No meio do caminho, em cujas extremidades encontram-se, distantes, a natureza e a cultura, encontra-se Hamlet, clamando para um deus morto: “eu quero ser uma máquina!”.
Até que a última cena termine – e ainda que seu drama não se realize –, ele irá blasfemar mais de uma vez, qual Donna Haraway, sua condição de humano e de personagem (persona, do latim, máscara): “eu era Hamlet”, afirma, imputando ao pretérito imperfeito uma condição ontológica aparentemente impossível; “não sou Hamlet”, aponta inaugurando a transição; e, no coração da liminaridade, o ex-Hamlet revela, “quero ser uma mulher!”, para, ao final, concluir que ser máquina é a única opção viável frente à inesgotável angústia de ser humano.
O Hamlet de Heiner Müller parece apontar para um outro problema que o Hamlet de Shakespeare, escrito na virada do século XVI para o XVII, aparentemente ignorava. A questão agora não é mais ser ou não ser, mas sim ser e não ser. Porque, diante da revisão que a antropologia contemporânea fez de si mesma, talvez não exista nem meio nem caminho entre a natureza e a cultura. Isto é: estabelecer essa oposição, clássico desdobramento de uma série de outras oposições centrais do debate filosófico (razão/emoção, logos/pathos, vermelho/negro), passa a ser visto com um olhar crítico por aqueles que respaldam a ciência até então preocupada em investigar essa relação. Neste ensaio, pretendo usar a figura do Hamletmáquina, peça do dramaturgo alemão Heiner Müller, como metáfora para discutir essa revisão crítica da antropologia.
Escrita em 1977, Hamletmáquina [Die Hamletmaschine] é uma peça-ruptura na dramaturgia de Müller, expoente do teatro alemão que viveu e produziu na República Democrática Alemã no auge da Guerra Fria. Censurado a princípio, o texto só foi montado dois anos depois de escrito, em um teatro em Saint-Denis, na periferia de Paris. O projeto desse texto surge quando é encomendada a Müller uma tradução do Hamlet de Shakespeare para o alemão. Movido pela obra original, em poucos meses o dramaturgo escreve sua releitura do clássico, dando origem a um texto contundente e sintético: em apenas nove páginas, as estruturas dramáticas tradicionais são abaladas irreversivelmente pelo personagem-título instável que inicia sua trajetória acompanhando o cortejo fúnebre do pai para, no final, voltar para dentro da armadura do genitor. Esse retorno à cova/ovo/casca paterna, entretanto, não cumpre uma função cíclica, mas ritualística: ao final do processo, a figura que começa como Hamlet termina como intérprete de Hamlet, denunciando uma espécie de anti-teatro, de reagregação às avessas, de desmonte: qualquer personagem começa e termina uma peça sendo ele mesmo, ainda que o teatro (que é ritual) o transforme. Algo muda, mas a identidade é fixa. Fenômeno diferente ocorre na peça de Müller: essa figura que começa essencialmente como “Hamlet” torna-se o “intérprete de Hamlet” depois de negar sua existência, questionar seu gênero e sua qualidade humana. Do original shakespeariano, mantém-se o esqueleto, a estrutura: cinco atos tornam-se, nas mãos de Müller, cinco quadros. São eles: “Álbum de Família”; “A Europa da Mulher”; “Scherzo”; “Peste em Buda/ Batalha pela Groelândia”; e “Espera Feroz/ Na Terrível Armadura/ Milênios”.
Proponho a investigação desses quadros na busca de ilustrar, por meio do conflito central estabelecido em cada um deles, um determinado aspecto de tensão ocasionado pelas novas teorias antropológicas.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Interrompo a escritura deste ensaio por um momento para dar conta de ler uma notícia que me chama a atenção: na terceira página do jornal diário, ao lado das notas sobre a crise política e sobre o final de um reality show culinário, a manchete urge: “robôs que fazem sexo ficam mais reais, e até já respondem a carícias” [Ver o texto de André Zara publicado no Jornal Folha de São Paulo no dia 05 de dezembro de 2015 em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/12/1715767-robos-que-fazem-sexo-ficam-mais-reais-e-ate-ja-respondem-a-caricas.shtml]. Impossível não pensar em Bruno Latour, para quem jamais fomos modernos, quando cita a leitura do jornal e seu consequente impacto na associação do hibridismo como característica indissociável desse projeto que o homem ocidental esteve empenhado em construir para diferenciar-se dos outros.
