Tiago Cadete, ALLA PRIMA. Espetáculo realizado em Lisboa, Portugal. Janeiro de 2016. Fotografia de Luís Martins
Carta aos Amigos n. 1
Sábado, 5 de novembro de 2016
Quando pisei no Brasil pela primeira vez em fevereiro de 2012, a primeira coisa que fiz foi comprar um par de Havaianas clássico azul e branco. Quando estava a comprar as sandálias pensei: “Por que as Havaianas se chamam Havaianas e não Brasilianas?”.
As Havaianas foram criadas em 1962 e, segundo a empresa, foram inspiradas no modelo tradicional de sandália de dedo japonesa Zori. O nome foi emprestado do Havaí, criado e projetado por Hollywood como lugar dos sonhos dos anos 1960. Hoje em dia o calçado representa uma certa imagem do Brasil associado ao estilo praiano paradisíaco, do surf, dos sucos de fruta natural. A empresa não se chamou de Brasilianas e preferiu associar a imagem de outro lugar para construir um produto que se tornou um dos símbolos mais conhecidos no Brasil e no mundo.
Foi a partir de algumas curiosidades como esta que a minha pesquisa sobre a construção da performance ALLA PRIMA se iniciou. Cheguei ao Brasil quase por acaso e logo entendi que o processo de aproximação ao outro seria feito com alguma resistência. A temperatura a que os corpos estão expostos no Brasil, em particular no Rio de Janeiro, provoca rapidamente uma alteração no meu olhar, apesar de ter nascido a sul de Portugal, no Algarve, e de estar habituado, de alguma forma, a temperaturas altas e à exposição dos corpos pelos hábitos praianos. No Rio de Janeiro existem algumas diferenças, mas é através dessa exposição ao calor úmido que alguns corpos se constroem, como se fossem vestidos de pele suportada pela massa muscular e estrutura óssea voluptuosa. A cidade, pela sua topografia sinuosa, imprime nos corpos que a habitam a mesma sinuosidade, um caminho serpenteado que cruza e acentua os diferentes estratos sociais.
O que me interessava era tentar perceber o outro e, para facilitar tal desejo, eu tinha a vantagem de falar a mesma língua. Porém rapidamente percebi que essa facilidade continha algumas dificuldades; apesar de a língua ser a mesma, há algumas diferenças, sejam elas de vocabulário ou de sotaque. Na verdade, percebi mais tarde que as dificuldades não eram tantas, pois durante anos a televisão portuguesa passou telenovelas brasileiras e recordo que os anos 1980 e 1990 foram indispensáveis para educar o meu ouvido em relação ao sotaque brasileiro. De fato, tive facilidade em compreender o português falado no Brasil, mas o contrário não foi o mesmo; a minha primeira tentativa de falar sem sotaque logo criou alguns equívocos de entendimento, e minha pronuncia foi até considerada francesa ou espanhola em alguns momentos. Depois de algum tempo, naturalmente a minha voz ficou menos grave, as consoantes tornaram-se mais abertas e o chiar característico do carioca começou a surgir. De alguma forma, querer ser o outro para tentar percebê-lo não se prendia só à ideia romântica de um antropólogo na busca pelo exótico, mas também por questões de segurança. Se para mim é fácil identificar o outro, para o outro ainda é mais fácil identificar-me como o outro. Talvez o medo de ser assaltado tenha contribuído para um processo natural de camuflagem – as roupas que definem traços identitários foram gradualmente substituídas e rapidamente era mais fácil ter a sensação de pertencimento.
Mas o que estaria por detrás dessa paisagem vendida como um bilhete postal raro? Quais outros pontos de vista podemos ter sobre o Brasil e o corpo que o constitui? Será que o Rio de Janeiro só se vende através da sua imagem? Se assim for, é necessário viver nessa cidade para se constatar tal evidência?
