Indizível Instante: Presença e Memória de Farnese de Andrade

 

Espetáculo Farnese de Saudade, de Celina Sodré. Fotografia de Rodrigo Castro

 

O passado não é senão um sonho 

Fernando Pessoa [1]

 

Muito já se disse sobre a imaginação, mas ainda assim tão pouco foi definido sobre esta “coisa” que nos trespassa a existência e que nem sequer sabemos ao certo como defini-la. Há certo tempo, escreveu o poeta Manoel de Barros: a imaginação transvê [2]. Talvez seu pouco dizer seja o que lhe permite abarcar o imensurável. O mesmo poeta escreveu ainda que a memória revê. Curiosa junção entre o lembrar e o imaginar, conceitos que a filosofia vem, ao longo dos séculos, relutantemente, colocando ora próximos ora distantes. [3] Optemos então pela proximidade entre imaginar e lembrar como uma premissa, ou seja, como um ponto de partida, e, ao mesmo tempo, um ponto de chegada.

Contudo, antes de adensarmos nossa reflexão sobre a imbricação entre a memória e a imaginação, retornemos um pouco ao princípio. A distinção mais simples que podemos propor entre as artes cênicas e as artes plásticas reside no fato de a primeira concretizar seus atos criativos em uma ação ‒ ou em um conjunto delas, para sermos mais exatos ‒, enquanto a segunda se refere a ações que se concretizam em um objeto, e, a partir do qual, o observador quase nunca é capaz de refazer o percurso das ações que levaram a concretização daquele objeto. Então, nos deparamos com um espetáculo que se propõe tratar das artes plásticas: o espetáculo Farnese de Saudade, com Vandré Silveira e direção de Celina Sodré. E, para pensar o que ali se realiza, temos que apontar outras possibilidades menos estritas e mais aptas a partilhar outras aberturas no visível.

Farnese de Saudade propõe um encontro com o artista brasileiro Farnese de Andrade (1926-1996). O espetáculo é um monólogo biográfico em primeira pessoa, sem que isso signifique uma narrativa da vida do artista de um ponto de vista linear e meramente événementielle. O desafio, no qual o espetáculo se lança, é abordar a vida e a obra artística sobre a óptica da memória e, tanto a primeira quanto a segunda, não se deixam aprisionar na linearidade. A vida se instala como existência, logo, fragmentada, esquecida, refeita, inventada e vivida. A obra de arte se impõe como ser autônomo e incompleto, portanto, aberta ao olhar e à completude de infinitas reflexões. Evidentemente, a vida e a obra se entrelaçam, não as podemos separar clara e distintamente.

 

Espetáculo Farnese de Saudade, de Celina Sodré. Fotografia de Rodrigo Castro

 

O espetáculo, fruto de uma pesquisa de cinco anos, revela uma grande imersão no trabalho artístico de Farnese de Andrade, bem como nos registros de sua trajetória e, em nenhum momento, o espectador se confronta exclusivamente com a sua vida ou a sua obra. Para a composição da dramaturgia, Vandré Silveira baseou-se em entrevistas, depoimentos e manuscritos do artista, e o cenário-instalação concebido, também por Silveira, liga-se diretamente ao universo imagético de Farnese de Andrade, possuindo ainda, como referência estética, uma obra de Louise de Bourgeois, Passage Dangereux. A articulação entre esses dois artistas parece bastante natural, visto que, na obra de ambos, o universo do inconsciente e da memória é a matéria da criação artística.

O cenário-instalação consiste em uma caixa de ferro gradeada em forma de cruz. O que se vê é um misto de gaiola e casa. A gaiola onde se aprisiona o ator Vandré Silveira; a casa de Farnese de Andrade, composta de porta e janela, com seus objetos e sua arte, com uma lembrança de mar na faixa de areia que a envolve, e as memórias aprisionadas do artista. O cenário-instalação foi indicado ao 25º Prêmio Shell (2012) na categoria de cenário e, também, indicado ao 2º Prêmio Questão de Crítica (2012) na mesma categoria [4]. O conceito duplo (cenário e instalação) se justifica, pois a caixa é o espaço cênico do espetáculo ‒ que compõe os aspectos visuais necessários à complementação da representação teatral ‒, é também um objeto das artes plásticas, portanto agregador de referenciais estéticos próprios e que referenciam diretamente o universo plástico desenvolvido por Farnese de Andrade a partir da década de 1960. O artista plástico dedicou-se, a partir do referido período, a trabalhos de assemblage, que remetiam ao universo interior mnemônico e subjetivo a partir de objetos desgastados e consumidos pela ação do tempo, recolhidos nas praias ou antiquários da cidade do Rio de Janeiro, processo semelhante ao empregado por Vandré Silveira, que reuniu, durante dois anos, objetos em percursos cariocas por onde teria passado Farnese de Andrade, procurando escolhê-los a partir dos critérios farnesianos.