Multiplicam-se os artigos híbridos, que delineiam tramas de ciência, política, economia, direito, religião, técnica, ficção. Se a leitura do jornal diário é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos. Toda a cultura e toda a natureza são diariamente reviradas aí. (LATOUR, 1991, p. 8)
Mas não é à toa que este assunto – os robôs sexualizados e estimulantes – ganha minha atenção. É porque o sexo, talvez, seja o ponto crucial para o conflito que desloca Hamlet de sua letargia inicial. Um álbum de família, onde repousam sorridentes as imagens (ficções) que ilustram a base da sociedade ocidental, parece uma metáfora irônica encontrada por Müller para nomear o cortejo fúnebre em que o herdeiro sombrio dilacera o cadáver do pai – chefe de Estado – para distribui-lo entre os famintos, a fim de alimentá-los. Mas não só: nesse caixão vazio, Hamlet se deita para ouvir “o mundo girar no compasso da putrefação” enquanto, sobre sua superfície, o tio assassino e a mãe, viúva, mantêm relações sexuais.
Eu era Hamlet. Estava parado à beira-mar e falava BLA-BLA com a ressaca. Atrás de mim, as ruínas da Europa. Os sinos anunciavam os funerais nacionais: assassino e viúva um casal: em passo solene atrás do caixão do nobre cadáver os conselheiros, choramingando em luto mal pago. QUEM É O CADÁVER DO CARRO FÚNEBRE / POR QUEM TANTO SE CHORA E TANTO SE GRITA / O CADÁVER É DE UM GRANDE / HOMEM QUE DAVA ESMOLAS, nas fileiras da população, obra de sua política. ERA UM HOMEM QUE APENAS TOMAVA TUDO DE TODOS. Parei o cortejo fúnebre, forcei o caixão com a espada, a lâmina partiu, consegui abri-lo com o coto que sobrou, e reparti o procriador falecido CARNE VAI BEM COM CARNE às miseráveis figuras que estavam ao redor. O luto transformou-se em júbilo, o júbilo em voracidade, em cima do caixão o assassino trepou com a viúva PRECISO AJUDÁ-LO A LEVANTAR TIO ABRE AS PERNAS MÃEZINHA. Eu me deitei no caixão e ouvi o mundo girar no compasso da putrefação. (MÜLLER, 1987, p. 25)
O cadáver do pai – um grande homem que dava esmolas – distribuído entre a população faminta parece o anúncio do que está por vir: o fim da Guerra Fria e a desagregação das utopias construídas até então. Hamletmáquina foi escrito em 1977, mas parece apontar para o “miraculoso ano de 1989”, como o chama Latour, para quem todas as datas são convencionais, mas o respectivo ano é, talvez, um pouco menos convencional:
A queda do muro de Berlim simboliza, para todos os contemporâneos, a queda do socialismo […]. Ao tentar acabar com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após haver ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em grande escala. O recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome do qual a vanguarda do proletariado reinava, volta a ser um povo […], as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta nos dominam de forma igualmente global. (LATOUR, 1991, p.14)
Desse modo, a questão central desse primeiro quadro parece apresentar-se como a desestabilização da família/sociedade/Estado com a morte (o assassinato) da figura do grande pai, o Leviatã de Hobbes, a criatura cuja entidade se consolida por meio da concessão, da entrega passiva dos cidadãos ocidentais em prol da proteção que necessitam para que se mantenham vivos. Dessa instabilidade, berço da crise de Hamlet, enxergo um paralelo com a crise (podemos chamar assim?) da antropologia, cujo olhar, até então direcionado para os outros, passa a voltar-se a si mesmo no intuito de questionar-se. Mais ainda: o processo de simetria enunciado por Latour e também por Viveiros de Castro pode ser comparado ao próprio metateatro que se instaura no texto de Müller a partir do momento em que Hamlet anuncia sua crise disparadora: eu era Hamlet, frase que parece pressupor uma consequência inevitável: se eu era, não sou mais.
