Estudos Sobre a Dançatividade: Corpos-políticas em “Não Alimente os Animais”, de Ricardo Marinelli

 

Dançatividade e Potência

Durante as pesquisas elaboradas sobre os conceitos de Teatralidade e Performatividade no seguimento da elaboração do Trabalho de Conclusão da Licenciatura em Teatro defendido em julho de 2011 [1], deparamo-nos com a seguinte pergunta: a performance tem a performatividade, o teatro tem a teatralidade, e a dança tem o quê? Partindo dessa questão, propusemo-nos desenvolver, no projeto de mestrado, o trabalho intitulado Dançatividade: Pistas para Pensar a Dança na Contemporaneidade [2]. O termo “dançatividade” é pensado por nós como potência que se manifesta na pluralidade da dança na contemporaneidade, sem atendermos aos paradigmas de caracterização dessas diferentes manifestações, mas procurando perceber que formas tal potencialidade pode tomar na cena.

Para pensar a dançatividade, traremos para a nossa discussão uma percepção inicial de como se caracterizam os conceitos de teatralidade e performatividade. Levando em conta que esses conceitos vêm sendo estudados por diversos teóricos e críticos, optamos por trazer para esta discussão um pensador de cada conceito por entendermos que o quadro teórico se coloca apenas como introdução à questão da dançatividade que nos propomos a pensar neste artigo.

Considerando a percepção de teatralidade enquanto espaço de tensão entre procedimentos do teatro e de outras linguagens artísticas (FÉRAL, 2008), e de performatividade como qualidade da ação que pressupõe a existência de sujeitos envolvidos numa relação de falar e se deixar falar-ouvindo (AUSTIN, 1990) (SCHECHNER, 2006), propomo-nos a refletir quais as questões que a dançatividade poderia trazer para pensarmos as manifestações de dança na contemporaneidade.

Podemos dizer que a dança na contemporaneidade tem como característica própria a constante busca por rupturas na sua própria estrutura, rupturas essas que, partindo do agenciamento de diferentes percepções técnicas e estéticas, geram manifestações tão diferenciadas entre si que acabam por extrapolar esta mesma nomenclatura e necessitar da criação de diferentes espaços de conceituação e criação.

De acordo com esse pensamento, torna-se necessária uma definição que não mais se impressione com categorias de tipos de dança, mas com a análise das potencialidades de dança na cena. Os conceitos ou vertentes, tais como Dança Vertical, Dança Butoh ou Dança-Teatro, esbarram na categorização de tipos de dança, o que acaba por trazer mais complicações relacionadas à compreensão das danças que não fazem parte desses “tipos de dança”.

Interessa-nos, neste trabalho, tratar da dança na contemporaneidade através da discussão de trabalhos artísticos que estão tanto no campo da dança como em outros campos, tais como a performance ou arte da instalação e que, no seu processo, revelam procedimentos ou potências de dança. Nessa perspectiva, afastamo-nos dos paradigmas de conceituação e aproximamo-nos mais de uma possível leitura das questões de ruptura e hibridização das linguagens sugeridas nessas manifestações.

Dessa feita, é válido salientar que as ideias aqui propostas não prevalecem em todos os contextos da dança na medida em que se apresentam enquanto pistas para pensar a dança no contexto plural e mutável da contemporaneidade. Não nos interessa, nesse sentido, tentar urdir um conceito de dança na contemporaneidade, pois percebemos que não há uma única referência que abarque a sua diversidade de pensamentos, processos de criação e treinamentos.

Nessa perspectiva, propomo-nos pensar a dançatividade enquanto possibilidade de leitura da dança na contemporaneidade, assumindo as diferenças entre as danças que se manifestam nesse contexto. Assim, o termo proposto ajuda-nos a pensar essas manifestações na medida em que busca concentrar-se na análise dos pontos de convergência entre diferentes danças e não nos pontos divergentes que as situam sob diversas nomenclaturas.