As memórias da existência desse artista, os registros de seus peculiares percursos nas Gerais ‒ sendo o artista natural de Araguari, MG ‒ e no Rio de Janeiro ‒ cidade em que passa a residir a partir de 1948 ‒ bem como as trajetórias singulares de sua arte despontam do cuidadoso trabalho dramatúrgico e cenográfico. Isso porque o cenário só existe em forma de movimento, construído ou reconstruído por elementos que, como se surgissem diante do espectador, vão aos poucos desvelando o universo imagético e estético da obra de Farnese de Andrade. Assim, vamos encontrando os elementos peculiares da obra do artista: peças oriundas de antiquários ou de depósito de materiais usados, entre elas, fotografias, vidros antigos, bonecas, ex-votos, gamelas, etc.

O cenário, entretanto, se configura como parte ativa da narrativa e não apenas como pano de fundo, no qual uma ação se concretiza. É ele, em si mesmo, pura ação. Aprisionado na existência de Andrade, nosso Farnese labora incessantemente em expor à luz os elementos que são objetos e fragmentos da trajetória do artista. Assim, o espectador confronta-se com a história de Farnese de Andrade e com o modo através do qual sua imaginação criativa se concretizava e se materializava em obras de arte. Mas o labor de nosso ator é, em essência, o trabalho que realiza a memória; o passado é uma totalidade inalcançável, somente o trabalho da memória é capaz de resgatar as imagens passadas. É a memória que, assim como nosso Farnese trabalhador infatigável, traz à luz a experiência vivida. No caso de Farnese de Saudade, estamos perante uma outra experiência vivida que não é a sua, pois se trata, evidentemente, de uma representação. Nem por isso é uma narrativa menos real, pois os percursos da memória encontram-se sempre com os da imaginação. É impossível desvelar a real impressão do vivido, pois o passado lembrado será constantemente preenchido pelo eu presente, ou seja, lembrar é inevitavelmente preencher lacunas.

 

Espetáculo Farnese de Saudade, de Celina Sodré. Fotografia de Rodrigo Castro

 

Espetáculo Farnese de Saudade, de Celina Sodré. Fotografia de Rodrigo Castro

 

Se o passado é o elemento fugaz que perseguimos sem, contudo, encontrar sua essência, o Farnese de Andrade que conhecemos no espetáculo é um misto de lembrança e imaginação, assim como o outro Farnese de Andrade, aquele artista plástico nascido em 1926, também o é. Ambos se reencontram na ação que se desenrola em cena e no cenário que se reconstrói em cena. A ação que se desenrola é a ação mnemônica, a revisitação atualizada do passado do artista também é a reinvenção do artista, como o próprio se inventou e se reinventou todas as vezes que procurou contar a sua própria história. Reinventou-se múltiplas vezes no seu ato criativo. Reconhecer a irrealidade do personagem e do homem que foi Farnese é torná-los o mais real que nos é possível. Consiste em dar vida e movimento àquilo que, sem a imaginação e a memória, quedaria invisível.

 

 

NOTAS

[1] PESSOA, Fernando. “O Marinheiro”. In: Orpheu. n. 1. Lisboa: Janeiro-Março, 1915.

[2] BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, p. 75.

[3] Cabe pontuar aqui que a relação entre a memória e a imaginação aparece na história da filosofia desde os textos de Platão e de Aristóteles, mas é um tema mais amplamente desenvolvido nas obras de filósofos como Henri Bergson e Paul Ricœur.

[4] O espetáculo concorre também na categoria Especial (pela pesquisa do projeto) no prêmio Questão de Crítica.

 

BIBLIOGRAFIA

Livros

NAVES, Rodrigo. Farnese de Andrade. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.

BERGSON, Henri. Matière et Mémoire. Essai de la Relation du Corps à l’Esprit. Paris: Presses Universitaires de France, 1959.

PESSOA, Fernando. “O Marinheiro”. In: Orpheu. n. 1. Lisboa: Janeiro-Março, 1915.

RICŒUR, Paul. La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000.

 

Website

<http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-bourgeois/ENS-bourgeois.html>

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MACEDO, Suianni Cordeiro. “Indizível Instante: Presença e Memória de Farnese de Andrade”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 2, jan. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2013 eRevista Performatus e a autora

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