Perfor6 de [Quem] a [Quem]

 

A experiência vem demonstrando há muito tempo que a organização de um Festival de Artes é, ela mesma, um experimento artístico. Não foi outra a conclusão a que chegou, em 2014, André Bezerra na sua dissertação de mestrado [1] que apresentava análise e investigações em torno do festival de performance “Circuito Bode Arte” que seu coletivo, ES3, organizou em Natal (Rio Grande do Norte, Brasil) durante os anos que antecederam a pesquisa. E certamente essa não é uma ideia nova: organizar festivais de performance é fazer performance de certo modo específico. Se não cito outros autores/produtores de festivais que tenham chegado a essa constatação é porque, de fato, desconheço esses estudos. Mas acho uma vantagem termos um brasileiro próximo de nós e sabermos como registrou e pensou o modo de produção da performance entre nós.

Já dissemos também, em outras ocasiões [2], que quando começamos a fazer o Perfor, há cinco anos, em 2010, havia poucos festivais. E o fizemos, entre outras coisas, para sabermos quem éramos nós.

A pergunta-guia do Perfor6, [quem?], era justamente um intento de recuperar essa indagação no novo ambiente em que se transformou a cena de performance no Brasil, espalhando-se por todo país e conquistando uma visibilidade inédita fora dele.

Tudo isso que escrevi acima tornou-se uma espécie de refrão repetido exaustivamente ao longo do Perfor6.

Era o que prevíamos. Mas o resultado superou amplamente as expectativas. Três mesas – um número que só acontecera no Perfor1 – discutiram animadamente e com polêmica até mesmo o próprio conceito de Festival. Eu diria que esse se tornou um tema sob o tema. Pensou-se nos outros modos de difusão e organização da performance, pôs-se em dúvida inclusive a sua própria “ontologia” [veja a programação completa e mais detalhes em nosso blog: http://brasilperformance.blogspot.com.br/].

As performances, por outro lado, desafiaram os próprios locais de realização, por seu deslocamento espacial e subjetivo, fosse no extraordinário porão do Paço das Artes (ou no seu entorno), fosse no Largo da Batata. As duas noites revelavam as duas estratégias principais de apresentação de performance: o “espaço expositivo”, “performático” (já distante do cubo branco mas isolado da cidade) e a rua, com suas imprevisibilidades, mas, nesse caso, também, com um histórico de ocupação para atividades culturais que tornavam o acontecimento, de certo modo, previsível.

Entretanto, num e noutro caso, o que se viu foram situações tão singulares e uma tamanha diversidade que seria possível imaginar, contrariando nosso próprio prognóstico, algumas performances do Paço no Largo e vice-versa.

Desse ponto de vista, cumprimos um percurso que nos agrada muito: viemos da rua (Perfor4), passamos pela galeria e pelo porão do Paço (Perfor5) e voltamos ao porão no Perfor6, retornando, em seguida, à rua. Afirmamos essa possibilidade, discutimos sua dimensão ao propor as ações dessa forma.

No último dia, depois de um passeio de bicicleta que evocava Alfred Jarry, o patafísico autor de Ubu-Rei, antecipador da performance, do DADÁ e do surrealismo, fomos para a Phosphorus/Galeria Sé, no centro histórico de São Paulo, próximos ao Marco Zero da cidade, para o encontro com os veteranos. Esse era um projeto pelo qual também lutávamos fazia tempo. Não conseguimos que todos estivessem presentes; de última hora, José Roberto Aguilar não pôde comparecer [3]. Mas Guto Lacaz e Otávio Donasci contaram suas trajetórias em um tempo sem festivais e editais. Na mesma mesa ainda tivemos o privilégio e a honra de contar com Nancy Gewölb (Chile), que imprimiu à sua fala uma conotação muito interessante, ligada à contracultura e aos movimentos de resistência à ditadura em seu país.

Com isso, conseguimos traçar um panorama do agora no Brasil (no primeiro dia), do agora na América Latina (no segundo) e do legado histórico continental. Não é pouca coisa para quem só contava com material de estudo trazido do Hemisfério Norte há até bem pouco tempo.