Aqui não farei mais que esboçar as linhas gerais de uma decomposição dessa ideia genérica de transformação. Interessa-me seu funcionamento dentro da antropologia “clássica”, aquela que estuda processos e estruturas característicos de coletivos situados em posição de alteridade (variamente especificável) em relação ao coletivo de onde emana o discurso do analista. Interessa-me, sobretudo, mostrar como as transformações do conceito de transformação em antropologia foram transformando o conceito de antropologia — donde nosso título. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 160)
A transformação do conceito de antropologia, a que se refere Viveiros de Castro (2012), é apresentada pelo autor como uma reflexão sobre os papéis desempenhados até então pela disciplina. Não se trata, ele aponta, de uma inversão da posição missionária e até certo ponto imperialista/colonialista que caracterizou essa ciência pelo menos em seu fundamento, e cujo ranço ainda se encontrava em sua prática recente; tampouco de uma compreensão romântica acerca dos povos tradicionais estudados, cuja ação desembocaria em uma negação do eu-antropólogo a ser preenchido pelas categorias de pensamentos que estão sendo estudadas. Viveiros de Castro propõe um “pensar com esses povos”. A conjunção deixa de ser alternativa para tornar-se aditiva: é o ser e não ser do Hamletmáquina, em vez das duas possibilidades antagônicas do protagonista de Shakespeare.
A EUROPA DA MULHER
O velho mundo me soa como um continente movido pela pulsão masculina. Se tivéssemos que encaixar a Europa em um dos lados da dicotomia, é certamente em companhia da cultura que ela se encontra. A América (Iracema), natureza a ser desbravada, pathos, acidente, emoção a ser controlada, segmentada e organizada, como de fato o foi pelos brancos europeus. Não somente sua geografia, mas também suas categorias de pensamento. Nas palavras de Marilyn Strathern:
Na cultura ocidental, o gênero pode de fato ser a metáfora fundamental que nos permite passar de um contraste entre o cultivado e o selvagem para um contraste entre a sociedade e o indivíduo, e imaginar que ainda estamos falando da mesma coisa (cultura e natureza). Ambos podem ser interpretados em termos de um contraste masculino/feminino – os homens são sociais e criadores/as mulheres são biológicas e infrassociais. Como escreve Mathieu, “[um] aspecto absolutamente fundamental das […] noções de ‘masculino’ e ‘feminino’ [em nossa sociedade] é o fato de que elas não implicam uma relação simples de ‘complementaridade’ […], mas sim uma oposição hierárquica”. (STRATHERN, 2014, p. 34)
Nesse contexto, entretanto, quem surge em cena é Ofélia, “aquela que o rio não conservou”. No original shakespeariano, Ofélia é a jovem adolescente que, perdida de amores e culpa, suicida-se no rio. Sua morte é informada pelo eufemismo da rainha Gertrudes, que a relata aos demais como um acidente ocorrido quando a jovem tentava alcançar as flores de uma árvore na beira do rio. A Ofélia de Heiner Müller, por sua vez, é o espírito vingativo, a suicida hesitante, “ontem deixei de me matar”, ela afirma, e de gênero oprimido torna-se ativa na realização de seus desejos: seu coração, antes um relógio, é por ela arrancado e:
Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. […] Vou para a rua, vestida em meu sangue. (MÜLLER, 1987, p. 27)
Impossível passar incólume por essa Ofélia guerrilheira, militante, que me faz lembrar de toda a antropologia cujo intuito principal é questionar a identidade de gênero previamente construída e concebida como natural. A associação imposta entre o sexo biológico e as categorias homem e mulher parece ter sido um dos focos das bombas lançadas por uma série de pensadoras-Ofélias, de Margaret Mead a Donna Haraway.
Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a classe são social e historicamente construídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade “essencial”. Não existe nada no fato de “ser mulher” que naturalmente “una as mulheres”. Não existe nem mesmo tal situação – ser mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, construída por meio de discursos científicos e outras práticas sociais questionáveis. (HARAWAY, 1985, p. 47)
Destruir os instrumentos de seu cativeiro (os instrumentos de sua casa), relaciona-se intimamente ao destruir do próprio espaço privado e da ideia de uma associação direta entre a categoria mulher e as relações decorrentes da associação entre cultura/natureza e masculino/feminino. Nesse âmbito, como apresenta Strathern (2012, p. 40), o feminino está associado ao ser, ao doméstico, ao confinado e ao passivo. Essa ruptura é, no mínimo, desestabilizadora: se não existe nada que assegure a estabilidade da categoria mulher, como afirma Haraway, e se aparentemente os pilares artificiais de tal categoria são destruídos violentamente por Ofélia, essa personagem agora torna-se instável: do contraponto que ela estabelecia com Hamlet (masculino-feminino), ela agora levanta-se da gangorra deixando-o caído sozinho no chão de terra do parquinho.
