulva lê Off Our Backs e examina o tribalismo; então ela anseia pelo arranhar da barba por fazer de dois dias do outro gênero sexual, as mãos grandes e o pau insistente dele…

Vulva interpreta textos feministas essencialistas e pinta o rosto com seu sangue menstrual, uivando quando a lua está cheia…

Vulva fica pelada, enche a boca e a boceta com pincéis de pintura e entra no Cedar Bar à meia-noite para assustar o fantasma de De Kooning, Pollock, Kline…

Vulva lê Gramsci e Marx para examinar os privilégios de suas condições culturais…

Vulva reconhece seus símbolos e nomes em pichações embaixo de viadutos de ferrovia: racha, preciosa, pastel de pelo, perereca, felpuda, periquita, boca de baixo…

Vulva aprende analisar política perguntando: “Será que isto é bom para Vulva?”

 

Vulva’s Bestiary [Bestiário da Vulva]

 

Cada amante foi uma manifestação psíquica de geografias secretas, de geomancias anuviadas no tempo. Cada pênis, um barco em que Vulva entrou. A pequena silhueta nas marés de seu barco oscila na direção da linha do horizonte (perspectiva que vai diminuindo) ter um pênis é ser castrado do corpo da mãe estar separado de seus poderes de replicação oval e recipiente ovoide canal que empurra e pulsa paciência do óvulo para ser expulso paciência da abertura para tragar os espermatozoides agitados ser homem é ser deixado de fora das duplicações da fonte feminina para se aventurar a ousar a avançar no corpo como uma enfiada fálica fálico define um órgão exposto vulnerável forte e outro não feminino não gerador sustentável não a matriz complexa – fertilização gravidez parto – de seus orgasmos variados

 

As guerras na Bósnia e em Ruanda lembraram ao mundo de como as mulheres e sua família são vulneráveis e “demonstraram que o desrespeito deliberado aos direitos humanos das mulheres é um componente central da estratégia militar em todas as partes do mundo”, diz o relatório.

— Edith M. Ledere, “Amnesty International Sees Denial of Women’s Human Rights” [Anistia Internacional vê Direitos Humanos das Mulheres Negados], Philadelphia Inquirer, 7 de março de 1995

 

…ser homem é ser moldado por Vulva em desejo que tem medo da separação e de volta Vulva recebe com êxtase o corpo dele e o corpo de conhecimento dele: descrições obsessões anatomizações fantasias e projeções o quão estupefata? o quão consensual? descrente? ou fisicamente emaranhada no abraço das confusões dele? … desejo inconsciente de heroicizar … dilacerada…

 

Mulheres não têm permissão para trabalhar nem para sair em público sem um parente homem; mulheres profissionais como professoras, tradutoras, médicas, advogadas, artistas e escritoras foram forçadas a abandonar o emprego e enfiadas em casa.

— “Women in Afghanistan” [As Mulheres no Afeganistão], Email Extract, 8 de outubro de 1999

 

Seu mono-órgão heroico afirma filiação à irmandade de todos os outros pênis que fogem de sua fonte maternal. Competições, confrontos por primazia valorizam forças além da dobra dela / do corpo dela / da adoração a ela; da negação dela / da denigração dela / da força dela… cada homem reconhece outros homens como “de mulher” e “não mulher”…

 

Ele disse a ela: “Desde que a minha filha nasceu, sou completamente contra o aborto… a não ser no caso de estupro”. Vulva contestou: “Mas e a minha situação? Se eu tivesse que levar a cabo aquelas gravidezes, nunca teria completado o meu trabalho”. Ele exclamou: “MAS VOCÊ PODIA TER TIDO UMA ARTISTA!

 

Se as tradições do patriarcado dividem o feminino em degradado / glamorizado, limpo / ensanguentado, madona / vagabunda… corpo fraturado, como Vulva poderia entrar no domínio masculino a não ser com superdeterminação ou “neutralizada” ou neutra – como “castrada”?

 

Durante os julgamentos depravados de bruxaria entre os séculos doze e dezessete, mulheres acusadas de bruxaria eram examinadas em suas “partes privadas” em busca de qualquer protuberância ou “teta”; sua descoberta era a prova de que ela alimentava um familiar desta excrescência, e era, portanto, condenada ao enforcamento.

— Lauran Paine, Sex in Witchcraft [O Sexo na Bruxaria] (Nova York, Taplinger, 1972)

 

Se o corpo dela foi rasgado de suas percepções, de seu desejo criativo, de seu centro gerador erótico, como poderia Vulva analisar as deformações pseudoculturais que a rodeiam?

 

A palavra que a Bíblia, com desgosto evidente, traduz como “bosque”, na verdade não era bosque coisa nenhuma, mas uma Asherah: a árvore estilizada de vários galhos que simboliza a Grande Deusa de Canaã. Entre os títulos cananeus de Asherah estão “A Dama que Atravessa o Mar” e “Aquela que Dá à Luz os Deuses”.