Esse também foi – de todos os Perfor – o que mais acentuou as visões antagônicas. Nas performances estavam presentes uma pluralidade de modos de realizar que pertenciam desde a tradição da modificação corporal (Thiago Soares) à performance conceitual (Alexander del Re e Alejandra Fuentes), das questões políticas e de gênero (Henrique Seidel, Corpos Insanos e mesmo Nathalie Fari) à tradição ligada à poesia (José Roberto Sechi, Paul Coulliard); tivemos a estreia, no Largo, do minimalismo de Manuel Vitor Nóbrega, com seu corpo magérrimo, um prato de farinha e uma garrafa de água e tivemos, no Porão do Paço, a extensa refrega de Marco Biglia com o gigantesco porco que trouxe para sua ação. Tivemos a tocante performance de Nancy Gewölb em torno à memória e ao esquecimento, e a presença inesquecível – novamente – da bicicleta de Guto Lacaz, a multiplicar rodas geométricas à sua volta.

Ainda no Paço, a veterana Thaise Nardim (Palmas, Tocantins), pesquisadora, curadora de festivais e performer, desafiou o público com seu Teatro de Vidro – ação #2, com apenas três elementos (corpo nu, açúcar, travessas de vidro) e muitas sugestões. Atravessando tudo, em meio a tudo, estava o Corpos Informáticos, presença que busca o incômodo, diálogo, composição ou confronto. O “Corpos” não define mais seu trabalho, nem com títulos. Age, fiel ao seu mais estrito espírito de “fuleiragem”.

A presença incômoda e desafiadora do Coletivo ?, já veterano de nossos festivais, assim como Tales Frey (Cia. Excessos), que nos brindou com um beijo especular e perturbador, em companhia de Majú Minervino. Tivemos artistas que discutiam a sutileza de suas presenças como Wagner Rossi, cuja ação repercutia pelos sustos do som dos pratos caindo ou Daniel Seda, deixando rastros femininos em formas de vaginas inseridas pelas árvores nas proximidades do Paço.

Na praça ainda surgiram outras imprevisíveis figuras: Ana Santos (Lousado, Portugal), com Prótese Mon Amour, Grau 2, desafiava os machismos com o passear de sua figura transformada em um pênis, circulando pela rua. Em contraste, Silvio de Gracia levava para passear o urinol de Marcel Duchamp, que se casava com o famoso slogan de Hélio Oiticica (“seja marginal, seja herói”). A destruição do objeto, marcando o final da performance, pode ser um índice de certo “desconsolo pós-modernista”. Débora Oliveira, de São Paulo, aluna das “Artes do Corpo” (graduação da PUC-SP), deitou-se no solo da praça, seu corpo desenhado por pedras em SP BRUTALISTA – AÇÃO #2, duracional. Flávio Barollo, também de São Paulo, experimentador de um teatro fronteiriço com a performance, com passagem também pelas “Artes do Corpo”, produziu a sua anárquica Piscina Regan no Deserto, uma duracional que vem experimentando em vários lugares e que ganhou, no Largo da Batata, quero crer, um de seus ápices. Nadam Guerra (Rio de Janeiro), com seu Tarô do Materializador de Sonhos, representa uma das vertentes da performance cuja representante principal é Eleonora Fabião e suas ações longas de contato com o público da rua. Tive a oportunidade de testemunhar uma, pelo menos, em Bogotá, no Encontro do Instituto Hemisférico de 2009, onde conhecemos pessoalmente, eu e Naira Ciotti, o saudoso Marcos Vinicius e sua ótima performance com alto-falantes presos ao corpo. Rogério Borovik, de São Paulo, de certa forma evocou essa prática com seu “micro-radio-lab”, uma persona de biruta-cientista-louco completamente coberta de apetrechos sonoros.

No Perfor6 também nos reconectamos com modos de financiar um evento que já estão esquecidos mas que foram frequentemente usados antes da internet. Refiro-me ao hoje denominado crowdfunding, o financiamento coletivo ou colaborativo que, outrora, sem a mediação digital, viabilizou a obra de gente tão inusitada quanto José Mojica Marins. Antes de os editais se tornarem a única e redutora forma de sustentar a despesa de uma produção artística, inúmeras estratégias, algumas extremamente criativas, tornaram possíveis acontecimentos improváveis. Algumas foram objeto de comentário dos veteranos da mesa do terceiro dia.

Dentro desse espírito, também mantivemos a tradicional banca de livros de performance que tem feito circular, entre artistas-pensadores, as mais recentes pesquisas de outros pensadores-artistas. O lançamento, em um dos dias, do livro de Thiago Soares, fez ingressar mais um aspecto no debate das múltiplas possibilidades do discurso da performance.

