Para Debord, o ser humano moderno é, por diversas vezes, colocado na condição de espectador subserviente da sociedade e sua formação se dá mediada pelo consumo: “do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas de reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias” (DEBORD, 1997: 23). Para esse autor, a espetacularização da vida é vista como um sistema de relações que desvaloriza as experiências humanas e banaliza o conhecimento a fim de empobrecer a autonomia do pensamento. Debord defende que, perante os espaços da vida pública e privada, a mercadoria tende a ser entendida pelos indivíduos como o sinônimo de cultura, ingressando nas várias esfera do cotidiano.
O autor argumenta que os indivíduos são cada vez mais estimulados pelos meios midiáticos a estarem conectados a uma rede global espetacularizada, dominada por imagens: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada pelas imagens” (Ibidem: 14). Assim, os aspectos reflexivos do indivíduo são desprestigiados sistematicamente, transformando-o em um espectador que sustenta o caráter espetacular da sociedade. O olhar debordiano sobre a massificação do indivíduo ressalta que as relações sociais se apresentam como uma imensa acumulação de espetáculos nos quais o real é menos importante do que a imagem.
Assim, o ideário espetacular da sociedade moderna visaria à construção de sociedades imóveis permeadas por uma concentração imagética e autocrática que fascina, gerando uma representação da verdade em detrimento da verdade em si. Ainda segundo Debord, a realidade tende a ser ficcionalizada, tomando-se por verdadeiro o simulacro. Essa questão tem especial interesse para o teatro contemporâneo no qual os limites entre realidade e ficção são cada vez mais tênues, principalmente em manifestações da arte da performance, onde a relação arte/vida é uma questão histórica e cada vez mais atual (RIBEIRO, 2011: 17). Além disso, vemos a presença da ficcionalização do real em diversos espetáculos da atualidade, nos quais a narrativa da vida mesma é ficcionalizada por apresentar-se em um lugar de enunciação artístico, como no caso da experiência que será analisada a seguir.
Dentre os leitores de Debord, está Francis Wolff, que afirma que “as imagens estão presentes não só em nossa vida pública, mas invadiram o lócus privado” (WOLFF, 2005: 17), em uma tentativa de submissão da vida pessoal à construção do desejo produzida pela mídia. Essa submissão seria efetivada através de mecanismos midiáticos que fazem com que o indivíduo não consiga controlar a frequência de imagens diárias, sendo, constantemente, submetido às estratégias de consumo.
Wolff ressalta que a banalização das imagens passa, como uma de suas características principais, a falsa ideia de que tudo pode estar ao alcance dos indivíduos, simbolizando as relações entre os mesmos e os conceitos a serem consumidos. Esclarecendo melhor, a imagem teria a capacidade de representar coisas e pessoas e, com isto, ela se torna o signo visual de algo que poderá ser tocado, consumido, ou seja, possuído em um plano concreto. Assim, a imagem simboliza a representação de algo que não está ao alcance no momento, mas poderá estar em um breve futuro, tendo, então, o poder de aguçar o desejo em grande escala, de forma midiática.
Essa frequência de imagens midiáticas foi destacada por Barreto (1996), ao afirmar que, na última década do século XX, consumíamos cerca de 200 milhões de horas de imagens no Brasil. Tal propagação visual se preocupa exclusivamente com o presente, no intuito de uma aceitação imediata dos conceitos que vêm somados às imagens, ideologias que penetram nos espaços da vida social. Com isso, Barreto (1996) considera os conceitos dados pelas imagens como principais norteadores dos costumes, sendo responsáveis pela codificação dos hábitos e das atitudes sociais.
Anselm Jappe aponta que o limite entre a ficção e a realidade está mediado por imagens que criam um tipo de espetáculo calcado na tentativa de apassivamento da população: “a sociedade espetacular é baseada na contemplação passiva em que os indivíduos em vez de viverem em primeira pessoa olham a ação dos outros” (JAPPE, 2005: 254). Consequentemente, as experiências entre os indivíduos ficariam pautadas pela relação de consumo, na qual o desejo, o sentimento e o pensamento são representados sob a forma de mercadoria.
