Quando as cortinas são fechadas ao final de uma peça teatral, uma ópera, um musical, uma sessão de cinema – de outrora –, um show pop star, ou mesmo um programa televisivo, significa que a “apresentação terminou”. Hora de ir para casa, desligar a TV, mudar de canal. Nos domicílios, as cortinas sinalizam certo desejo de privacidade. Na minha vizinhança, por exemplo, o costume é que cubram as janelas assim que o sol se põe. Há certa preocupação com os possíveis olhares vindos de uma “janela indiscreta”. Num vestiário de loja, o pano costumeiramente vermelho ou preto, protege a freguesa e o freguês de possíveis palpites indesejáveis sobre a roupa que se prova, é um momento íntimo e de muita expectativa sobre o modelito fashion: serve… não serve… Além disso, a etiqueta do bom comportamento em sociedade prescreve que não se deve despir-se em público. Deve-se vestir a peça dentro do provador. Caso a norma seja burlada, provoca-se um escândalo e corre-se o perigo de ser autuado pela polícia.
Uma pena que no dia em que as caravelas chegaram aqui estava chovendo. É como nos lembra o poema de Oswald de Andrade: “fosse uma manhã de sol/ o índio tinha despido/ o português” [1]. E, talvez, essa parca filosofia da cortina, da roupa, da nudez em público com a qual iniciamos este ensaio não fizesse sentido. Mas ela faz, todos sabemos. Sorte a dos artistas que não têm obrigação – pelo menos não deveriam – de criar elos com o estabelecido, o bem posto, o mercado e o civilizado. Na performance de Lucio Agra, chamada Vejo Tudo Nu, apresentada no evento “o que não é performance” (Centro Maria Antônia, São Paulo, Brasil, março de 2015), a audiência testemunhou o passeio público de um performer nu, devidamente coberto por uma cabine de provador de roupas. As cortinas estavam fechadas e o público nada via. Só que não.
Lucio Agra, Vejo Tudo Nu. Performance apresentada na cidade de São Paulo, Brasil. Março de 2015. Fotografia de Coletivo Sem Título, S.D.
Lucio Agra, Vejo Tudo Nu. Performance apresentada na cidade de São Paulo, Brasil. Dezembro de 2016. Fotografia de Grasiele Sousa
O que o Performer Viu?
Eu perguntaria: o que o artista tanto observa na própria vida para querer torná-la uma proposição artística? Uma resposta consagrada para essa questão é a ideia de que arte e vida influenciam-se mutuamente. Dessa maneira, o artista, ao compartilhar intencionalmente aspectos pessoais em sua obra, cria uma situação de “autotransformação” para si. É a arte como uma parceira de peso na tentativa de se tornar alguma pessoa que gostaríamos de experimentar vir a ser. E, para quem testemunha um “relato de vida” como uma experiência estética, se o efeito não é o mesmo, dado que a vida discutida ali não é a sua, arriscamos dizer que há alguma sensibilidade desperta, que é própria dos momentos em que se está diante da experiência do outro e, por conseguinte, que suscita uma reflexão sobre nossas formas de viver. Fruímos assim, arte como um exercício de alteridade.
Acrescentaremos a essa visão mais conhecida acerca do autobiográfico em uma experiência artística, algo particular e presente em Vejo Tudo Nu. Comecemos com o depoimento do próprio artista sobre o ponto de partida para a elaboração da performance,
Vedo nudo é o nome original em italiano para uma comédia erótica de 1969, cujo trailer assisti por acaso aos nove anos de idade, no Cinema Esperanto, em Petrópolis, provavelmente no começo dos anos 70. Eu devia ter pouco mais de dez anos, minha irmã uns sete. Nossos pais nos levaram para ver uma fita dos Trapalhões. O projecionista passou, em plena matinê, dois trailers de comédias eróticas: Vejo Tudo Nu (ou Vedo Nudo) era uma comédia erótica italiana de Dino Risi estrelada por Nino Manfredi lançada em 1969, e, outra, La Matriarca, cujo nome em português era O Mando É das Mulheres, de 1968, dirigido por Pasquale Festa Campanile com Catherine Spaak. [2]
Nudez, erotismo, conteúdo impróprio para crianças de nove anos. Ressaltando estes aspectos daríamos argumentos plausíveis àqueles que já adultos se deitam no divã a fim de buscar nas lembranças da infância pistas para decifrar a falta, o erro, o trauma sofrido. Só que não vemos esse intento na performance de Lucio Agra.