As estratégias criativas dependem em grande parte do apoio de parceiros. O Paço das Artes [4], desde o Perfor5, vem contando com a ajuda decidida de sua corajosa diretora, Priscila Arantes, gestora que entende o valor do arquivo e da memória, coisa rara no Brasil e tão fundamental para a performance, como pode se ver em um dos mais importantes espaços dessa arte, o Ex-Teresa, no México. Vivendo uma crise, como o Brasil, não tendo os mesmos recursos que outros centros que também contam com arquivos (por exemplo o L.I.V.E. Development Agency [5] inglês ou os norte-americanos Contemporary Performance Network [6] e o braço de performance do MoMa, o PS1 [7]), ainda assim, a essa administração do Paço não descuidou do esforço pela manutenção do acervo de memória.

Aprendemos também que outras parcerias são garantidoras desse mesmo esforço. Trabalhamos com a cobertura do Antro Positivo, publicação online de teatro, que nos brindou com cobertura permanente, através de sua página no Facebook [8]. Aprendemos com o jovem Coletivo Sem Título SD [9], graciosamente disponível para cobrir todo o registro do evento e, com isso, legando-nos um material videográfico inestimável. Nesse capítulo contamos ainda com a jovem fotógrafa chilena, Dominique Weinstein, mais uma artista que vem se voltando para esse atuar específico que é a documentação de performance. Esse é outro lado que se afirma entre nós, principalmente a partir do ano passado, 2015, com o tema [quando?], que o Perfor5 abraçou, e com a vinda do mestre nessa arte que é o fotógrafo mexicano António Juarez, além das discussões reunidas no contexto do MaPA (Memória do Paço das Artes).

Nos últimos três anos, aliás, outra parceria foi fundamental, a do Festival com a Graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC-SP. Desse curso, pioneiro pela presença da performance como área de conhecimento, vêm alunos-estagiários, principalmente de performance, que ganham a chance de um primeiro contato direto com o ofício.

E contamos com a “prata da casa” [10], a sempre incrível capacidade de Otávio Donasci de produzir memes. Dessa vez sua antiga saudação, feita para substituir o “merda” teatral ou o “quebre as pernas” da dança ganhou a forma de botton e gerou um “amuleto da sorte” que contaminou muitas pessoas. É dele o irresistível desenho que acompanha o neologismo “Perfoda-se”.

Ao distribuir recompensas do Catarse, aprendemos sobre esse outro efeito multiplicador, como somos lembrados de diversas formas. Os pequenos filmetes, brincando com artistas da performance ou “trolagens” conhecidas nas redes sociais, foram ensaios de outras formas pelas quais o festival foi se desdobrando [11].

Outra vitória importante foi ter conseguido que quase todos os participantes das mesas performassem. Falar e agir, agir na fala, agir com o corpo que fala. Era possível ir e vir entre os argumentos e as formas, checar a correspondência entre opiniões e corpos. Desde o início pensamos nesse princípio fundamental, o de que o debate de performance, seu estudo, se constrói com a voz dos próprios artistas e, por isso, não fizemos a tradicional distinção entre “palestrantes” e “performers”.

Na primeira mesa do evento, houve a falsa impressão de uma harmonia, ditada em grande medida pela extensa quantidade de participantes e depoimentos enviados em vídeo. Era possível verificar, porém, sobretudo a partir do debate, que as questões eram múltiplas e exigentes. Por que fazer eventos dessa forma? Quais são os lugares? Que lugares obedecem a uma geopolítica de prestígio ditada pelos grandes centros?

Era isso mesmo que queríamos ver surgir e arriscamos a extensão demasiada do número de “depoentes” para não só garantir representatividade e diversidade. Fomos além, exigindo o estrito respeito a um tempo de fala muito curto para que pudéssemos suscitar um debate que se prolongou de forma admirável e que, como todo debate que se preza, não se concluiu e não era para isso.