Ainda segundo Jappe, a fusão entre a imagem e a alienação que integra o espetáculo da vida seria uma tentativa de diluição da democracia. Tal tentativa é feita para que o espectador seja parte de um domínio operante de afastamento da realidade, ou seja, o protagonismo da sociedade espetacular se encontra no convencimento diário do espectador quanto ao conformismo das situações sociais. O ser humano, que é naturalmente mutável, vê o seu eixo de transformação reduzido às escolhas pré-fabricadas pelo discurso econômico espetacularizado. Jappe ressalta que o espetáculo a que Debord se refere visa à falência cultural do indivíduo. As características locais de sua região, de seus costumes, dão lugar à colonização cultural que impõe os modos e os costumes globais advindos de países altamente capitalistas e corporativos.
Essa tentativa de massificação auxilia na destituição da diversidade cultural e da tradição de diferentes grupos sociais, como nas palavras de Maria Rita Kehl: “a eficiência do espetáculo não consiste (apenas) em reprimir outras falas, mas em torná-las indesejáveis” (KEHL, 2005: 246). O predomínio da alienação visa anular o desejo do indivíduo de construir resultados contrários ao sistema em poder, ou seja, opostos ao espetáculo oferecido. Além disso, tal alienação busca impor um estilo normativo às experiências, em que o indivíduo passa a ser visto apenas como consumidor, empobrecendo, assim, vários aspectos da sua vida: as relações entre ele e a sociedade, sua construção autônoma e a sua capacidade de decisão em oposição ao mercado.
Neste mesmo sentido, Marcuse (1999) refere-se ao indivíduo unidimensional vivendo em uma sociedade unidimensional, na qual a tentativa de ruptura da ordem é absorvida de maneira quase imediata pelo sistema que a transforma a favor de sua continuidade, dando uma falsa impressão de mobilidade e de dualidade importantes para manutenção da sensação de bem-estar social. Para Marcuse (1999), a possibilidade de ruptura se encontraria apenas naquele grupo de indivíduos à margem, que não compactuam com o bem-estar social, como, por exemplo, os habitantes das ruas e dos becos. A rua e os que nela transitam (ou habitam) acabam por se tornar a base sobre a qual parte do teatro contemporâneo convive e se efetua. Isso se dá pelo fato de a rua representar o espaço de margem e de contato plural e de menor controle normativo.
Comentando sobre a espetacularização da sociedade, Sérgio Carvalho (2007) argumenta que a espetacularização da vida tende a afastar os indivíduos dos seus direitos democráticos, fazendo com que eles se silenciem diante de qualquer tipo de luta coletiva por modificações sociais. Tal afastamento é gerado pela aceitação pacífica dos valores mercadológicos que totalizariam o imaginário coletivo através de uma estratégia de apassivamento da população, impondo relações específicas de consumo. O mesmo aconteceria com “os setores referentes à produção cultural, que no passado tiveram certa margem de recuo em relação à espetacularização da vida, [e] hoje se rendem à hegemonia das relações baseada na mercadoria” (CARVALHO, 2007: 08).
Logo, a lógica dominante exporia o indivíduo à condição de espectador sem a preocupação das especificidades do seu corpo individual, demonstrando o desprezo pelas relações profícuas entre os seres. Assim, o discurso da mercadoria seria capaz de espetacularizar a própria cidade como o seu objeto, e, consequentemente, o próprio cidadão que nela habita.
Na contramão da espetacularização da vida, coletivos teatrais contemporâneos buscam a aproximação física com o espectador transeunte a fim de modificar pequenas estruturas cotidianas enraizadas na Sociedade do Espetáculo. Parte da construção cênica contemporânea se dá em uma rede colaborativa na qual as experimentações teatrais se caracterizam por um diálogo constante entre a encenação e o público presente, objetivando concretizar a participação do espectador como um colaborador do processo de criação.
O espectador é provocado à ação, em uma tessitura de vozes dialógicas entre este e a obra, entendida como um espaço aberto de constante construção, sendo modificado pelo espaço, tempo e, principalmente, pelo convívio, pelo encontro com o espectador. Nesse sentido, essas criações pensam a arte como um meio de troca em rede que visa a integrar o presente, o acontecimento, o encontro no momento do aqui e agora com um espectador cocriador da obra que se aproxima da vida mesma: “Na medida em que o novo teatro não representa uma figura fictícia, mas apresenta o corpo do ator em sua temporalidade real, re-apresenta todos os temas” (LEHMANN, 2007: 37).
