Ayrson Heráclito: Performances, Espaços e Ações

 

Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer […]

Michel Foucault (2009, p. 133)

 

Ayrson Heráclito Novato Ferreira – Ayrson Heráclito – nasceu na cidade de Macaúbas, Bahia, em 1968. Licenciado em Educação Artística pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), onde também estudou música e trabalhou como professor. Concluiu o Mestrado em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1997. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Artista visual com experiências como performer, desde a década de 1980 vem pesquisando e realizando performances e ações. Exemplos dessas primeiras produções são: As Meninas (1988); O Crepúsculo do Ritmo (1989); e O Homem Estético (1990).

Em recente publicação (REBOUÇAS, Júlia; VOLZ, Jochen, 2016, p. 171), o artista assim definiu sua pesquisa e seus interesses no campo das ações:

 

Eu me considero um artista da ação. Durante muito tempo não pensava em termos de performance, mas hoje me enquadro nesse universo. Quando comecei a trabalhar, na década de 1980, tive contato com a obra de Joseph Beuys e fiquei encantado pelas concepções estéticas e pedagógicas do artista, por seu conceito de escultura social. Beuys não gostava de ser definido como artista da performance, pensava em uma ação direta no mundo, e a performance seria uma instância intermediária. Assim, durante muito tempo, não encarava meu trabalho como performance, mas como uma ação que se ativava por situações, estas elaboradas a partir de questões e da manipulação de materiais. Os objetos e as instalações geradas eram uma produção residual dessa ação. Ou atuavam como uma estratégia para estender o tempo da ação […].

 

Na década de 1980, em Salvador, Ayrson Heráclito formou, com Celso Jr. (arquiteto), Dora Araújo (artista plástica) e Mônica Medina (atriz e artista plástica), um grupo de estudos cujos objetivos eram pesquisar a linguagem da performance, refletir seus conceitos, apresentar e estimular “sensações” e construir imagens no universo das artes plásticas. O grupo tinha como referências artísticas e teóricas os Neoconcretistas; John Cage; Laurie Anderson; o movimento punk; Novos Dadaístas; Stéphane Mallarmé; Michel Foucault; Antonin Artaud; Flávio de Carvalho; Gerald Thomas; a cultura popular. Segundo Ayrson Heráclito, àquela época aconteciam diversas apresentações na cidade, propostas interdisciplinares voltadas para a pesquisa das fronteiras entre dança, teatro, música, artes plásticas. No entanto, o principal objetivo do grupo era o de pensar e realizar performances no universo das artes visuais, lançar um “olhar plástico” sobre o corpo e as ações. Ayrson Heráclito nos declarou que:

 

o que era apresentado como performance na década de oitenta era dança diferente […] [como] eventos multimídias, mas que não se focava no corpo do artista […] influência de Pina Bausch também nesse período, todas aquelas técnicas de repetição que ela propunha, estudava, em relação à dança expressionista […] a dança com conteúdo. (FERREIRA, 2003)

 

Entre os anos de 1984 e 1985, numa de suas primeiras ações artísticas no espaço urbano, Ayrson Heráclito descreveu que descoloriu o cabelo e saiu às ruas com o novo visual, despertando curiosidade e criando uma tensão muito grande na relação com os transeuntes. Nesse mesmo período, Mônica Medina já se identificava com o texto poético e as ideias do Teatro do Oprimido do diretor Augusto Boal, trazendo para sua atuação no grupo uma vivência no universo teatral, principalmente as referências da dramaturgia. A partir desse contato interdisciplinar, os artistas levantaram questões a respeito da representação, da não atuação, do estreitamento das fronteiras entre arte e vida nas propostas artísticas.