Concentramo-nos, pois, no que une todas essas perspectivas enquanto fio condutor da experiência humana (BARRENECHEA, 2011), que é tecida na cena pelos corpos que agem-dançam e pelos corpos que se deixam dançar naqueles primeiros. Ao concentrarmo-nos no corpo que age-dança, enquanto força motriz das manifestações de dança na contemporaneidade, podemos tratar das diferentes “danças” sob esta mesma denominação, bem como das diferentes estratégias de agenciamento dos referenciais estéticos e técnicos necessários para seus processos criativos, nunca homogeneizando-os, mas, pelo contrário, afirmando, na potência de suas particularidades, a existência de um espaço de partilha entre estes. Nessa perspectiva, podemos afirmar que a dançatividade se manifesta enquanto potência de criação do corpo-agente que extrapola os limites da linguagem em que se insere.

Trazemos, portanto, para a discussão, o termo “vontade de potência” desenvolvido por Friedrich Nietzsche e revisitado criticamente por Keith Ansell-Pearson (1977) no seu livro Nietzsche como Pensador Político: Uma Introdução. Ansell-Pearson enfatiza que a vontade de potência pode ser considerada uma força criadora, um impulso de força a efetivar-se e a criar novas configurações em relação às demais.

Partindo da percepção apontada pelo autor, podemos perceber que a vontade de potência se coloca como um impulso do sujeito em se distanciar da verdade unificadora e de se abandonar aos seus instintos artísticos constituídos pelo contínuo confronto entre as forças apolíneas e dionisíacas (NIETZSCHE, 2006). A vontade de potência seria um impulso de reavaliação, transvaloração dos valores, parafraseando Nietzsche.

A dançatividade, enquanto potência, manifesta-se nos agenciamentos realizados pelos corpos-agentes no processo criativo da cena. Corpos-agentes no esforço de tratar as suas questões no espaço de criação que acaba por inferir num jogo de forças e questionamentos da linguagem da dança, recriando-a numa inquietude criadora que se manifesta das mais diferentes maneiras, produzindo contatos e riscos que a colocam em questão.

Por compreendermos que não seria possível pensar as inesgotáveis possibilidades de manifestação da dançatividade na impermanência do sujeito da dança, e dessa própria dança enquanto território de criação, considerando o recorte de uma pesquisa de mestrado, concentraremo-nos apenas em três aspectos de grande importância para a compreensão dessa potência. São eles, o estudo das diferentes percepções de processo criativo, a capacidade da linguagem de dança de contaminar e ser contaminada por outras linguagens artísticas e, por fim, as relações entre dança e políticas e consequentes manifestações no contexto contemporâneo.

No presente artigo, iremos concentrar-nos neste último aspecto, reafirmando uma compreensão da dança que se constrói a partir dos corpos, dos sujeitos interpelados e pelados [3] pelas experiências e referenciais do contexto contemporâneo. Propomo-nos a pensar como a(s) cena(s) de dança(s) pode(m) tratar de temas que partem do próprio corpo, tornando-os políticas na medida em que esses temas também tocam outros corpos, outras realidades.

 

Dança e Política

Damos início a esta discussão, clarificando o que entendemos por dimensão política não apenas nos trabalhos em dança na contemporaneidade, mas na arte contemporânea como um todo. É válido ressaltar que não nos referimos aqui a uma política partidária, endurecida. Referimo-nos, na verdade, a uma composição estética que, em alguns momentos intencionalmente, em outros não, toca nas micropolíticas que perpassam a nossa vida cotidiana (CANTON, 2009).

Sobre o tema das micropolíticas, Katia Canton (2009) revela que na contemporaneidade o termo “política”, enquanto algo sólido e unificado, passa a ser substituído pelas “micropolíticas”, que consistem numa “atitude focada em questões mais específicas e cotidianas, como o gênero, a fome, a impunidade, o direito à educação e à habitação, à ecologia, enfim, tudo aquilo que nos diz respeito e nos faz viver em sociedade” (CANTON, 2009: 15). Dessa forma, pode-se compreender a micropolítica como uma estratégia de construção das nossas relações cotidianas, corpo, sexualidade, saberes etc.