Já dizia o poeta Wally Salomão que “a memória é uma ilha de edição” [3]. Dessa maneira, confia-se nela como uma usina que não para de produzir sentidos para o vivido, ao passo que desconfiamos da sua versão como um teatro da verossimilhança, capaz de representar infinitas vezes a mesma cena da vida. [4] Estamos desviando da relação causa-efeito na recuperação de uma memória de infância por um artista, porque em Vejo Tudo Nu temos uma operação de natureza mais conceitual que psicológica, notoriamente herdada de nosso “paizinho crossdressing” da arte contemporânea, ele, o Marcel Duchamp. Lucio trata suas memórias como uma coleção de ideias, como materiais que um dia, ressignificados, lhe renderão um poema, um texto, uma performance.
Da situação cinema, fita erótica, infância, passamos para “uma ação na qual estou ‘vestido’ com um dispositivo cilíndrico de pano preto que impede totalmente a visão do meu corpo, ainda assim permitindo que eu veja o que se passa fora do dispositivo.” [5] Seguimos com o cinema de Vejo Tudo Nu.
Do Cine Esperanto ao Teatro-Portátil de Otávio Donasci Para Vejo Tudo Nu
Pessoas adeptas à solução de eventos quaisquer por meio de uma gambiarra tendem a colaborar de forma generosa com aqueles que valorizam essa “ciência dos trópicos”. Esse é o caso de um dos nossos “professores pardais” da arte contemporânea brasileira, Otávio Donasci. Ele propôs a Lucio que tal aparato para sua performance fosse realizado com a adaptação de um provador de loja acoplado a uma mochila. Depois de algumas horas em uma tarde qualquer passadas nos arredores da movimentada rua 25 de março, no centro da cidade de São Paulo, Donasci encontrou tudo que precisava e, no seu ateliê, voilà!, deu à junção do vestiário à mochila outra função, pouco utilitária e, por isso, muito artística: aos nossos olhos pareceu uma espécie de teatro-portátil para acontecimentos ambulantes. Imagine que a cortina que envolve a armação do trocador sugere aquela que vemos separando palco e plateia.
Ficou para Lucio, então, o desafio de apropriar-se dessa cabine para ações em público, nu como queria, e, com a prerrogativa de ver todos à volta, ao passo que ninguém o percebia despido. E, claro, fazer uma performance ao invés de teatro. Sua ação foi caminhar por uma das áreas externas do edifício do Centro Universitário Maria Antônia da Universidade de São Paulo, enquanto realizava a leitura ininterrupta do índice onomástico do renomado livro A Arte da Performance, de RoseLee Goldberg [6].
Com seus quase-cinemas Cosmococas (1973-1974), Hélio Oiticica e Neville D’Almeida propunham ao espectador do cinema de tradição narrativa certo descondicionamento de sua postura contemplativa. Ver uma projeção em tela, enquanto se está deitado em um colchão, lixando as unhas ao ritmo de Luiz Gonzaga é uma espécie de manifesto para renovação das convenções comportamentais e estéticas da sétima arte. Sabemos que da fonte Hélio Oiticica, muitos artistas brasileiros ainda bebem e, no caso do dispositivo cilíndrico de pano preto de Agra, coincidência ou não, encontramos certo diálogo com essa forma de se manifestar contra a passividade do público diante da obra. Lucio está nu dentro da cabine, e para descobrir isso basta abrir as cortinas desse teatro-portátil. Algo que é fácil e que não será impedido pelo artista se o fizerem. Até o momento, a performance Vejo Tudo Nu foi realizada cinco vezes e ninguém ousou descerrar a cortina.
Um Exercício Contra-Retiniano Para a Audiência
Nos idos de 1968, os arredores do prédio da USP Maria Antônia ficou conhecido por causa da histórica “Batalha da Maria Antônia”. Sabe-se que o estopim foi a discordância de alguns estudantes sobre um pedágio cobrado para custear um congresso. No entanto, o conflito entre os grupos universitários vizinhos, USP e Mackenzie, refletia suas posições divergentes quanto aos rumos da política ditatorial da época.