Rasgar as fotografias aqui é uma iconoclastia precisa: que são fotografias senão ícones, representações? Demoro-me sobre esse aspecto propositalmente, porque ele não é ingênuo: o álbum de família do início é também um álbum de fotos. E, mais adiante, o ato de rasgar uma fotografia surgirá novamente. Retomo Barthes, então, que alega:
Tal foto, com efeito, jamais se distingue do seu referente (do que ela representa), ou pelo menos não se distingue dele de imediato ou para todo mundo […]. Por natureza (é preciso por comodidade aceitar esse universal, que por enquanto apenas remete à repetição incansável da contingência) tem algo de tautológico: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo. (BARTHES, 2015, p. 15)
Quando Ofélia rasga as fotografias do homem que amou, são os próprios homens que amou – e que dela se serviram na cama, na mesa, na cadeira e no chão – a quem ela rasga, para fundar aí uma nova Europa: a Europa da mulher.
SCHERZO
O antropólogo-dramaturgo adentra um ambiente surrealista, descrito naquilo que um dia talvez tenha sido uma rubrica. Trata-se, no entanto, de uma etnografia (o que é uma etnografia senão um texto narrativo?), que diz:
Universidade dos mortos. Sussurros e murmúrios. Das suas tumbas (cátedras), os filósofos mortos atiram seus livros sobre Hamlet. Galeria (balé) das mulheres mortas. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. Etc. Hamlet contempla-as com a postura de um visitante de museu (teatro). As mulheres mortas rasgam-lhe as roupas do corpo. De um caixão erecto com a epígrafe HAMLET 1 saem Cláudio e, vestida e caracterizada de puta, Ofélia. Strip-tease de Ofélia. (MÜLLER, 1987, p. 27)
A tradução literal do nome desse quadro – “scherzo” – é “brincadeira”. Tradução, no entanto, é traição: scherzo é também o nome de um gênero musical, comumente associado a movimentos como a sonata, ou o minueto. “Scherzando”, quando rubrica para o pianista, indica uma performance graciosa, levemente caricata, como que “brincando ao piano”. O cenário surrealista em breve cederá lugar ao único momento dialético do texto: o embate entre Hamlet e Ofélia. Importante frisar que emprego o termo surrealista nos mesmos marcos em que o faz James Clifford:
Estou usando o termo surrealismo num sentido obviamente expandido, para circunscrever uma estética que valoriza fragmentos, coleções curiosas, inesperadas justaposições – que funciona para provocar a manifestação de realidades extraordinárias com base no domínio do erótico, do exótico e do inconsciente. (CLIFFORD, 2008, p. 122)
Ou seja: diante dessa colagem, dessa bricolage, em que filósofos mortos atiram seus livros (seus saberes) enquanto ao seu lado mulheres mortas dançam um balé funesto, Hamlet, o masculino instável, em crise, a cultura perdendo seu contraponto (Ofélia/feminino/natureza recém saída para a rua, banhada em sangue, deixando um rastro de fogo sobre o espaço privado) contempla os quadros como em um museu. Nesse momento, Hamlet faz as vezes de antropólogo evolucionista: parece contemplar os nativos e suas “esquisitices”, buscando elaborar relações paralelas entre o bracelete lukanu dos ndembo e o bracelete mwalli dos trobriandeses. Mas a quem ele observa são os filósofos (mortos) e as bailarinas (mortas). Que são tais ícones senão aspectos irremediáveis do homem ocidental (a retórica e a arte clássica)? A antropologia volta seus olhos para si mesma, e se enxerga com espanto.