A curiosidade de observar pessoas advém da minha formação enquanto ator que tenta compreender comportamentos e a forma como estes podem ser representados para ressignificar psicologias ou impressões de personalidade. E foi nessa tentativa de ser o “outro” que comecei a investigar como foi o olhar de “outros” para o Brasil, e como ele foi importante para criar uma ficção denominada de brasilidade. O processo de caminhadas com a finalidade de observação do outro acontecia espontaneamente durante o dia a dia, sem um método aparente. As novas informações eram armazenadas como experiências tomadas pelo corpo e arquivadas como memórias recentes. Conhecer o lugar também é circunscrever um espaço, delimitar um território para olhar por fora, de fora e para fora. O caminho natural de conhecer o outro através de um lugar passou a dar-se também por meio de um olhar para a História e perceber como ela praticou observações de diferentes formas, com suas multiplicidades de olhares, e de que maneira ainda eu conseguia ver traços do passado na contemporaneidade. É através da História que a pesquisa para a performance ALLA PRIMA encontra um dos seus pilares. Mas depois de fazer várias vezes essa performance na tentativa de aproximação do outro, confesso que cada vez mais me distancio dele. Talvez seja esse o significado de pertença/belonging, uma mistura de saudade com anseio e vontade de ser na busca dessa pertença.
Tiago Cadete, ALLA PRIMA. Espetáculo realizado em Lisboa, Portugal. Janeiro de 2016. Fotografia de Luís Martins
Carta aos Amigos n. 2
Sábado, 22 de abril de 2016
A primeira vez que entrei no Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro não deixei de reparar nas semelhanças com outros museus que já tinha visitado na Europa, e percebi também os largos corredores que em parte remetiam ao Museu do Prado em Madrid ou ao Museu do Louvre em Paris. Essas primeiras semelhanças não se apresentavam somente na arquitetura, mas também na forma como estavam dispostos os quadros. A memória que tenho é de que tudo era mais escuro, com pouca luz natural e uma quase ausência de luz elétrica.
Com essa primeira impressão, tornou-se ainda mais urgente saber que pinturas eram aquelas, que temas e corpos foram representados no Brasil. A minha formação em história da arte pouco ou nada trazia de referência à produção artística do Brasil. Recordo que a única vez que algum manual de história da arte português fez referência ao Brasil foi ao mencionar a arquitetura de Oscar Niemeyer – os grandes museus, que mais pareciam naves espaciais, ou Brasília desenhada do zero.
Desse modo, por meio de Niemeyer conheci um Brasil voltado para o futuro, mas sem qualquer referência artística do passado. Por isso era para mim um interesse entender o que a pintura brasileira poderia revelar do seu passado. No primeiro corredor do Museu Nacional de Belas-Artes, havia quadros que tinham como tema reis, rainhas e príncipes portugueses retratados da mesma forma que eu já vira outrora, normalmente com o corpo mais claro destacado do fundo, técnica usada para evidenciar a figura. Mas depois de observar diversos retratos, um deles me chamou a atenção, por trazer o corpo de um negro. Não memorizei que negro era aquele e porque tinha sido escolhido para ser pintado e pertencer ao mesmo estatuto daqueles que podiam ser retratados. A pintura era escura e, com isso, os limites do corpo se misturavam com o fundo, criando uma enorme mancha que não permitia destacar quem era a figura representada. A escuridão do ambiente em que o quadro estava, por sua vez, era ainda mais acentuada pela quase ausência de luz no dia em que visitei o museu. Hoje sei que aquela obra é o retrato do marinheiro Simão, e que a autoria do quadro é do pintor José Correia de Lima, aluno de Debret. A primeira questão que me ocorreu diante daquele retrato foi por que o fundo dele não era claro como os outros que vi naquele dia. Por que não se pensou em tornar o fundo mais claro para evidenciar o corpo negro que ali se representava?
Depois de apreciar várias obras, cheguei à Primeira Missa, imagem que reencena o início do colonialismo no Brasil, um marco histórico que conta uma parte da história da nação. Nessa pintura, ao centro podemos ver um padre consagrando um cálice diante de uma imensa cruz no meio de uma floresta, rodeado de indígenas que observam com espanto a cerimônia que ali se realiza. A ação central pareceu-me descabida do seu entorno. Depois dessa obra, seguiu-se A Batalha do Avaí, quadro gigantesco, talvez a maior pintura que vi até hoje. Enfim, durante essa visita, algumas questões surgiram para mim: por que a maioria dos corpos que vi naquelas pinturas foram representados com cânones europeus? Seriam mesmo assim os corpos dos brasileiros? Como a criação de imagens pode ser tão colonizadora como a exploração de corpos?