Jaime Spitzcovsky, em entrevista a Katia Canton (2009), afirma que a maior parte do século XX foi marcada pela polaridade ideológica que teve como protagonistas o sistema capitalista na figura dominante dos Estados Unidos e a democracia representativa defendida pela União Soviética. Essa situação manteve o claro embate ideológico pontuado pelos conceitos de direita, centro e esquerda, fazendo com que o cenário político da época fosse mais fácil de organizar e compreender, uma vez que as posições que se alinhavam com os Estados Unidos se situavam à direita e as que acreditavam na ideologia representada pela União Soviética, ocupavam a esquerda.

Com a desintegração da União Soviética e a queda do muro de Berlim no final dos anos de 1980, as ideias defendidas pela esquerda passaram a ser questionadas. As ideologias e partidos políticos entraram em crise com a dissolução dos contornos claros de direita e esquerda. Dessa forma, os partidos e suas posições políticas dão-se em vários outros focos, e as pessoas procuram formas alternativas de fazer política e expor seus pontos de vista. Para Spitzcovsky:

 

Os artistas, em vez de defenderem suas posições políticas no âmbito partidário, vão canalizar para suas atuações artísticas a vontade de expressar seus pontos de vista. Ou seja, eles encontram na atuação artística um espaço no qual talvez se sintam mais a vontade do que nos partidos políticos, os quais estão enfrentando uma crise, não só no Brasil como no mundo, reflexo da crise das ideologias clássicas e também do sistema político. (SPITZCOVSKY In CANTON, 2009: 21)

 

Nesse sentido, podemos afirmar que da mesma forma que o que era considerado essencialmente político perdeu a força, o que antes não trazia uma conotação política, agora trará. Estando a arte, hoje em dia, cada vez mais ligada às micropolíticas do cotidiano da gestão das relações pessoais e da relação do sujeito consigo mesmo, ela faz-se cada vez mais ligada à vida. Os artistas contemporâneos atuam em formações variadas, abordando questões cotidianas e articulando as relações entre o espaço público e o privado (PELBART in CANTON, 2009).

Nessa perspectiva, o artista contemporâneo, enquanto pensador crítico da sua própria sobrevivência, encontra na arte a manutenção de uma postura de luta, de questionamento, de denúncia. Abandona a antiga imagem de ser dotado do talento da criação, assumindo a sua inquietude e imperfeição e colocando em cena a realidade pela qual são interpelados e pelados.

A discussão de questões pessoais e cotidianas por meio da dança torna-se cada vez mais comum na medida em que os artistas partem das suas idiossincrasias como espaço de criação dos espetáculos ou coreografias. O modo como se conduz o processo criativo nesse contexto suscita problemas que não dizem respeito apenas ao artista, mas também ao seu contexto político-social, emocional e a todos os outros fatores que, combinados, compõem a sua maneira de posicionar-se no mundo.

 

Ricardo Marinelli, Não alimente os animais, 2012. Fotografia de Leco de Souza

 

Ricardo Marinelli, Não alimente os animais, 2012. Fotografia de Leco de Souza

 

Ricardo Marinelli, Não alimente os animais, 2012. Fotografia de Leco de Souza

 

As produções artísticas podem apresentar esse caráter micropolítico ao apontar como tema gerador uma questão ligada a movimentos políticos como o trabalho Não Alimente os Animais (2010), de Ricardo Marinelli, sobre o qual trataremos mais à frente, ou mesmo investigando um problema de caráter idiossincrático que pode, apenas aparentemente, não ter intenções de tocar em quaisquer questões políticas, como na coreografia Lamentation (1930) da bailarina e coreógrafa estadunidense Martha Graham. Essa coreografia, apesar de ter sido criada há décadas, tem caráter contemporâneo por não tratar de um tema que a localize especificamente num contexto histórico-social. Sobre Lamentation, Graham comenta:

 

“Lamentation” é uma dança muito antiga sobre um tema muito antigo, a tragédia que obsidia o corpo. O figurino que é usado é apenas um tubo de material, mas é como se você estivesse se esticando dentro de sua própria pele. Uma das primeiras vezes que eu a dancei foi no Brooklin, e uma moça me procurou após a apresentação com um rosto tranquilo, mas de quem estivera chorando, e disse: “Você nunca saberá o que você fez por mim esta noite, obrigada”, depois saiu. Eu perguntei sobre ela depois e parece que tinha visto seu filho de nove anos ser morto em sua frente, atropelado por um caminhão. Tentaram com todos os esforços fazê-la chorar e ela não era capaz de fazê-lo, mas quando viu Lamentation disse que sentiu que a dor era honrável, que era universal e que ela não precisava ter vergonha de chorar por seu filho. [4]

 

Na fala de Graham, é possível perceber que um tema, uma questão no corpo do artista, como essa tragédia que se lamenta na coreografia pode, ao mesmo tempo, ser pessoal e universal. Nessa perspectiva, a apresentação da coreografia pode configurar uma partilha do sensível, um sistema de evidências sensíveis que revela a existência de um espaço comum assim como de um espaço individual (RANCIÈRE, 2005). Dessa forma, aquele que presencia a apresentação cênica e, portanto, envolve-se nessa partilha, pode tomar parte do comum partilhado a partir das suas próprias experiências e idiossincrasias.

Para Rancière existe, na base da política, uma estética que se distancia de uma tomada da política por uma vontade de arte, mas se aproxima da percepção da política enquanto forma de experiência. Nessa perspectiva, a política ocupa-se do que se percebe e do que pode ser dito acerca do percebido. No que concerne à dança, como pudemos perceber diante do relato de Martha Graham, a partilha estética se dá no encontro entre os corpos daquele que age-dança e daquele que presencia o ato artístico, podendo materializar-se no corpo, fio condutor da experiência a partir de uma sensação ou mesmo do despertar de uma memória.

Miguel Angel de Barrenechea, em Nietzsche – Corpo e Subjetividade (2011), considera repensar a condição do homem a partir de uma subjetividade carnal, tendo, por base, as questões que aborda sobre o pensador alemão. Nessa óptica, a subjetividade a que o autor se refere pode ser interpretada como a própria condição subjetiva do corpo no seu caráter processual, pensando o homem enquanto ser múltiplo e diverso, assim como as suas pulsões, emoções, desejos.

Partindo da concepção nietzschiana de corpo enquanto único fio condutor confiável da experiência, a noção de subjetividade carnal destaca a condição do homem concreto e da experiência vivida, valorizando um saber do absolutamente individual construído no processo-vida do homem e das suas relações com o mundo que o cerca. Porém, Nietzsche aponta-nos uma possibilidade de pensar o singular, o instintivo, sem renunciar à partilha desse saber:

 

aponta para a nossa efetiva experiência carnal, para aquilo que é nosso, que é singular e único, mas que pode ser compreendido pelo outro, pode ser partilhado; assim como entendemos das nossas digestões, emoções, percepções, desejos, também entendemos as dos outros. Secularmente acostumados a acreditarmos na alma, na razão, na consciência, nos pensamentos abstratos, temos dificuldades de reconhecer o que é mais singular, o mais concreto da nossa experiência. (BARRENECHEA, 2011: 15)

 

Partindo das percepções nietzschianas, Barrenechea afirma que a subjetividade carnal propõe uma “universalidade do absolutamente singular” (BARRENECHEA, 2011), revelando o humano na tessitura da experiência da dança, no movimento, nas escolhas espaciais ou musicais. O pensamento em dança amplia-se para uma percepção de que a dança se dá no desenrolar das relações entre corpo, ambiente e outros corpos. Assim, revelando idiossincrasias e partilhando subjetividades tocamos no cerne da experiência comum, micropolítica.