 

O que distanciava [a performance nas artes visuais das demais expressões artísticas] era a questão do jogo material da cena […] do evento, da intervenção, então, a gente já se apresentava mesmo, não representava, mesmo tendo alguns elementos simbólicos na cena […], mas era mais uma apresentação do corpo interferindo sobre algum aspecto, era uma apresentação material mesmo, não existia um jogo de representação como existia no teatro, também não era algo pra ser interpretado, era algo pra ser sentido sensorialmente. (Ibidem)

 

Fotos 1 e 2: As Meninas, 1988. Acervo pessoal do artista

 

A performance mais significativa do grupo, segundo Ayrson Heráclito, foi apresentada na Capela do Museu de Arte Moderna (MAM) da Bahia, na abertura da primeira exposição individual do artista. Pinturas, objetos, instalações, leituras fizeram parte da mostra de título: “No Limite da Sagrada Família” (1988), com a apresentação da performance As Meninas (Fotos 1 e 2) – uma referência ao famoso quadro do pintor Diego Velásquez e ao texto de Michel Foucault sobre esse mesmo quadro, onde o jogo de espelhos, autorretrato do pintor e alusão à presença do espectador frente à pintura são abordados. A performance apresentada na abertura da exposição foi iniciada às dezoito horas e finalizada, pontualmente, às vinte horas para que os artistas pudessem assistir à “novela das oito”, ainda na galeria, sem a participação do público. Com essa mostra, os performers pretendiam chamar a atenção para a forte presença da televisão no cotidiano da população brasileira. Na época, novelas de sucesso como Vale Tudo (1988), que também tratava de questões relativas à corrupção no país, prendiam a atenção da audiência nacional com a incógnita: “Quem matou Odete Roitman?”. Após cada episódio, a população comentava e debatia as cenas novelísticas transmitidas pela Rede Globo – o que não mudou muito em nossos dias, em plena revolução tecnológica.

Numa referência às produções sonoras de John Cage, aparelhos de rádios foram sintonizados em estações diversas. Como os artistas tinham a proposta de estreitar as fronteiras entre arte e ações cotidianas, eles não utilizaram uma iluminação cênica ou especial. O que interessava a Ayrson Heráclito era justamente despertar no público as mais diversas “sensações” a partir das imagens apresentadas: “signos que desencadeassem reações”. Nessas ações específicas, os performers manipularam caquis, caixas para ovos, água, além de outros elementos, entre duas grandes molduras em madeira – mais uma referência ao universo das artes plásticas e à utilização da perspectiva na pintura clássica – com o objetivo de apresentar uma crônica sobre o culto à televisão. Os artistas também faziam referências aos ícones religiosos judaico-cristãos e mitológicos greco-romanos; às cenas do Apocalipse; às produções dos grandes pintores da História da Arte Universal.

 

Foto 3: Cor-Corpóreo, 1989. Fotografia de Isabel Gouvêa. Acervo pessoal do artista

 

No ano de 1989, os artistas participaram da IX Oficina Nacional de Dança Contemporânea, concorrendo na categoria performance com duas apresentações no foyer do Teatro Castro Alves. Após a seleção dos trabalhos inscritos, os remanescentes do grupo, Ayrson Heráclito e Mônica Medina, foram selecionados e premiados com a performance intitulada O Crepúsculo do Ritmo, denominada pelo público como a “dança das garrafas”, e a instalação/performance Cor-Corpóreo (Foto 3), esta com a participação de outros artistas. Nessa última obra, os performers vestidos com macacões e luvas dançaram sobre uma plataforma branca, registrando as marcas de seus movimentos com a utilização de pigmentos. Certamente uma influência da pintura neoexpressionista e gestual, da Action Painting de Jackson Pollock, das Anthropométries de Yves Klein.

 

Fotos 4 e 5: Ayrson Heráclito e Mônica Medina, O Crepúsculo do Ritmo, 1989. Fotografias de Isabel Gouvêa. Acervo pessoal do artista

 

Ainda com a proposta de aproximação das fronteiras entre arte e vida, vida privada e vida pública, intimidade e espetáculo, Mônica Medina e Ayrson Heráclito utilizaram em O Crepúsculo do Ritmo (Fotos 4 e 5) recursos de vídeo para projetar cenas de um café da manhã cotidiano na vida do casal, ao mesmo tempo que apresentaram em performance esta ação matutina ressignificada. Mônica Medina vestia uma camisola e usava uma máscara facial, já Ayrson Heráclito usava pijama, óculos escuros, desenhava com creme de barbear e raspava o cabelo, enquanto bebia vodca misturada ao leite e ao café. Em poucos minutos, os performers consumiram todo o conteúdo da garrafa de bebida juntamente com biscoitos, geleias, chás. Os artistas, que naquela época não consumiam bebidas alcoólicas, ficaram embriagados durante a performance que durou uma hora aproximadamente. Realizaram, também, ações imprevistas, surgidas ao acaso e sob o efeito do álcool, como beber e comer excessivamente, provocar o público, andar como quadrúpedes etc. Ações como essas os afastaram do contexto do café da manhã cotidiano uma vez que as regras de convivência e boas maneiras foram intencionalmente desrespeitadas. Sobre as movimentações e ações do corpo à mesa, Le Goff e Truong (2006, p. 139) nos informam que já na Idade Média “uma civilização do corpo instala-se com as artes da mesa e as boas maneiras”. Por fim, os artistas foram levados aos sanitários nos braços de halterofilistas, onde vomitaram em panelas plásticas enquanto a enfermeira que os acompanhava aplicava glicose em seus corpos ébrios. Com esse trabalho, os performers também colocaram em evidência a fragilidade humana; testaram os limites do corpo e a resistência do organismo sob a ação de substâncias químicas; demonstraram que nosso corpo é organicamente frágil em relação a elementos externos que interferem em nossos humores e reações.