— Barbara Walker, The Woman’s Dictionary of Symbols and Sacred Objects [O Dicionário da Mulher de Símbolos e Objetos Sagrados] (Nova York: Harper Collins, 1988)

 

A projeção deforma a percepção do corpo feminino. Tão bizarro quanto foi consagrado em mitos de criação ocidental como o de Atena que surge da cabeça de Zeus; tão usurpador do Direito Materno quanto o nascimento de Dionísio da coxa do pai; tão distorcido do ponto de vista biológico quanto o Senhor Jesus nascer do corpo de uma mãe virgem. A violência política e pessoal contra a mulher está entremeada por trás / no âmbito dessa desfeminilização surpreendente da história. Para muitos de nós, as camadas de censura implícitas e explícitas que constroem a nossa história social se combinam com contradições contemporâneas para forçar a nossa radicalização.

 

Cidade do Vaticano – O papa João Paulo acautelou os bispos norte-americanos ontem, dizendo que o cristianismo corre o risco de ser minado por feministas radicais – incluindo freiras – que levaram alguns católicos à adoração da natureza e a rituais pagãos. Ele acautelou especificamente contra algumas freiras católicas que realizam esses rituais, que costumam homenagear a deusa terra.

New York Post, 1993

 

Invocação eflorescência olho atento mão da boceta caverna central comando central posto de comando as roçadas são penas e crina de cavalo seus afagos fluem por cima da pedra – pássaros, genitália, bisão, cavalo cinza pederneira, pigmentos crus – ocre, siena, azul – e sangue menstrual ela inscreve seus ciclos e estações em pedras, ossos, pressionando a palma da mão e o pé na argila.

 

Em uma execução do século dezessete, catorze gatos foram fechados em uma jaula com uma mulher que foi assada em fogo baixo enquanto os gatos, miseráveis e apavorados, arranhavam-na em suas próprias agonias de morte.

— Carl Van Vechten, The Tiger in the House [O Tigre em Casa] (Nova York, Knopf, 1936)

 

Vulva encontra a receita que está procurando — uma prescrição medieval para acalmar o desejo incontrolável da boceta de transar.

 

No século dezessete, entrou em voga conectar o útero acometido com “amor” insatisfeito. Enemas eram um tratamento específico nesses casos. Quando usados para purgar, eles nulificavam humores corruptos e irrigavam o interior do corpo. Aplicados pela vagina para esfriar e umedecer o útero quente, os enemas continham ervas “de refrigeração” como endívia, banana-da-terra ou papoula. Fica claro, então, que o aparato do enema estava associado ao sistema de geração feminino desde o início dos tempos, e isso é responsável pelo elemento de erotismo inconfundível que acompanha as associações excrementícias dos enemas em cenas com o procedimento.

— Laurinda S. Dixon, “Some Penetrating Insights” [Algumas Reflexões sobre Penetração], College Art Journal (Outono de 1993)

 

De acordo com uma acadêmica que escreveu sobre a questão em um texto dedicado à escatologia, a confluência do canal vaginal com o canal anal é atordoante. Um enema força líquido ou gás para dentro do reto ou cólon. Uma ducha usa líquido para enxaguar a vagina.

 

Houston, Texas – Petição de Reintegração: De acordo com as novas diretrizes, qualquer uma das três meninas grávidas – que não animaram nem lideraram a torcida em quase um mês e meio – terá permissão para entrar com petição de reintegração ao grupo de animadoras de torcida. Junto com a petição, devem incluir um atestado médico de sua capacidade física para a participação.

— New York Times, 3 de novembro de 1993

 

Se o pênis é um objeto ansioso, a vagina se transforma em espaço suprimido de suas projeções hostis ou invejosas. Essas projeções são defensivas de modo que a genitália feminina é desprovida de mobilidade, força muscular, lubrificação, força e pulsação. O clitóris é desprovido de delicadeza, sensibilidade superficial, sutileza – a variação de suas reações, prazer e drama orgástico é desviada, negada.

 

Estima-se que 100 milhões de meninas e mulheres pelo mundo passaram por mutilação genital feminina (MGF). A MGF assume formas diferentes em países diferentes: corte da cobertura do clitóris (circuncisão), remoção do clitóris todo (excisão) ou, em sua forma mais extrema, remoção de toda a genitália externa e a costura dos dois lados da vulva, deixando apenas uma abertura vaginal muito pequena (infibulação).

Women’s Action Newletter [Boletim da Ação Feminina], Novembro de 1993)

 

A variação transformativa da genitália feminina perturba a intenção mecanicista e as homologias racionalizadas. Vulva relaciona isso a uma tradição artístico-histórica ocidental de perspectiva diminuída, as extensões de profundidade de campo até o ponto em que desaparece – o “Círculo da Confusão” – Será este alcance pictórico referente ao estado suprimido da abertura? Entrada do útero?

 

Porque aquilo que está dentro de você é o que lhe é externo, e aquele que formou o lado externo é aquele que delineou o seu lado interno.