O olhar daquele que presencia o ato artístico também revela, nesse sentido, a sua dimensão micropolítica, na medida em que, ao ocupar-se do que vê, também traz para a sua percepção do que foi visto as próprias referências políticas, pessoais. Aquele que presencia a ação, assim como quem a realiza, expõe as suas questões pessoais como maneira de retomar uma perspectiva austiniana (AUSTIN, 1990): firmar um acordo entre aquele que diz e aquele que ouve/dizendo-se, um acordo firmado na experiência e no devir da relação.

Na medida em que nos concentramos no corpo que age enquanto fio condutor da experiência da dança, e na política enquanto experiência da partilha estética, colocamo-nos na perspectiva de repensar os termos “bailarino” e “espectador”, referindo-nos àqueles que se concentram no ato de dançar e àqueles que presenciam a ação. Nesse sentido, podemos nos desligar da relação hierarquizada que essa duas nomenclaturas imprimem, e considerar as duas partes como agentes da experiência-dança, envolvidos igualmente nesta, na medida em que dançam e se deixam dançar nos corpos uns dos outros.

É válido ressaltar, contudo, que nem todo espectador que presencia uma ação em dança envolve-se necessariamente na experiência da dança. Retomando a perspectiva de Jorge Bondía Larossa (2002), é possível que passemos por toda a nossa vida sem ter uma experiência. O autor afirma que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, não o que acontece ou o que toca” (LAROSSA, 2002: 21). Passar por uma experiência é ser modificado por ela, ser levado a uma reorganização dos seus valores, das suas questões pessoais.

Este outro agente da cena é impulsionado a viver a experiência da dança não apenas quando se dirige a uma casa de espetáculos, onde já espera ser tomado pelas diversas formas de partilha estética, mas pode também deparar-se com essa experiência no seu espaço cotidiano, enquanto realiza as atividades do seu dia, um espaço de repartição política e estética da experiência comum.

Ao apresentar a personagem Ana Princesa dos Cabelos Mágicos, Ricardo Marinelli, na performance Não Alimente os Animais [5], evidencia os espaços ocupados por travestis nas ruas das cidades por que passa. Ao realizar o seu percurso de performance, Marinelli põe às claras a sua figura travestida nas ruas e calçadas em que travestis se prostituem durante a noite.

Marinelli é artista e produtor cultural na cidade de Curitiba (Paraná, Brasil) e transita entre os campos da dança e da performance, sendo as suas produções reconhecidas como produções de dança, como indicam os editais de fomento e prêmios nacionais em que obteve reconhecimento. O seu trabalho torna-se importante neste nosso recorte, não apenas pelo caráter micropolítico, mas também pela discussão que traz sobre o espaço da dança nos seus trabalhos performáticos. O artista apontou-nos, em conversa durante o projeto Descontrole Remoto, que as opiniões do público, assim como a dele próprio, dividiam-se ao serem questionados sobre a linguagem artística em que o seu trabalho se inseria.

Dança ou performance? É uma questão que o artista curitibano já não se coloca. Acreditamos que o impulso de ter como tema gerador uma questão política tão forte como o espaço que os travestis ocupam na sua cidade, aliada à atitude de apontar o que ele chama de bizarro nestes corpos, fazendo-os saltar aos olhos da sociedade, tenha tirado os seus trabalhos dos palcos de dança e os colocado nas ruas, praças e calçadas. Esse movimento de passagem a outros espaços leva-o a diferentes pesquisas de movimento e a distintas estratégias de construção estética da cena, talvez já não reconhecidas pelos espaços conceituais e estéticos da Dança Contemporânea.