A segunda mesa revelou, a partir da provocação de Santiago Cao – que vem se mantendo, propositalmente, fora de festivais –, um dissenso muito interessante entre pelo menos três visões da produção e disseminação de performances, a partir de Silvio de Gracia – que impulsiona, desde a Argentina, diversos eventos – e Alexander del Re (Chile), cuja plataforma Perfolink é uma das mais importantes do mundo e que tem colaborado com o Perfor desde 2013. A polêmica apontava a rica diversidade de caminhos que hoje é possível a partir do desafio lançado pela performance contra o mercado convencional de arte. De quebra, trouxe o nome para a sequência do Perfor6 que faremos com o conjunto de artistas que, por falta de recursos, não pudemos ter conosco no Festival e que nos brindaram com suas inscrições em nossa convocatória. O Para [quem?] dará expansão, ao longo de 2016, e, antes do Perfor7, às questões estéticas que esse Fórum já trouxe consigo [12]. A narrativa de Nathalie Fari, nessa mesma mesa, dando conta de algumas proximidades e grandes diferenças entre o contexto alemão e brasileiro, visto por uma emigrada brasileira, acentuou, a meu ver, os dilemas com os quais precisamos lidar e sobre os quais precisamos pensar na circunstância de produção artística em que nos encontramos, necessitando urgentemente construir uma narrativa que não reproduza simples e acriticamente modelos que nos pretendem “ensinar” o que seria performance.

Ao abrir a mesa do terceiro dia, na Phosphorus, Maria Monteiro, sua idealizadora e diretora anunciou, de surpresa, em primeira mão, o fim do espaço e a dedicação exclusiva, a partir de 2016, às atividades da Galeria que prosseguem. Vivemos uma época particularmente difícil para a cultura, sobretudo se consideramos todas as expectativas positivas que cercavam a área há uma década. Se em 2010 não vivíamos uma prosperidade, pelo menos alimentávamos esperanças com base não apenas no crescente interesse pela performance mas na perspectiva de políticas efetivas para a cultura. O interesse aconteceu, as políticas não. Ao contrário, mas ao mesmo tempo se apontam algumas falências de antigos modelos e formas desgastadas. Tudo isso vem misturado a um tempo de incertezas, de produção midiática de crises, de tensões e transformações.

Saímos do Perfor6 certos de que um ciclo se cumpriu e outro se abre. Os próximos cinco anos, que nos levarão do Perfor7 ao 11 ou 12 – assim esperamos e desejamos – deverão dizer, por si mesmos, se ainda poderemos chamar dessa forma isso que hoje denominamos performance…

 

 

NOTAS

[1] BEZERRA, André L. R. Circuito Regional de Performance BodeArte: Encontros, Coletividade e Porítica na Performance do Rio Grande do Norte. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, Brasil, 2014.

[2] AGRA, Lucio. “As perguntas que fizemos”. In: SOUSA, Grasiele (org.). “BrP: Um, Dois, Três… Testando!”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102. 

[3] A ausência de Aguilar, motivada por impedimentos de ordem pessoal, não diminuiu, entretanto, o seu entusiasmo com o evento. Para a nossa campanha do Catarse, gentilmente doou um trabalho inédito, The Performer

[4] Ver em: http://www.pacodasartes.org.br

[5] Ver em: http://www.thisisliveart.co.uk

[6] Ver em: http://contemporaryperformance.org

[7] Ver em: http://momaps1.org

[8] Ver em: https://pt-br.facebook.com/antropositivo

[9] Ver em: http://www.semtitulosd.com

[10] A prata da casa é formada, também, pelo que chamamos de “núcleo duro” de organização do evento: Grasiele Sousa, Joanna Barros e Samira Borovik. É o que aparece no vídeo de nossa campanha no Catarse: <https://www.catarse.me/pt/perfor6>. Contamos ainda com a inestimável ajuda de Adriane Gomes e Leila D (Mandala Performática), além da amável coordenação de Lilian Amaral na mesa do segundo dia.

[11] Veja todos os vídeos em nosso canal do YouTube: <https://www.youtube.com/channel/UC6Y-cQXR6NQdSeG6cFCUL_w>.

[12] Com isso não quero minimizar a questão trazida por Santiago Cao, que tinha que ver com o indagar das razões que sustentam a própria organização de um evento desse tipo e, por assim dizer, a “ideologia” que o move, questão que já foi posta por alguns autores como Johannes Deimling em um texto intitulado “Spagetti with Pesto”, no qual se serve da metáfora gastronômica para falar das misturas que o público encontra nos festivais de performance. Ver em: CLEMENTSEN, Benedicte; KIPPHOFF, Karen; NEDREGARD, Agnes. Never? Now? Performance Art! Sharing Actions and Ideas in Bergen at the Never or Now Festival 2011. Berlim: Revolver Publishing, 2011. Ao mesmo tempo, seguimos nos indagando sobre essa forma ao fazê-la, tomando-a como instrumento de resistência a uma inexistente política cultural que atenda as artes experimentais e, em particular, à performance.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

AGRA, Lucio. “Perfor6 de [Quem] a [Quem]”. eRevista PerformatusInhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e o autor

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