Em O Crepúsculo do Ritmo ocorreu a ressignificação do cotidiano quando os registros em vídeo do real café da manhã do casal foram deslocados para o espaço da arte e os artistas apresentaram a ação reconstruída em tempo real. Ayrson Heráclito declarou que a reação do público foi de total estranheza e dúvida – aquilo era simulação ou fato? Representação ou realidade? Os artistas buscaram, através da ação apresentada, refletir sobre as fronteiras entre arte e vida, apresentação e representação. Também definiram esse trabalho como happening, intervenção. No entanto, acreditamos que a descrição de tal proposta artística se aproxima muito mais do gênero performance do que do happening, uma vez que o público assumiu a posição de mero observador, não participou nem interferiu efetivamente para a construção da obra.

 

Allan Kaprow, em 1984, em Salzburg, me declarou que apenas Wolf Vostell e ele faziam happenings, segundo a concepção dele de happening, que, para uma obra de arte ser considerada happening, necessita sine qua non da participação do público. (MEDEIROS, 2005, p. 131)

 

Fotos 6 e 7: Ayrson Heráclito e Mônica Medina, O Homem Estético, 1990. Acervo pessoal do artista

 

Na abertura da exposição coletiva “Das Estrelas ao Asfalto” (da qual também fizeram parte Cláudio Dos e Patrick Mina), na Galeria Manuel Quirino do Museu de Arte da Bahia (MAB), a performance intitulada O Homem Estético (1990) (Fotos 6 e 7) foi apresentada por Ayrson Heráclito e Mônica Medina. A proposta de levar produções de arte contemporânea para um museu dedicado à conservação e exibição de pinturas em estilo mais tradicional já causava um estranhamento para o público daquele local, principalmente durante a apresentação da performance. Os artistas ficaram durante uma semana trabalhando dentro do museu com saídas somente para o descanso noturno. Todo o processo de montagem da exposição foi acompanhado pelos visitantes. A performance foi caracterizada pela referência à “dimensão dos materiais” na obra do artista alemão Joseph Beuys, às teorias marxistas, com a utilização de técnicas da meditação oriental. Segundo Ayrson Heráclito, a ação sintetizou a ideia de que, ao superar as necessidades básicas, o ser humano poderá se dedicar ao prazer estético, “o homem estético é aquele homem que consome produtos estéticos”. Os artistas estavam apresentando uma “utopia” em performance, pois essa imagem de um criador vivendo em estado de contemplação, usufruindo do prazer estético e do ócio criativo, estava (e ainda está) muito longe da realidade dos artistas plásticos brasileiros, principalmente dos artistas nordestinos e soteropolitanos. Sobre os objetos criados pelo artista para o evento, a crítica de arte Matilde Matos (1990) afirmou que “no trabalho de Ayrson Heráclito há a preocupação em ajudar o homem a se descobrir, através dos seus objetos […]”.

Já com um roteiro definido em relação às ações a serem apresentadas, os artistas se posicionaram dentro da instalação criada com diversos elementos, os “treze itens para o trabalho humano”: martelos, andaime, pintura com o desenho de um poço, pigmento, balde, bacia, cristais, óxido de ferro, mica moscovita, tecido, tijolos etc. No primeiro movimento, Mônica Medina lançou cristais de quartzo dentro de um balde com água com o objetivo de chamar a atenção do público para a relação entre os materiais e o ritual de purificação que naquele momento fora iniciado. Logo após, a artista derramou a água dentro de uma bacia preenchida com óxido de ferro e mica moscovita (minerais utilizados em sua produção, associados ao trabalho humano e à condensação de energia), deixando as marcas das mãos besuntadas com essa mistura sobre um tecido.