No contexto dos conceitos da Sociedade Espetacular, analisamos o procedimento cênico performático Baby Dolls, criado pelo Agrupamento Teatral Obscena [1] no projeto Às Margens do Feminino – Texturas Teatrais da Beira, realizado em 2008, nas ruas do centro urbano de Belo Horizonte e em outras cidades, cuja intenção foi provocar pequenas e constantes intervenções artísticas performáticas, promovendo interrupções no fluxo dos transeuntes em espaços públicos e abordando criticamente a condição da mulher e do feminino na sociedade.
PROCEDIMENTO BABY DOLLS
Procedimento Baby Dolls (2015). Belo Horizonte, Brasil. Arquivo do Agrupamento
Procedimento Baby Dolls (2015). Belo Horizonte, Brasil. Arquivo do Agrupamento
Descrição: Três atrizes/performers trajadas de bonecas criaram os seus respectivos nichos de exposição ao público. A estrutura foi de montagem dos espaços das bonecas, seguida pela demarcação dos corpos com giz no chão, e escritos sobre a mulher dentro dos desenhos demarcados. As bonecas ficaram próximas umas das outras, mas em seus nichos individuais. A exposição de bonecas, assim como os escritos sobre a mulher foram construídos em frente aos transeuntes, em caráter processual. O procedimento finalizou com a desmontagem dos espaços e a permanência dos escritos.
Diálogo com o público: Lissandra desfilava vestida de noiva pela região central (Belo Horizonte). Com várias sacolas nas mãos [2], ela carregava embalagens plásticas, tais como produtos de limpeza, cosméticos e demais apetrechos do lar geralmente associados às donas de casa. Vários objetos foram acoplados ao seu corpo: uma garrafa plástica cortada e posta em sua boca, remetendo a uma focinheira canina. Uma bacia para lavar roupas estava amarrada às suas nádegas, e uma vassoura quebrada ficava entre os seus seios. Os objetos faziam parte do corpo dessa mulher; eram corpos objetos na cidade (CAETANO, 2011) [3].
Caminhava olhando para os transeuntes, que, curiosos, fitavam-na. Quando alguém se aproximava, ela apenas sorria: “Lica era a noiva feliz e dona de casa coisificada” [4] (DOMINGOS, 2011). Em diversos momentos, a atriz parava em frente às lojas voltadas para o consumo do público feminino, observando os detalhes das mesmas, imitando as modelos da vitrine: “Lica experimenta a noiva nesse dia com as sacolas, repleta de objetos do universo feminino, de beleza, busca ações dentro desse contexto de formatar um corpo boneca noiva que quer casar” (CAETANO, 2008) [5]
A rua, como um lugar de risco e de imprevisto, parecia potente para aquela ação, pois a conduta corporal de Lissandra forçava uma reação dos transeuntes, suas vestes e suas ações eram totalmente atípicas àquele bairro. As pessoas não tentaram um contato corporal com a artista, mas ficaram ao seu redor, ora acompanhando com olhares, ora caminhando na mesma direção, provavelmente instigadas pelo desfecho daquela ação. Após a caminhada, Lissandra sentou-se na praça para montar o seu nicho de bonecas.