Ofélia encara Hamlet e oferece-lhe seu coração para ser devorado, ao que Hamlet responde: quero ser uma mulher. Mas que é ser uma mulher, Hamlet? Retomemos Haraway: essa categoria por si só é instável, movediça. Talvez, para o efeito de elaborar uma rápida e grosseira hipótese, uma mulher é aquilo que não é um homem. Nesse caso, o personagem em crise (persona, do latim, máscara) busca encontrar-se com o avesso de si ao encarar por muito tempo o museu da modernidade ocidental. Hamlet, ao enunciar seu desejo, esconde o rosto entre as mãos. O que ele esconde é, na verdade, a máscara (persona) que está à beira de um trânsito.
Como temos uma preocupação com a forma, como oposição natureza-cultura tem sido relacionada a contrastes masculino-feminino, faz sentido questionar se estamos lidando com modelos exclusivamente masculinos ou femininos. Ardener levantou essa questão (1972) ao sugerir que os homens têm uma predisposição específica para traçar fronteiras. (STRATHERN, 2012, p. 41)
Esse trânsito, entretanto, só é possível porque seu reverso (Ofélia) também havia anteriormente transitado. Diante da fúria da natureza que rompe o cativeiro que lhe foi imposto, temos a cultura que nega a si própria, buscando um novo alicerce ontológico que até então lhe era inferior. O que se passa é que neste momento da peça – e do conhecimento antropológico – as categorias “cultura” e “natureza” são também instáveis. De certo modo, estamos falando da liminaridade que apontava Turner em seu processo ritual, mas com um olhar diferente: não há mais uma certeza de reagregação como fase final, qual Van Gennep enunciava. É do centro do caos que a voz do ex-Hamlet clamará por socorro.
PESTE EM BUDA/ BATALHA PELA GROELÂNDIA
Os dois polos de uma mesma cidade, Budapeste, recortada pelo rio Danúbio. Ainda sim, a mesma cidade: ex-Hamlet e Ofélia-ensanguentada são inseparáveis. De fora, a acepção dos modernos: nós habitamos esse grande espaço em que coabitam a sociedade e a natureza. O espaço, nos assegura a narrativa etnográfica do autor-Müller, está destruído por Ofélia. Resta apenas uma armadura vazia, com um machado preso ao que seria o capacete (o cadáver do pai se foi, a dissolução do Estado, restam somente as provas do crime).
Não sou Hamlet. Não represento mais nenhum papel. Minhas palavras já não me dizem mais nada. […] Atrás de mim monta-se a cena. Por pessoas às quais o meu drama não interessa […]. A mim ele já também não interessa. […] O meu drama não teve lugar. O texto perdeu-se. Os atores penduraram seus rostos no gancho do vestiário. […] Na solidão dos aeroportos Eu respiro aliviado […] (fotografia do autor) Não quero mais comer beber respirar amar uma mulher um homem uma criança um animal. Não quero mais morrer. Não quero mais matar (rasga-se a fotografia do autor). […] O meu cérebro é uma cicatriz. Quero ser uma máquina. (MÜLLER, 1987, p. 29-30-31)
Impossível ouvir o apelo derradeiro do ex-Hamlet sem associá-lo imediatamente ao mito do ciborgue, blasfêmia e ironia, de Donna Haraway. Se outrora era na tentativa de reverter seu gênero que ele fiava sua esperança, agora é na busca pelo avesso de sua humanidade. Ainda sim, resta no clamor do ex-Hamlet um posicionamento conservador, que prevê, na existência não humana, a ausência de qualquer subjetividade. O ex-Hamlet quer ser uma máquina porque deseja não mais sofrer diante da miséria da humanidade. Mas que tipo de discurso lhe garante essa existência-máquina como sendo alheia ao sofrimento? É porque a máquina talvez contenha em si a ausência da dicotomia – e, por consequência, uma dialética intrínseca – que faria do Hamlet-ciborgue um ser autossuficiente.
O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Ele é oposicionista, utópico e nada inocente. Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue define uma pólis tecnológica baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos – a unidade doméstica. Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra […]. O principal problema com os ciborgues é, obviamente, que eles são filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não mencionar o socialismo de Estado. Mas os filhos ilegítimos são, com frequência, extremamente infiéis às suas origens. Seus pais são, afinal, dispensáveis. (HARAWAY, 1985, p.40)
Não é por acaso que o fantasma do rei que assombrava o jovem príncipe da Dinamarca e lhe era a principal causa de angústia, aqui, em Müller, sequer dá as caras. O pai do ex-Hamlet/Hamlet-ciborgue é um cadáver cuja carne ele dilacerou e entregou aos famintos sem hesitar.