Em julho de 2012, quando, a partir de conversas informais com o artista, tivemos a oportunidade de conhecer de modo aprofundado o trabalho citado e a questão que o move, foi-nos explanado que na cidade de Curitiba, onde atua artisticamente, há uma grande hostilidade no que diz respeito à homossexualidade e transexualidade. Tal hostilidade se manifesta das mais diferentes maneiras, seja em colunas dos jornais [6] mais veiculados na cidade, seja através de crimes de ódio cometidos por pessoas que dizem serem membros de comunidades Skinheads que envolvem agressões e, em alguns casos, morte [7].

Num exercício de curiosidade, ao fazermos uma pesquisa no site de buscas Google, usando como palavras-chave “neonazismo, Curitiba, notícia” [8], obtivemos resultados alarmantes, pois a busca revelou inúmeras páginas de notícias de jornais sobre agressão e morte de homossexuais, ou mesmo de heterossexuais que por acaso estavam abraçados com pessoas do mesmo sexo.

É válido salientar, portanto, que tal recorte da cultura curitibana que aqui colocamos não se propõe a ser uma denúncia ou espaço de juízo de valores, mas sim uma explanação do contexto em que o trabalho discutido se coloca. Ao visitar e conhecer artistas da performance de Curitiba, pudemos notar muitos processos criativos que tratavam das questões aqui abordadas, e a partir disso percebemos que cada apresentação artística se assume através do tratamento de temas ligados a movimentos políticos, e aponta, na cena, as suas inquietações contextuais que parte da sua arte enquanto veículo de denúncia e, ao mesmo tempo, de afirmação de diferentes potências de vida e corpos.

A performance Não Alimente os Animais parte de um projeto que Marinelli desenvolve junto a dois outros artistas curitibanos intitulado Travesqueens, que busca investigar cenicamente uma série de inquietações do performer sobre o corpo da mulher travesti, “corpos repletos de autoafirmação mas que vivem a restrição de uma existência abjetada” [9].

Nessa pesquisa, Marinelli apresenta um corpo vestido por meia-calça, sapatos de salto alto e maquiagem a rastejar pelas ruas e calçadas, lugar em que se permite que esse corpo habite durante a noite. Marinelli rasteja durante o dia nos lugares onde durante a noite os corpos travestidos estão à venda. O performer concebe a movimentação que desloca esse corpo travestido como uma movimentação articulada, porém que se limita ao plano baixíssimo enquanto plano em que se coloca essa camada da sociedade.

Ao tratar do corpo travestido com a simplicidade e força do seu trabalho, Marinelli acaba por apontar, em cada esquina que passa, as imperfeições escondidas na “limpeza” das ruas curitibanas habitadas por grupos neonazistas que a cada dia ameaçam e invadem os corpos que fogem da norma: negros, nordestinos, gays, travestis. Corpos cuja potência explode na sua dança, na capacidade de manter-se em luta.

 

Considerações Finais

Ao perpassar a discussão apresentada neste artigo, podemos perceber na potência da dançatividade a possibilidade de nos colocarmos enquanto agentes das nossas danças pensando-as através da experiência do dançar. Atar-nos à ação-dança ao invés de nos colocarmos numa tentativa de classificar e atar as suas pluralidades numa lista de nomes, proporciona-nos um pensamento mais ligado ao fazer-experienciar a dança de todos os corpos.

Nesse sentido, não pensamos a dança apenas quanto à sua dimensão virtuosa, mas também quanto à sua potência que revela o humano no movimento, nas escolhas espaciais ou musicais. O pensamento em dança amplia-se para uma percepção de que a dança se dá no desenrolar das relações entre corpo, ambiente e outros corpos. Pois como disse a coreógrafa alemã Pina Bausch: “O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move. A dança deve ter outra razão além da simples técnica, trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida” [10].

