Tales Frey, Vende-se: Aceita-se Cartão de Débito. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Junho de 2009. Fotografia (still video) de Leila Barreto e Cia. Excessos
Óculos – 10€, Meia arrastão furada – 0.01€,
Sapatos – 20€, Saias – 1€, Chapéu – 15€, Colares – 1€,
Vestidos – 10€, Luvas – 5€, Bolsa – 5€, Calcinha – 80€…
Bigode – Não vendo
O texto presente reivindica um detalhamento sobre o que está entre Tales Frey e aquele que o percebe artista em Vende-se: Aceita-se Cartão de Débito. A imagem do performer está cada vez mais disfarçada por roupas cotidianas e movimentos reproduzidos, copiados, repetidos, tais quais os movimentos dos corpos ordinários. Jerome Bel, Xavier Le Roy [1], por exemplo, são artistas da dança que observam a banalidade do cotidiano, abstraem gestos, ações e movimentos de sua percepção e, por fim, apresentam sua análise para um público que veste tal qual o corpo que apresenta a pesquisa no palco. Por meio de uma exploração do estado de exposição proposto por Tales Frey, pontuo características e qualidades de temperamento que atravessam o corpo daquele que lida com a arte.
O corpo do performer na performance Vende-se é um corpo rancoroso que atua sob a pressão do sistema econômico, que exige posicionamento delimitado de identidade e gênero. As escolhas pré-definidas de territórios servem a uma proposta comercial: vende-se o que tem forma para aquele que é fôrma. Um bom consumidor é aquele que sabe o que quer, um bom artista é aquele que conhece bem o seu conceito, um bom filho é aquele que tem uma carreira promissora, direta e contínua. O “bem” é elemento do progresso, que é, por sua vez, como podemos sentir na pele, hoje, a própria destruição inerente ao humano. Caminhamos para o momento máximo do despir-se completo: a morte.
A atividade artística propõe alternativas à economia oficial; temos um exemplo corrente: o financiamento coletivo (crowdfunding), que enquadra em um processo de venda do efêmero, do que é amorfo. O financiamento coletivo é uma alternativa ao sistema brasileiro de editais que retoma o mecenato. Há uma enorme flexibilidade nas bordas dessa definição, porque o financiamento coletivo propõe recompensas ao patrocinador de convivência e trocas de experiências. É, portanto, diferente do formato de apoio, edital ou patrocínio privado, que demandam uma contrapartida social que muitas vezes se resume em marketing, publicidade e des-serviço social. A performance de Tales é um deboche – característica explorada pelo artista há mais de dez anos – que ironiza a condição marginal daquele que pratica arte. Maldição da humanidade, trágico eterno, romântico ainda, o artista é a borda da saia, é a silhueta do continente, é todo ele somente pele e fronteira. No caso de Frey, o palco é sua própria pele, maior órgão do corpo humano, ou ainda a segunda pele, que é a convenção social, a identidade visual.
Como vender o que é mutável, o abjeto? O salão social espanta-se com a exibição do estado performático que Tales Frey demarca, atravessando imagens representativas de consumo, marginalidade das calçadas, alternativismo, poder e vulnerabilidade, paradoxo recorrente em performances solo. Um bigodão, vestidos, meia arrastão são elementos representativos de gêneros diversos, que produzem a expressão “jovem-senhor-feminino”. Essas são características relevantes na construção da figura que usa a linguagem verbal e plástica para comunicar confrontos entre trabalho intelectual e labor quase escravo do artista. O artista assume essa estranha posição de trabalhar, muitas vezes por meio de elementos como a repetição, a movimentação mecânica, o vazio corporal (características observadas em trabalhadores em situações fordistas, como Rudolph Laban avaliou na sua pesquisa sobre o gráfico dos esforços em fábricas inglesas [2]), sem valorar o seu produto. O paradoxo pode surgir da impossibilidade de considerar o trabalho, muitas vezes efêmero, produto em si, como muito se discutiu a partir da expressão pop de Andy Warhol. Nicolas Bourriaud aponta que:
Todas as estruturas sociais e culturais representam nada mais que artigos de vestir que podem ser despidos, objetos para serem experienciados e testados […]. O artista realiza legendas para comentários. Ele organiza palavras humanas, fragmentos da fala e traços escritos de conversas, como uma amostragem íntima, uma ecologia doméstica. […] objetos sociais, habitantes de instituições através das mais banais estruturas, são empurrados de sua inércia. Através do escorregamento para o universo funcional, a arte revive esses objetos e revela sua absurdidade. (BOURRIAUD, 2002, p.70) [3]
Vende-se apresenta o produto artístico carregado de produtos outros e carregado da absurdidade do consumismo contemporâneo. Mesmo quando o consumidor toca aquele objeto – objeto amado, reconhecido por um processo de identificação catártica –, o momento da compra diz respeito ao projeto de formação estética e, portanto, política, que as agências de publicidade, indústrias da moda e automobilística e autoridades diversas promovem. O consumo e a arte partilham o mesmo objeto de pesquisa, em sentidos aparentemente contrários. O consumo vende identidades, arquétipos e a arte – performática, de Tales Frey – quer despir para dar visibilidade ao corpo que se veste.
