Celeste Flores, Con-Sentimiento del Tiempo. Performance com colaboração de Jorge Alducin realizada na cidade de Monterrey, México. Julho de 2015. Fotografia de Alejandro Jahuey
O corpo é um meio e uma extensão de uma obra natural para expressar conceitos e ideias – comer, viver, conviver, envelhecer, nascer e perdurar é parte do contexto que desenvolvo como artista. É o meu corpo transitório que me aproxima da arte, o registro tanto em pintura como também em ação performática é criado através das vivências que se adulteram nesse espaço onde estamos e por meio das coisas com as quais estamos todos relacionados: o corpo humano. É o meu corpo material com data de validade que limita as minhas ações. Sou consciente da morte desde o primeiro momento em que me apontaram uma arma. Esta foi a violência que me deu vivência plena, o paradoxo para viver melhor, e viver melhor está dentro da mesma estética do meu corpo, a sua finalidade, o seu fim, a contemplação do corpo paralisado, a expectativa de duração da vida, o simples fato de aceitar o fim de cada sujeito. Isso é parte das metáforas dessa obra.
Em 2015, eu decidi legar o meu corpo para quem quiser receber um pedaço de mim. Li o meu testamento, escrito de próprio punho, em uma declaração pública [1] e legal para mostrar o meu corpo como obra, oferecendo-lhe para quem quiser nele fazer uma intervenção, permitindo que a pele amplie a conceitualização do morticínio e, em certo sentido, que isso estenda a vida daquele que escolhe testemunhar. O ato de me tatuar o texto (1978- ) no peito é simplesmente uma formalização do destino, ou seja, nascer e morrer, estar consciente do tempo que está entrelaçado cada dia com as vivências que se relacionam com a minha consciência. Transformá-lo em texto é uma lembrança da aceitação da vida e também da morte. Viver é lindo e, dessa forma, a morte também será ao doar meu corpo para que outras pessoas possam nele fazer interferência. Esse corpo que já será distante de mim, que será uma armadura cujos resíduos permitirão que outras pessoas entendam a minha vida, a minha participação neste mundo e a relevância do outro. O meu corpo é uma obra destinada a todo sujeito que o deseje e este, sem dúvida, terá que viver um pouco mais para vê-la.
O testamento é uma declaração. A seguir, fragmentos do que foi anunciado: “por minha plena decisão moral e pessoal, no momento da minha morte quero doar o meu corpo durante três dias para que ele seja modificado por qualquer pessoa interessada…”; “toda a extensão do meu corpo será modificada unicamente de forma gráfica…”; “qualquer instituição cultural ou pública… poderá exibir o meu corpo…”; “para participar, a pessoa deverá comunicar-se diante de uma audiência pública e com os meus respectivos advogados…”; “deverá ser preenchido o pedido específico no momento da minha morte”; “a partir deste ano de 2015, no dia da celebração do meu aniversário, ou seja, toda data de 22 de setembro, durante 24 horas, e até o dia do meu falecimento, as pessoas poderão solicitar inscrição para participar na intervenção através do seguinte e-mail: 1978celesteflores@gmail.com, de maneira que até a minha morte o meu advogado poderá entrar em contato e informar para tais pessoas o processo de intervenção…”. Esta obra é um convite para qualquer pessoa que deseje participar. Ela não precisará viver mais do que eu. Sua vontade, texto, ou qualquer coisa que deseje esculpir sobre o meu corpo será realizado através de um intermediário no caso de a pessoa inscrita ter morrido antes que eu. Na inscrição é solicitada informação familiar, visto que, possivelmente, eu viva muitos anos. Por isso seus familiares poderão ser avisados quando eu morrer para que a intervenção seja feita sobre o meu corpo. Considera-se também a possibilidade de que outra pessoa morra antes de mim e, assim, seu desejo será adiado e preservado na presença desta obra de arte viva.