No lugar onde aconteceu esse episódio que marcou gerações vimos uma convivência insossa. Assim aconteceu, durante a performance de Lucio Agra. Enquanto os “uspianos” estavam empenhados na realização desse evento cultural e artístico na área externa do prédio, os “presbiterianos” estavam ocupados com suas conversas de boteco, copos de cerveja, celulares e cigarretes em geral. Eles não pareciam ver o Vejo Tudo Nu. Só que esta não é uma performance para se ver…
Quando Marcel Duchamp elegeu um objeto de escala industrial como obra artística, “inaugurou” uma nova forma de realizar e pensar arte no mundo ocidental. Aquilo que a pintura transmitia de forma acabada ao público deu lugar a uma proposição de natureza mais intelectual que visual. Tornar a obra indiferente aos olhos era uma forma de recusa a certa passividade do público, que agora poderia – deveria! – propor sentidos para o jogo de ideias inventadas pelo artista. É assim que Lucio, como também Hélio Oiticica e parte da produção da arte ocidental a partir do século XX, propõe fazer arte.
Recapitulando Vejo Tudo Nu: uma cabine envolta em um pano preto desfila na parte externa do edifício; dentro há uma pessoa nua que não é vista assim, todavia, por causa da transparência do tecido, ela vê o público. No ato, a pessoa nua dentro da cabine lê o índice onomástico de um renomado livro sobre performance.
Ao nosso ver há, no mínimo, dois jogos de ideias nessa ação de nudismo. Um relacionado aos interessados na discussão sobre performance brasileira e o outro voltado a qualquer um que tenha curiosidade de saber o que há atrás de uma cortina. Dentre a lista de mais de cem artistas citados na publicação de RoseLee Goldberg, os brasileiros aparecem apenas duas ou três vezes. Ao acompanhar a leitura do performer, era possível concluir tal discrepância encontrada entre estrangeiros e brasileiros no livro em questão. Para isso, as audiências deveriam selecionar de toda a barulheira do entorno apenas a voz de Lucio e meditar sobre a monotonia instalada no espaço com a leitura dessa lista, salvo as poucas vezes em que o nome de um artista brasileiro foi dito. Toda essa ladainha objetivava desnudar nossa “relevância” num cenário mundial da performance. Ainda bem que os esforços para criar versões alternativas e mais “reais” de nossa história com essa linguagem estão em curso e já sabemos que ela começa com uma certa caminhada contra uma procissão na década de 30 do século XX.
E sobre desvelar o corpo nu? Digamos que esta é a parte em que o artista não demonstra nenhum controle do que pode acontecer quando sua figura for descoberta assim, sem roupa alguma. Vamos ter que aguardar o momento em que isso aconteça para dizer algo. Entretanto, é impossível não fazer um exercício mental acerca das reações que a vizinhança “mackenziana” suscitaria: o problema do nu no espaço público, o risco da prisão do performer, a imoralidade do corpo desvestido perante Deus. São muitas as voltas labirínticas que o tema do corpo e sua “liberdade” tensionam na arte da performance.
Não sabemos também, como é a visão do performer dentro da cabine durante a ação. O que sabemos pelo próprio artista é que há o iminente risco de tropeçar num degrau, bater num pilar ou algo semelhante. Em realidade, ele não pode ver tudo que está fora. A catástrofe e o fracasso ainda permeiam algumas experimentações artísticas no contemporâneo; Flávio de Carvalho com seu boné verde atravessando uma procissão e Lucio com seu trocador de roupas ressignificado como arte são “prova” disso. Viva a ousadia daqueles que não se desviam de suas ideias, absurdas ou não, materiais futuros para contarmos a história da arte de nossa cidade, de nossa época. [7]
NOTAS
[1] ANDRADE, Oswald de. Obras Completas, Vol. 6-7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
[2] Texto cedido pelo artista.
[3] SALOMÃO, Wally. Gigolô de Bibelôs. São Paulo: Editora Rocco, 2008.
[4] Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2000.
[5] Texto cedido pelo artista.
[6] GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance: Do Futurismo ao Presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[7] Texto originalmente publicado no catálogo “O que não é performance?” (2016). Organização e edição de Ana Roman, Lara Rivetti, Thiara Grizilli e Thierry Freitas.
PARA CITAR ESTE TEXTO
SOUSA, Grasiele (Grasiele Cabelódroma). “Vejo Tudo Nu, #sqn”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2017 eRevista Performatus e a autora
Texto completo: PDF