O teatro de Aderbal Freire-Filho, diretor brasileiro do gênero Teatro Aberto, parece interferir na formação de Frey. O romance em cena é um gênero que traz o romance para a cena teatral e os artifícios cênicos devem se adaptar à narrativa. Não há interesse em adaptar o romance para estrutura dramático-dialógica cênica. Vende-se parece trazer a narrativa do “universo funcional” de Bourriaud para a sua estrutura performática; o texto banal de uma urgência cotidiana é comentado através do ato. Outra semelhança metodológica: Tales Frey atribui esforço à sua prática, quando a inércia cotidiana o empurra para a rua. A necessidade de um espaço o empurra para a rua, com o gracejo contextual do Festival Alma da Rua, no qual a performance se situa. Aderbal conta que o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, grupo de referência formativa do teatro brasileiro, finalmente atribui força à sua prática quando o grupo é expulso, em 1971, do Teatro Gláucio Gil, o qual ocupava consistentemente. A expulsão provoca micro/macrorrevoluções, segundo a exposição do próprio Aderbal, na ocasião do Fórum Centro de Demolição e Construção do Espetáculo promovido pelo Complexo Duplo no seu projeto de Ocupação do Teatro Gláucio Gil em Copacabana, no dia 15 de abril de 2012. Uma última relação em favor do estudo de comparação entre um projeto artístico histórico, de Aderbal, e outro contemporâneo, de Frey – ambos são presenças inesquecíveis do curso de graduação em Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro –, é o fato de que Aderbal enfatiza o teatro como a arte da fogueira. Daí a ideia de trabalhar a imagem da ruína, da demolição, inspirada pelo construtivismo. Frey enfatiza a efemeridade da sua performance por somente vender suas roupas por meio do procedimento de débito, uma assinatura momentânea, um compromisso que se esvai, um escambo cultural do qual lembramos e uma negociação a partir da qual inventamos memória.
Tales Frey, Vende-se: Aceita-se Cartão de Débito. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Junho de 2009. Fotografia (still video) de Leila Barreto e Cia. Excessos
É interessante observar que na trajetória de Tales Frey e de seu companheiro Paulo Aureliano da Mata, fundadores da Cia. Excessos, a documentação se torna objeto de análise, divulgação e produto em ocasiões de mostras de vídeo, por exemplo. Há uma recorrência em registrar atos repentinos de duração continuada pela perspectiva de um observador parcialmente escondido, sem identidade, não tal como um voyeur, mas como alguém que foi surpreendido por aquele evento. Em Outro Beijo no Asfalto, por exemplo, observamos, de um ângulo distante e superior, quase como que filmado de uma grua, o registro de vídeo da performance. Sinto-me uma observadora debruçada na janela de um escritório imaginário, com o trabalho interrompido por uma cena, que, como em Vende-se, me empurra a refletir e questionar versões da realidade cotidiana a partir do vestuário em confronto com as imagens tradicionais de gênero.
Tales Frey, O Outro Beijo no Asfalto. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Janeiro de 2009. Fotografia (still video) de Cia. Excessos
O hífen, na língua portuguesa, é um marco de uma trajetória. Delimita a distância fundamental para que dois territórios se comparem, se relacionem. É também reflexão, espaço espectral de observação do que acontece entre um e outro, entre uma ação e o seu sujeito. É um traço. Um código gráfico. Tales Frey, na performance Vende-se: Aceita-se Cartão de Débito, tem a silhueta do seu corpo bem definida. O vestido preto, por cima de um saia preta, marca o que já é um hífen, sua pele. Outros objetos cobrem a figura do performer. Essa figura, através desse trabalho de exposição, fala de um estado – território poético de Frey – comum aos que vivem do discurso marginal da arte; o discurso performático é um discurso permeável.
Notas
[1] Ver em: <http://www.xavierleroy.com/>. Acessado em 8 de outubro de 2012.
[2] NEWLOVE, J.; DALBY, J. Laban for All. Londres: Nick Hern Books, 2005.
[3] BOURRIAUD, Nicolas. Postproduction: Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World. Nova York: Lukas & Sternberg, 2002.
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2013 eRevista Performatus e o autor
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