Concomitantemente, Erica Vilhena e Joyce Malta construíam os seus nichos perante o público: “vejo pessoas incomodadas, umas riem, outras perguntam se é teatro ou show e existem aquelas que se irritam por serem interrompidas em seu cotidiano” (DOMINGOS, 2008) [6]. Erica construía o seu nicho inspirado nas manequins das vitrines. Com uma maquiagem exacerbada, roupas atribuídas ao universo feminino e salto alto, a atriz tentava seduzir os espectadores transeuntes, provocava os homens e visava a atrair os olhares masculinos:
Comecei a me inspirar naquelas bonecas, nas nossas e nas demais, e saquei as roupas, a maquiagem, o salto e fui-me transformando aos poucos numa desajeitada e incabível boneca. Rosa? Não conseguiu ser. Bela como as das Vitrines? Não, suas medidas não são ideais e suas roupas estão fora de moda. Exacerbei na maquiagem, o ridículo daquele corpo tentando caber onde não havia como. É preciso ser magra. É preciso caber nas roupas das Vitrines. (VILHENA, 2008) [7]
Erica imitava a sensualidade das fotos propagandísticas que observava nas diversas lojas da cidade. Compunha uma mistura de sensualidade e banalização do corpo. Seu corpo desejava ser visto, pois olhava fixamente para os homens, sorria. O primeiro contato estabelecido entre ela e o espectador era dado pelo olhar. Posteriormente, o contato era pela forma que contorcia o corpo, que se mostrava diante dos transeuntes.
Sua sensualidade era uma força, uma potência para a apropriação do lugar, seu comportamento remetia a um exagero das formas e modelos de construção da beleza contemporânea, podendo remeter ao corpo veiculado pelos meios de comunicação de massa como um corpo “erotizado, com uma comunicação sexual planificada, calculada, completamente esvaziada” (MEDEIROS, 1997: 72).
Seguindo esse pensamento, pode-se entender que o corpo midiático, representado por ela, era apenas um simulacro de feminilidade, produzido para seduzir e vender, na recusa da mulher como indivíduo pensante. Vilhena desejava expor a condição da mulher como mercadoria, da mulher que se oferece nas propagandas, do corpo da mulher altamente associado ao mercado consumidor. Alguns olhos correspondiam à provocação, outros desviavam, não sustentando seu olhar fixo.
Ao mesmo tempo, Malta estava vestida de boneca infantilizada, algo que remetia às diversas formas de Barbies. Trazia diversas bonecas em seu nicho, bonecas loiras, de olhos azuis, com roupas da cor rosa. Havia uma penteadeira rosa em suas mãos, com espelho e maquiagem infantil. Malta brincava com as bonecas, imitava as suas posições, penteava o cabelo das mesmas. Maquiava-se diante dos espectadores. Seu nicho atraía um tipo diversificado de espectador, como as crianças. Elas desejavam tocar as bonecas. Notou-se que se estabeleceu uma empatia entre ela e as crianças. Havia um jogo produzido ali, em que o lúdico do universo infantil era despertado:
Eu vestida de bonequinha, bem maquiada, bem vestida, posando para fotos, imitando manequins, procurando a mesma postura das meninas loiras, de rosa, do banco da praça olhando as vitrines. Eu era praticamente como elas, buscando as câmeras [dos transeuntes] e a melhor postura. Elas [as crianças] falavam comigo como se eu fosse uma delas, principalmente porque as câmeras me perseguiam. Elas tinham inveja e queriam ser vendedoras da loja “Melissa” pelas roupas e sapatos que usam. (MALTA, 2008) [8]
A relação com as crianças se apresentava paradoxal, pois a estrutura montada criticava as mulheres que são construídas desde a infância, brincando de casinha, atraindo, ao mesmo tempo, meninas fascinadas pelas bonecas loiras. Percebendo isso, Nina Caetano escreveu com o giz no chão: “Vamos brincar de bonecas?” Isso auxiliou na aproximação com o espectador, os escritos aguçavam a curiosidade de quem passava pela rua:
Há o desejo de integração do transeunte na ação e de sua participação ativa: muitas meninas interagem com a intervenção ajudando a “montar” a boneca loira e, muitas vezes, se montando também, como boneca. Algumas pessoas se deitam no chão, manifestando o desejo tanto de ter seus corpos desenhados como de marcar corpos ou de escrever dentro de seus limites. (CAETANO, 2008) [9]