Dessa visita surgiu a vontade de criar um objeto artístico que tinha como temática a investigação da formação desse “corpo brasileiro”. E recordo que nas primeiras vezes que comecei a trabalhar na recolha e imitação de imagens, alguma coisa me incomodava na representação do outro através do que vestia; tudo me parecia extremamente ridículo e desadequado e, até mesmo por causa de uma limitação de recurso, eu nunca poderia encenar tantos corpos com as centenas de roupas que precisava. Decidi, então, vestir uma roupa normal; mas até essa roupa “normal” era demasiadamente colonizadora da minha parte. Mais uma vez o europeu vestido de europeu recriava imagens do outro. Por isso, em uma das tentativas do processo de minha criação, decidi que teria que fazer tudo nu, sem roupa, só pele, talvez com a intenção de que só agora, com distância, conseguiria interpretar um gesto que os meus antepassados deveriam ter feito na primeira vez que chegaram ao Brasil; desnudar-se perante a imagem do outro, já que esse outro assim se apresentou perante eles. E desse gesto aparentemente simples nasce a performance ALLA PRIMA, onde a nudez é acrescida da mudez, que fez ainda mais sentido ao que pretendi expor no trabalho; a necessidade de me calar assume a atitude de passar a voz apenas ao outro. Por isso escolhi introduzir vozes de brasileiros, descrevendo as imagens que colocava diante deles. A mudez na performance é indispensável para se conectar com as pinturas, que pela sua natureza e tradição clássica se apresentam mudas, sem emissão sonora.
Tiago Cadete, ALLA PRIMA. Espetáculo realizado em Lisboa, Portugal. Janeiro de 2016. Fotografia de Luís Martins
Carta aos Amigos n. 3
Sábado, 29 de abril 2017
Quando comecei a fazer teatro aos 18 anos, a ideia de poder representar um personagem era algo que me fascinava. Fazer-me de outro era, no meu imaginário, partilhar as ideias daquela pessoa ficcional. Mas com o passar dos anos, o meu olhar perante a ideia de reencenar peças de teatro, que pela sua especificidade trabalha com texto, era cada vez menos apelativa. Talvez por isso a minha vontade de trabalhar com dança contribuiu para uma liberdade criativa que vai além de um texto pré escrito; uma imagem ou uma música, por exemplo, podem mostrar-se elementos de criação tão ou mais importantes do que uma peça de teatro. Quando pensei pela primeira vez em trabalhar com uma coleção de imagens, majoritariamente pinturas, sobre uma ideia de corpo brasileiro, a primeira questão que surgiu foi de que forma eu poderia reencenar todas aquelas imagens sem pôr de lado uma postura ética em relação às questões raciais e sociais dos corpos representados. Como poderia ser outro sem nunca deixar de ser eu nessa tentativa?
A opção de dar literalmente o meu corpo a essas imagens foi o que desde cedo se evidenciou nessa proposta. Mas como reencenar as imagens que escolhi para a minha performance? Como apresentá-las alterando alguns dos seus referentes, jogando tanto com a memória do observador perante a sequência da própria performance tal como a memória das imagens apresentadas? Ou como seria a recepção do material no caso de total desconhecimento da maioria das imagens, como constatei nas primeiras apresentações em Portugal e posteriormente no Reino Unido? Reencenar para mim é voltar a contar, a trazer questões para a contemporaneidade que estão naquelas imagens individualmente ou na ligação feita pela montagem por mim criada. É do meu total interesse pensar como vários povos no Brasil foram oprimidos e colonizados e como essas imagens ainda são espelhos de uma história recente do Brasil e suas ligações com o mundo.
Contudo essa abordagem não adquire um peso moral perante o passado histórico, mas uma vontade de diálogo constante, pensando com o outro e para o outro, sem nunca deixar de lado a vontade de pertencimento. Reencenar pode talvez parecer um gesto antropológico, mas nunca será um gesto vazio.
PARA CITAR ESTE TEXTO
CADETE, Tiago. “Três Cartas aos Amigos, Sobre a Performance ‘ALLA PRIMA’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2017 eRevista Performatus e o autor
Texto completo: PDF