Uma “não ação” determinou a principal imagem dessa performance: os artistas permaneceram durante trinta minutos sentados nas cadeiras, envolvidos por fios de cobre espalhados pelos quatro cantos da sala de exposição de onde originavam leves descargas elétricas. No piso, embaixo das cadeiras e dos pés dos artistas, o mineral mica moscovita tinha por função “condensar a energia criativa” no corpo do próprio “homem estético”. Durante os primeiros momentos da performance, gravações sonoras como uma das composições de Arnold Schönberg [1] e o som de marteladas sobre uma bigorna foram escutadas. A performance foi finalizada com a saída dos artistas do ambiente da instalação enquanto o público ouvia uma voz gravada a repetir em dezesseis diferentes idiomas: “Como você está?”; “Como você está se sentindo?”

A partir da década de 1990, o artista passou à exibição de ações em detrimento das performances ao vivo (linguagem que o artista já considerava inadequada para o que pretendia comunicar), e iniciou a pesquisa de alguns materiais orgânicos e efêmeros por natureza. Ayrson Heráclito exibiu açúcar como obra; pintou com azeite de dendê; desfilou figurinos elaborados com carne de charque em passarelas de moda e vias públicas. Àquela época, seu interesse estava voltado para o caráter dinâmico da obra, o processo de decomposição e modificação dos materiais sob a ação do tempo. A utilização desses materiais transitórios e perecíveis por natureza traduz o interesse do artista contemporâneo na busca de matéria-prima e suportes distintos daqueles mais tradicionais como mármore, bronze, madeira, para a produção de objetos artísticos – a efemeridade da obra de arte é tão característica na contemporaneidade assim como a permanência dos materiais e o cultivo do ideal de beleza que foram valorizados no passado. Ayrson Heráclito fez a seguinte declaração sobre a utilização desses materiais em sua produção:

 

Sempre foi de meu interesse trabalhar com materiais “intermediários”, ou seja, materiais que promovessem uma associação direta com determinada temática e, ao mesmo tempo, provocasse uma ampliação de diversas outras interpretações. Constatei que alguns materiais poderiam ser interpretados de forma hegemônica por diversos grupos sociais locais como, por exemplo, os materiais utilizados nos rituais e na culinária afro-baiana. O azeite de dendê é um deles […]. (FERREIRA, 1997, p. 39)

 

Logo, percebemos que a escolha de determinados materiais por Ayrson Heráclito não é aleatória. Esses materiais estão carregados de significados de uma cultura negra, afro-brasileira, e também baiana. As ruas de Salvador têm cheiro de azeite de dendê, sexta-feira é o dia em que a comida baiana é servida na maioria dos restaurantes da cidade. O também chamado “óleo da palma” em continente africano é para o artista uma metáfora dos fluidos corporais, do sangue escravo derramado após os diversos suplícios aplicados à “carne negra”. Dessa maneira, Ayrson Heráclito desenvolve técnicas e procedimentos artísticos, dialoga com a história colonial da Bahia, principalmente com a poética de Gregório de Matos. O artista imprime em suas instalações e performances uma especificidade brasileira, baiana, soteropolitana; explora elementos da cultura africana em terras brasileiras e propicia o intercâmbio artístico entre África e Bahia, entre a capital baiana e o sertão nordestino.

 

Foto 8: Transmutação da Carne, 2000. Fotografia de Edgard Oliva. Acervo pessoal do artista

 

Outros exemplos de ações artísticas de Ayrson Heráclito são: Transmutação da Carne, performance apresentada no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (2000) (Foto 8) e Moqueca – O Condor do Atlântico, Museu de Arte Moderna da Bahia (2002) [2]. O projeto Transmutação da Carne teve sua origem no ano de 1994 com a apresentação da performance de título homônimo em 2000. Segundo Ayrson Heráclito, esse foi um projeto abrangente, “polifônico”, com uma proposta de intervenção social pensada para os espaços dedicados à exposição de obras de arte, como galerias e museus, as ruas da cidade de Salvador (Praça da Piedade e Estação da Lapa), além das passarelas de moda (Barra Fashion). Assistimos à apresentação da performance durante o evento Ação: Performance Art (2000), no Instituto Cultural Brasil-Alemanha. Esse projeto fez referências às diversas formas de violação ao corpo humano: do corpo negro no período da escravidão ao corpo dos perseguidos em tempos de ditadura militar no Brasil.