Havia o interesse geral pela criação artística que era construída dialogicamente com o público. Após o estabelecimento dos nichos das bonecas, Caetano aproveitou a proximidade entre elas e iniciou suas propostas de escritas: “Era a minha tentativa de organizar uma proposta ainda muito incipiente. A ideia de uma exposição de bonecas. Bonecas domesticadas pela TV. Expor a boneca das outras mulheres/transeuntes por meio dessas que proponho.” (CAETANO, 2008) [10]
Caetano propôs às bonecas, em tempos diferenciados, que as mesmas deitassem no chão. Assim, a dramaturga desenhava o contorno de tais corpos com giz, iniciando um fluxo de escrita dentro dos mesmos desenhos. A escrita de Caetano era intensa, discorria sobre diversificadas questões em torno da mulher na atualidade. Segue abaixo um recorte entre os inúmeros escritos no momento do procedimento:
Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher. Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade. Mulheres domesticadas pela TV. Mulheres eletrodomésticas. A mulher em relação ao marido. Esposa. Rolinhos pregadores talheres bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perféx avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores filhos planos de saúde férias marido. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora. A gente pensa que é mulher e é só fêmea. Bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca. Galinha. Piranha. Filé. Gostosa. Gostosa. Samy. 20 anos. Morena mestiça. Safada e sapeca. 100 por cento completa. Sexo anal total. Gosto do que faço. (CAETANO, 2008) [11]
Os escritos possibilitaram maior aproximação dos transeuntes na construção de Baby Dolls, movidos, talvez, pela busca de um entendimento sobre o que acontecia. Um entendimento que não chegava a acontecer, permanecia a dúvida, uma incógnita provocada por palavras que também fluíam em livres associações que denunciavam outra lógica, deixando entrever suas margens e pontos escuros, uma escrita que também incomoda. O incômodo, gerado pela incompreensão ou pela provocação das imagens, também existia na palavra escrita; o palavrão, quando escrito, parece mais duro, e permanecia mesmo depois de as imagens se diluírem. O chão, riscado a giz, ficava à mercê das intempéries, sobrevivendo ou não às ações do tempo ou de outras mulheres que, certamente, passariam por ali com uniformes laranjas e suas grandes vassouras.
Baby Dolls foi pensado sem uma finalização predeterminada, mostrando uma construção fragmentada e ocasional, pois a criação do discurso era compartilhada ao vivo, de maneira improvisada. Caetano escrevia constantemente, mesclando textos jornalísticos, poesia e a percepção do acontecimento presente, misturando ficção e realidade.
A instalação dos corpos na cidade parecia incomodar, criando uma pequena fissura no local, na modificação do fluxo cotidiano. A região central foi apropriada por imagens e palavras, e as pessoas não pareciam mais se importar com o desconforto de estarem em pé. Os pedestres andavam para ler os escritos, indo ao encontro dos desenhos feitos por Caetano. Após um tempo de ação, sem nenhum acordo evidente, as bonecas retiraram-se, andando em meio às ruas centrais da cidade de Belo Horizonte, deixando para trás a escrita no chão, que seria lida, provavelmente, por mais alguns dias.
Baby Dolls, ao ser analisado pelo grupo depois de sua primeira realização, assim como todas as outras propostas feitas pelo Agrupamento dentro desse projeto, foi vista pelo Obscena como uma conquista na direção de uma construção dialógica entre os seus criadores: “Não quero corpos ao meu serviço. Proponho o estabelecimento de um diálogo em trabalho. De uma escuta dos corpos e possibilidades de ação do outro e como o outro” (CAETANO, 2008) [12] O diálogo do corpo com a escrita criou um procedimento coletivo e aberto à coautoria com o público e com o espaço. As pesquisadoras construíram ações autônomas, porém, entrelaçadas pelo acontecimento e a convivência na cidade. Baby Dolls se concretizou como uma obra aberta, sem fórmulas, sem gastos, remetendo ao texto de Pollastrelli, a ideia de “um ato coletivo: atores e espectadores em coletividade” (POLASTRELLI, 2007: 47). O espaço construído pelas artistas se constituiu em um local de experiência convival entre a obra e o espectador. A escrita, unida às imagens, visava provocar no transeunte uma reflexão, no momento mesmo do convívio e do acontecimento. A experimentação da relação ator-espectador foi dada em um espaço cênico comum a todos, tendo transformado as ruas do centro em um lugar de exploração pessoal, de convívio e de pesquisa artística dialógica.