— Nag Hamadi, Thunder, Perfect Mind [Trovão, Mente Perfeita]

 

Vulva reflete sobre o “espaço negativo”: se pau é uma coisa e boceta, um lugar. Como pintora, Vulva nunca aceitou o conceito de “espaço negativo” como algo além de uma construção por meio da qual enfatizar “coisas” em primeiro-plano (…) como se o espaço começasse e parasse de acordo com conceito ou vontade, em vez de tatilidade, luz, caos, uma gestalt sempre em modificação. A convolução estética perceptiva do “espaço negativo” corresponde a ilusões sexuais masculinas: o conceito de vagina como “vazio”, como “buraco”. (Vagina: músculo estriado ativo firme e apertado, um canal úmido de qualidades paradoxais – sutis e não homólogas à medida fálica: clitóris não é pênis em miniatura, e vagina não é buraco para pau.) A diferença entre COISA e LUGAR. O conceito de espaço “negativo” era contraditório para Vulva a pintora, assim como a ideia de vagina como “buraco” ou uma “ausência” era para ela enquanto mulher.

 

Cunt (boceta): Derivativo da Grande Deusa Oriental como Cunti, ou Kunda, a Yoni do Universo. Da mesma raiz veio país kreinkunt, kin (parente) e kind (bondoso; do inglês antigo cyn, do gótico kuni). Formas relacionadas eram o latim cunnos, o inglês medieval cunte, o nórdico antigo e frísio kunta, o basco cuna. Outros cognatos são “cunabula”, um berço que balança, ou a primeira morada (maja, asuinpaikle); “Cunina”, uma deusa romana que protegia as crianças no berço; “cunctipotent”, karklerviopa toda-poderosa (quer dizer, possuidora da magia da boceta): “cunicle”, um buraco ou passagem.

— Barbara Walker, The Woman’s Encyclopedia of Symbols and Secrets [A Enciclopédia da Mulher de Símbolos e Segredos] (Nova York: Harper and Row, 1983)

 

Choque quando críticos veem as primeiras colagens de vidro e pele: um comentário comum: “Estas são perigosas, castradoras”. Mas essas obras exploram reflexão, refração, transposição, espelhamento – você verá a si mesma nos estilhaços e também no espaço a seu redor.

 

O doutor Burt, que já foi um médico bem conceituado, considerado meramente excêntrico, deu início à cirurgia especial em 1966. Ao explicar sua filosofia em seu livro de 1975, Surgery of Love [Cirurgia do Amor], o doutor Burt escreveu: “As mulheres são estruturalmente inadequadas para o ato sexual. Esta é uma condição patológica, sujeita a cirurgia”. A cirurgia costumava incluir a remoção da cobertura do clitóris da paciente, o reposicionamento da vagina, o deslocamento da uretra e a alteração das paredes entre o reto e a vagina. A intenção era, o médico escreveu, redesenhar a vagina para aumentar a resposta sexual. Em vez disso, a cirurgia causava disfunção sexual, cicatrizes extensas, infecções crônicas do rim, da bexiga e da vagina, e a necessidade de cirurgia corretiva em muitas pacientes, de acordo com o conselho de medicina do Ohio.

— New York Times, 11 de dezembro de 1988

 

Um desejo feminino puro não despertado, não descoberto e possuído por sua particularidade sexual se torna ameaçador e repelente.

 

A tortura de animais, especialmente gatos, era uma diversão comum por toda a Europa no início da era moderna. Para se proteger da bruxaria dos gatos, existia um remédio clássico: aleijá-lo. Cortar o rabo, aparar as orelhas, esmagar uma das pernas, cortar ou queimar o pelo, e assim você quebraria seu poder malevolente.

— Robert Darton, The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History [O Grande Massacre de Gatos e outros Episódios na História Cultural Francesa] (Nova York: Basic Books, 1984)

 

Tem a ver com a ausência de conceito de espaço vúlvico, a fratura simbólica do corpo feminino. Eu parti do princípio de que entalhes e esculturas arcaicas de formas de serpente eram atributos da deusa criada por mulheres artistas, adoradoras e análogas ao nosso próprio conhecimento físico e sexual.

 

De acordo com um estudo recente da Organização Mundial da Saúde, sabe-se que 58 mulheres morrem por dia neste continente devido às consequências de tentativa de colocar fim à gravidez com o uso de “curas” caseiras ou clínicas clandestinas não seguras. Muitos especialistas em saúde pública, no entanto, dizem que esse número provavelmente representa a ponta infinitesimal do iceberg.

 

Você sabia que alguns Pergaminhos do Mar Morto foram contrabandeados do Iraque na vagina de uma secretária, no avião que levava pergaminhos de Vulva da caverna a salvo na cabine do avião (Fúria: Vulva alada abraçando serpente)?

 

Você rasteja igual a um passarinho e se arrasta agora igual a um inseto.

— Canção africana cantada depois da clitorectomia de meninas pequenas

 

 

NOTA

[1] Carolee Schneemann usa istory (istória) para evitar o pronome possessivo masculino his incorporado na palavra history (história).

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

SCHNEEMANN, Carolee. “‘Vulva’s Morphia’ [A Morfina da Vulva], 1992-1997”. Trad. de Ana Ban. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do inglês para o português de Ana Ban

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Hilda de Paulo

© 2014 eRevista Performatus e a autora

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