“Camadas” de sons, cheiros, temperaturas foram apresentadas nessa proposta artística a partir de ações como marcar a ferro as vestes de carne e andar sobre brasas com calçados feitos com o mesmo material orgânico, assim como as ações de cortar e assar a carne de charque (alimento muito consumido no nordeste brasileiro). Notamos que as ações representavam os suplícios públicos dos que foram torturados e queimados vivos no passado – a carne seca foi exposta como uma metáfora da própria carne humana, do corpo humano fragmentado, esquartejado. Durante trinta minutos, aproximadamente, o próprio artista, Everaldo Santana, Paulo César e Robson Lemos realizaram tais ações. Numa das galerias do Instituto Goethe, o público assumiu a posição de observador tão somente. Observamos, também, que algumas pessoas demonstravam uma atitude de estranheza frente às ações de marcar a ferro quente a carne bovina da mesma maneira que os negros escravizados foram estigmatizados por seus proprietários num passado não muito distante.

 

O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. (FOUCAULT, 2009, p. 36)

 

A narração das diversas técnicas de tortura praticadas por senhores como Garcia D’Ávila Pereira Aragão e Gabriel Soares de Sousa contra os escravos foi feita pelo artista Raimundo Áquila e apresentada no formato de compact disc. Os registros em vídeo da ação foram realizados por Danillo Barata. “A Bota” e “A Faca”, objetos produzidos com a carne de charque, assim como fogareiros, ferros em brasa, bacia, um cão de guarda enjaulado e aparelhos construídos em ferro – numa referência aos objetos de tortura – foram inseridos como obras na instalação/performance.

A preocupação social característica do projeto tomou forma ora nas ruas do centro de Salvador, onde o artista apresentou pessoas vestidas com os figurinos de charque, levantando questionamentos a respeito da fome presente do cotidiano de muitos brasileiros, ora nas passarelas da moda. Numa outra ação, a carne perecível, efêmera, que foi moldada aos corpos dos performers nas ruas, também foi “desfilada” nos corpos de modelos durante o Barra Fashion (evento de moda realizado na capital baiana, no Shopping Barra). Nessa proposta artística, cotidiano fashion e artes plásticas se misturaram, objetos artísticos foram descontextualizados, o público da galeria foi substituído por uma plateia do universo da moda. Na passarela, “cabides humanos”, carregando os trajes feitos com as carnes de um corpo de um animal, desfilaram ao som de música eletrônica e aplausos.

Distinções entre a realização de uma ação/performance como essa em espaços e contextos diversos são logo evidenciadas. Nas ruas, o transeunte foi apanhado de surpresa diante de um desfile de modelos com vestes de carne – reação não muito comum entre o público informado, frequentador de museus e galerias de arte. No espaço urbano, Ayrson Heráclito perguntou aos pedestres o que eles acharam da proposta artística, obtendo respostas relacionadas ao problema da fome no Brasil – o que, segundo o artista, revelou a “transparência do projeto”. Já na passarela do Barra Fashion, a apresentação do trabalho aconteceu no universo da moda, num ambiente criado para um público interessado nas novas tendências da estação e na apreciação de peças de vestuário. Nesse outro contexto, a reação do público/plateia frente às peças de carne se aproxima da forma como os transeuntes perceberam a mesma ação no espaço urbano. Ao final do projeto Transmutação da Carne, Ayrson Heráclito doou a quantidade de charque utilizada nas performances e ações para organizações beneficentes de Salvador, declarando as cartas de agradecimento enviadas pelas instituições como objetos artísticos.

Ayrson Heráclito reapresentou a Transmutação da Carne a convite da artista sérvia Marina Abramović no Sesc Pompeia em São Paulo, durante o evento Terra Comunal – Marina Abramović + MAI [Marina Abramović Institute], em 2015. Alguns aspectos associados ao conceito de “reperformance” podem ser discutidos ao cotejarmos as imagens em vídeo e fotografia do pretérito com as da mais recente apresentação. Para visualizar o que restou do efêmero dessa ação, acessar o site oficial do evento em <http://terracomunal.sescsp.org.br>.