Ao dançar, ensaiamos a nossa capacidade de criar não apenas uma, mas várias linguagens para a vida. Tais linguagens, retomando uma perspectiva austiniana (AUSTIN, 1990), acabam por firmar um acordo entre aquele que diz e aquele que ouve/dizendo-se, um acordo firmado na experiência e no devir da relação. Em Não Alimente os Animais (2010), assim como em Lamentation (1930), pudemos perceber que na relação de partilha do sensível manifesta-se a dimensão micropolítica (CANTON, 2009) da experiência de dança que, no partilhar de subjetividades, envolve os seus agentes num jogo de relações corporais ou corporificadas que revelam, na experiência política, as singularidades dos temas universais.

Talvez o principal objetivo do artista que se revela em cena seja ser tocado, fazer algo acontecer para si e para o outro. Há uma busca por alimentar a possibilidade de repensar as suas convicções micropolíticas, e um desejo de experimentar a possibilidade de partilhar uma sensação. Como nos afirmou Martha Graham na experiência revelada anteriormente: “Isto me fez perceber que há sempre pelo menos uma pessoa com quem você pode se comunicar na plateia. Uma.” Mesmo nessa relação de distância física entre aquele que dança e aquele que presencia a dança, os corpos-subjetividades interpelam-se, tocam-se, modificam-se.

 

NOTAS

[1] O Trabalho de Conclusão da Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte “Você tem fome de quê: Estudos de Pertencimento”, foi orientado pela Profa. Dra. Naira Ciotti e defendido em julho de 2011.

[2] Projeto de pesquisa que desenvolvo enquanto aluna do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte sob a orientação da Profa. Dra. Karenine Porpino.

[3] “Pelados” como metáfora para um grau de despojamento do corpo que questiona a própria linguagem em que cria, seus códigos e convenções, gerando um processo de dança que expõe para si e para os outros os afetos criados em seu corpo pelas trajetórias percorridas no seu dia a dia.

[4] Ver em: <https://youtu.be/xgf3xgbKYko>. Acessado em: 20 de setembro de 2012.

[5] Ver trechos da performance em: <https://youtu.be/AfLs3DQWUIk>. Acessado em: 20 de setembro de 2012.

[6] Refiro-me aqui ao artigo “Perversão da Adoção”, escrito pelo jornalista Carlos Ramalhete, como crítica à possibilidade de casais gays adotarem crianças. Tal artigo tem tido grande repercussão nacional ao chamar a atenção de outras regiões brasileiras para atos violentos contra os homossexuais. Ver em: <http://goo.gl/yEgjAK>. Acessado em: 13 de setembro de 2012.

[7] Tal ponto pode ser notado com frequência, como noticia o jornal de maior circulação de Curitiba (Gazeta do Povo). A título de conhecimento desse contexto por parte do leitor, seguem alguns poucos exemplos, apenas no ano de 2012:

a) <http://goo.gl/wr0kyN>;

b) <http://goo.gl/JQ48Af>;

c) <http://goo.gl/QHOUZ7>;

d) <http://goo.gl/J6CtFM>;

Consultados em 13 de setembro de 2012.

[8] Ver em: <http://migre.me/co5ny>. Pesquisa realizada em: 20 de julho de 2012.

[9] Ver em: <http://goo.gl/lIkKul>. Acessado em: 22 de agosto de 2012.

[10] Ver em: <https://youtu.be/oE3aoW2xp4w>. Acessado em: 08 de setembro de 2012.

 

BIBLIOGRAFIA

ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche como pensador político. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977.

AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Lisboa: Artes Médicas, 1990.

BARRENECHEA, Miguel Angel. “Nietzsche: corpo e subjetividade”. Revista O Percevejo, Rio de Janeiro, n. 02, 2011.

CANTON, Katia. Da política às micropolíticas. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FÉRAL, Josette. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. Revista Sala Preta, São Paulo, n. 08, 2008.

LARROSA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

RANCIÈRE. Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.

SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. New York/London: Routledge, 2006.

 

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

SILVA, Chrystine. “Estudos Sobre a Dançatividade: Corpos-políticas em ‘Não Alimente os Animais’, de Ricardo Marinelli”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 2, jan. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2013 eRevista Performatus e a autora

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