Depois de tornar-se máquina, Hamlet-ciborgue rasteja pelo ambiente caótico para empreender uma ação. Importante lembrar que ele rasgou a fotografia do autor durante sua metamorfose. Do Autor (Deus) não resta nem mesmo o ícone. Antes de recolher-se para dentro da armadura de seu pai, ele racha com o machado as cabeças de Marx, Lênin e Mao. Pela primeira vez, essa figura obliterante empreende uma iniciativa, tomada pelo todo, movida por um corpo que funciona sem restrições ou sem impedimentos: é talvez o Corpo sem Órgãos (CsO) de que falam Deleuze e Guattari:
Continuum de todos os atributos ou gêneros de intensidade sob uma mesma substância, e continuum das intensidades de um certo gênero sob um mesmo tipo ou atributo. Continuum de todas as substâncias em intensidades, mas também de todas as intensidades em substância […]. O CsO é um campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria a torná-lo oco, prazer que viria a preenchê-lo). (DELEUZE e GUATARRI, 1996, p. 14)
Se de um lado a transformação de Hamlet, ao longo do texto de Müller, alcança um estado (instável) de CsO (já que não é categoria, mas pulsão) para resguardar-se sob o manto metálico que outrora pertencera ao pai, de outro, Ofélia-ensanguentada será calada, “sob o sol da tortura”.
ESPERA FEROZ/ NA TERRÍVEL ARMADURA/ MILÊNIOS
Sentada em uma cadeira de rodas, enquanto é enrolada dos pés à cabeça em ataduras por dois homens, Ofélia grita para as metrópoles do mundo que renega o mundo que pariu. Trata-se da natureza revoltada, a antinatureza, que não é a cultura nem tampouco a sociedade, mas sim a morte, ela própria, dona da vida e, por assim dizer, capaz de renegar sua existência. “Abaixo a felicidade da submissão!”, grita.
E se existe alguma tese neste ensaio, ela é essa: o não ser jamais nos foi dado como possibilidade, como hipótese. E o ser, nesse sentido, compreendeu desde sempre tanto a natureza quanto a cultura. Ser, para retomar Latour, sempre foi o híbrido. Mas o não ser, entretanto – a possibilidade de Ofélia –, só conhecemos no discurso e na linguagem, sem saber de fato que estado é esse. Para tal, talvez fosse preciso uma antiontologia. Entre o ser e o não ser, nunca houve essa real possibilidade. Afinal, jamais fomos Hamlet.
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Nova Fronteira, 2015.
CLIFFORD, James. The Predicament of Culture. Cambridge: Harvard University Press, 1988. [Trad. port.: A experiência etnográfica. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008. Cap. 4: Sobre o surrealismo etnográfico].
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, Volume 3. São Paulo: Editora 34, 1996.
HARAWAY, Donna. “A Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the 1980s”. Socialist Review, v. 80, 1985. [Trad. port.: Antropologia do ciborgue. São Paulo: Autêntica Editora, 2009].
LATOUR, Bruno. Nous N’Avons Jamais Été Modernes. Paris: La Découverte, 1991. [Trad. port.: Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994].
MARCONDES, Renan. Breve “Apontamento sobre Hamlet-Ofélia em ‘Hamlet-Máquina’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014.
MÜLLER, Heiner. Quatro Textos para Teatro: Mauser, Hamlet-Máquina, A Missão, Quarteto. São Paulo: Editora Hucitec, Associação Cultural Bertolt Brecht, 1987.
STRATHERN, Marilyn. O Efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2014. [Cap. 1: Sem natureza, sem cultura: o caso Hagen].
TURNER, Victor. The Ritual Process. Ithaca: Cornell University Press, 1966. [Trad. port. O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes, 1974, Cap. 3: Liminaridade e Communitas].
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Transformação ‘Na Antropologia’, Transformação ‘Da Antropologia’”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 1, 2012.
PARA CITAR ESTE TEXTO
SÁ FERNANDES, Leonardo de. “Jamais Fomos Hamlet”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor
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