 

Foto 9: Moqueca – O Condor do Atlântico, 2002. Fotografia de Edgard Oliva. Acervo pessoal do artista

 

Na instalação/performance Moqueca – O Condor do Atlântico (Foto 9), o artista expôs uma arraia jamanta com 120 Kg como obra ao lado de uma mesa com diversos ingredientes utilizados no preparo da moqueca (comida típica baiana): tomates, cebola, azeite de dendê, coentro, leite de coco. No dia seguinte à abertura da mostra, ao som dos instrumentos de percussão encontrados nas ruas e Candomblés de Salvador, o grande peixe foi servido como alimento para aqueles que participaram da ação performática. Notamos que o ritual esteve presente durante toda a ação, desde o momento da exibição da arraia até o instante em que tal alimento foi servido e consumido. A relação com os rituais de oferenda nas diversas religiões, principalmente no Candomblé, foi evidenciada nessa performance, assim como a atmosfera festiva, de celebração coletiva, com a presença do artista, do público e de músicos convidados.

Ayrson Heráclito nos declarou que a pesquisa das relações entre arte/religião, arte/fetiche, tem sido uma constante nas produções mais recentes como na videoperformance Transmutação da Carne (2005). Nesse trabalho, imagens da performance de título homônimo e registros de ações foram editadas em formato digital e projetadas nas paredes do Museu Ludwig, em Koblenz, Alemanha, durante a exposição “Discover Brazil” (2005). Mais uma vez, destacamos o cuidado que alguns artistas contemporâneos têm em relação à escolha de materiais e suportes mais perenes para a produção e conservação de suas obras – preocupação esta ainda muito afinada com os ideais de uma arte modernista. Se por um lado a exploração dos diversos registros das performances como objetos artísticos (fotografias, vídeos, projetos etc.) garante ao artista praticidade e possibilidades de divulgação e absorção pelo mercado da arte, por outro, a própria presença do artista, no aqui e agora, com seus humores e ações está definitivamente comprometida, perdida no tempo…

 

 

NOTAS

[1] Arnold Schönberg nasceu em Viena em 1874. Inventou um novo sistema musical, o dodecafonismo ou música serial, combinando elementos da música erudita aos da música moderna e experimental.

[2] Ver o catálogo Espaços e Ações em FERREIRA (2003).

 

BIBLIOGRAFIA

FERREIRA, Ayrson Heráclito Novato. Ayrson Heráclito: depoimento [setembro de 2003]. Salvador: Aflitos, 2003. 1 cassete sonoro (60’). Entrevista concedida ao autor.

__________. Ayrson Heráclito: depoimento [janeiro de 2007]. Salvador: Jardim Baiano, 2007. Gravação em formato digital (31’55’’). Entrevista concedida ao autor.

__________. Espaços e Ações. Salvador: O Autor, 2003.

__________. Segredos no Boca do Inferno: Arte, História e Cultura Baiana. Instalação, 1997. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MATOS, Matilde. “Das estrelas ao asfalto”. A Tarde, Salvador, setembro de 1990, p. 11.

MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: Estética, Comunicação e Comunidades. Chapecó: Argos, 2005.

REBOUÇAS, Júlia; VOLZ, Jochen (Org.). TERRA COMUNAL: Marina Abramović + MAI: Catálogo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016.

TERRA COMUNAL: Marina Abramović + MAI. Programação do evento. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015.

TERRA COMUNAL: Marina Abramović + MAI. Sesc Pompeia, São Paulo. Site Oficial. Ver em: <http://terracomunal.sescsp.org.br>. Acesso em: 5 de dezembro de 2016.

 

 

José Mário Peixoto Santos a.k.a. ZMário é artista performático, professor e pesquisador da arte da performance, integrante do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos. Mestre em Teoria e História da Arte pelo PPGAV-UFBA. Doutorando em Poéticas Contemporâneas pelo PPG-Arte UnB, onde pesquisa a arte da performance sob orientação da Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros. 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

SANTOS, José Mário Peixoto (ZMário). “Ayrson Heráclito: Performances, Espaços e Ações”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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