Neste ano de 2017, a minha cara, minha palma direita, a coxa esquerda e o tornozelo esquerdo já pertencem a alguém. Quatro pessoas de antemão decidiram deixar suas marcas quando eu morrer. Estou aguardando o próximo mês de setembro para que mais pessoas decidam participar da intervenção sobre a minha pele.
Celeste Flores, Con-Sentimiento del Tiempo. Performance com colaboração de Jorge Alducin realizada na cidade de Monterrey, México. Julho de 2015. Fotografias de Alejandro Jahuey
TESTAMENTO OLÓGRAFO
Monterrey, Nuevo León, México
Sexta-feira, 31 de julho de 2015
Eu, Jessica Celeste Flores Torres, mexicana, aos 36 anos de idade, plena dos meus direitos, em completo uso das minhas faculdades mentais, livre de coerção física ou moral, com minha livre vontade, escrevo este testamento reconhecendo-o como único, através do qual invalido qualquer outro que tenha sido feito anteriormente.
Por meio deste, faço menção a seguinte petição: este é o meu corpo, com nascimento no dia 22 de setembro de 1978. Na presente data, tenho um metro e setenta centímetros de altura e peso 103 kilos. O corpo é meu, é minha proteção, é o meu contato com o todo. Com este corpo criei vida, e também através dele a perdi. É o meu consentimento apresentar para vocês aquilo que sou: um corpo, um corpo deteriorável que, em algum momento, chegará ao seu fim. Eu aceito e espero o tempo necessário para o meu destino. Desde o primeiro momento em que me senti frágil em minha saúde ou integridade, eu renasci e, hoje, a minha concepção sobre a minha própria vida se tornou uma motivação para contextualizar o tempo.
É nesse sentido e em plena decisão pessoal e moral que, no momento da minha morte, desejo doar o meu corpo durante três dias para que ele seja modificado por qualquer pessoa interessada. A pessoa pode participar interferindo nos braços, nas pernas, no rosto, nas costas, nos glúteos, nas genitálias, no peito. Toda a extensão do meu corpo poderá sofrer interferência unicamente através de forma gráfica. O meu corpo será uma obra que expressa a concepção da vida e da morte. O meu marido atual, Oliver Sebastian Alcala Barreto, é a primeira pessoa autorizada a intervir sobre o meu corpo caso ele esteja vivo e seja de sua vontade fazê-lo. A minha filha, Grettel Alvala Flores, caso esteja viva, poderá, se for sua decisão, permanecer isenta da minha petição mortuária.
Qualquer instituição cultural pública ou privada poderá exibir o meu corpo nu durante o tempo e a forma que são permitidos pela lei. Para isso, a pessoa deverá se apresentar diante do meu notório público designado para a minha petição e com a presença do meu atual advogado.
Todos os interessados, maiores de idade, deverão preencher um formulário específico no momento da minha morte. Cada centímetro do meu corpo que for escolhido não poderá ser repetido por outra pessoa. Cada parte do meu corpo deve receber apenas uma intervenção, tendo uma extensão mínima de cinco centímetros quadrados e uma extensão máxima de vinte centímetros quadrados.
A partir deste ano, no dia da celebração do meu aniversário, ou seja, a cada 22 de setembro, durante 24 horas e até o dia do meu falecimento, as pessoas poderão se inscrever para fazer interferência no meu corpo através do seguinte endereço de e-mail: 1978celesteflores@gmail.com. Até o dia da minha morte, o meu advogado poderá entrar em contato para avisar-lhes sobre a minha morte e informar sobre o processo de intervenção. Havendo pronunciado a minha última vontade, em razão de tudo o que disse anteriormente, registro a minha assinatura e impressão digital evidenciando a veracidade deste documento.
NOTA
[1] Nota do tradutor: Esta leitura foi realizada através de uma performance que pode ser conferida no seguinte vídeo: <https://youtu.be/BJEW_YIlo6E>.
PARA CITAR ESTE TEXTO
TORRES, Celeste Flores. “Con-Sentimiento del Tiempo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.
Tradução do espanhol para o português de Davi Giordano
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2018 eRevista Performatus e a autora
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