No âmbito da relação cena-espectador, a potência desse procedimento teve como fator fundamental a articulação coletiva das pesquisadoras na rua em mútua percepção, enquanto cada uma desenvolvia a sua ação:
Como vejo extrema potência nesse experimento que já estabelecemos entre escrita e ação, entre mortas que se multiplicam pelas ruas e essa mulher objeto em suas diversas ações: numa ação concentrada, em determinado espaço. Ela nômade, invasora de lojas, de espaços privados de consumo imediato. (CAETANO, 2008) [13]
As questões relativas ao lugar do feminino na sociedade espetacular foram levadas à cena, mesclando escrita e imagens, cujas marcas no chão e nos corpos buscavam evidenciar situações de submissão do corpo e do pensamento a uma lógica de consumo, em que tudo é transformado em imagem e a imagem se transforma na própria coisa ou na promessa de posse da coisa, em um breve futuro, como vimos anteriormente na revisão da literatura debordiana e de seus comentadores. Na tentativa de provocar olhares e atitudes sobre as questões levantadas, Baby Dolls criou uma ação fragmentada e incompleta, rompendo com a sensação satisfatória e apassivadora da compreensão total. As lacunas e as dúvidas encarnam uma dubiedade contrária à falsa sensação de domínio da realidade pela imagem espetacular da sociedade. Essa fissura, incômoda abre a brecha do mal-estar e coloca em evidência as diversas margens do bem-estar social escondidas pela necessidade de adequação a uma realidade estática e unidimensional.
NOTAS FINAIS
Na descrição e análise do procedimento Baby Dolls do Agrupamento Obscena em seu contexto primeiro, pudemos realizar uma leitura do mesmo a partir dos conceitos debordianos da Sociedade Espetacularizada. Essa leitura não se pretende única e reconhecemos que a continuidade de realização desse procedimento o envolve em uma situação de contínua transformação. Ainda assim, a crítica da experiência compartilhada na qual Baby Dolls foi realizada, permite contribuir para a compreensão do procedimento, ainda entendendo-o como um processo em continuidade. Também foi nossa intenção colaborar com uma historiografia da produção contemporânea em Minas Gerais articulada a uma posição política e estética vinculada à relação entre ficção e realidade, entre vida e obra, entre o real e suas imagens. Entendemos, a partir do exposto, que Baby Dolls destaca-se nesse contexto por realizar uma ação em constante diálogo: dialogam os corpos, objetos, vozes faladas e escritas no espaço, e compartilham de uma experiência criadora atores, dramaturga e espectadores, todos performando uma ação aberta e faltosa. Essa falta, a incompletude da ação, que não tem um final determinado, apenas um ponto de partida e algumas propostas de interação, possibilitam a ruptura com a sensação de bem-estar decorrente da compreensão e classificação da ação: é teatro? Show? Loucura? Falta do que fazer? Essas dúvidas geram uma ruptura que, por sua vez, parece fazer surgir uma incômoda brecha no conforto da posse da mulher, e também da cultura, como bens de consumo.
Em contraposição à espetacularização da vida, as ações do Agrupamento Obscena, pautadas na aproximação física com o espectador, visaram estabelecer outras perspectivas sobre o lugar do espectador na experiência cênica. Essa produção de vivência possibilitou pequenas e constantes formas de desconstrução do ritmo normativo que se estabelece tradicionalmente na fruição cultural. Referindo-se aos preceitos de Debord, pode-se dizer que o Obscena propõe, em suas pesquisas, modificar, mesmo que em pequena escala, o caráter contemplativo do espectador social, desejando provocar uma discussão sobre o estatismo dos lugares sociais em nossa sociedade contemporânea.
Finalmente, resta dizer que este estudo parte das percepções de pessoas envolvidas, em maior ou menor medida, na ação aqui descrita e analisada. Está claro que no campo da metodologia de pesquisa em Arte, acreditamos que a subjetividade não impede que a análise se dê de maneira sistematizada e que a mesma contribua para a construção do conhecimento na área. O olhar interno, ou melhor, um olhar dentro e fora, possibilita a construção de um discurso de contínua relação entre a teoria e a prática artística.
NOTAS
[1] Criado na cidade de Belo Horizonte em 2007. O Agrupamento é composto por atores, diretores e dramaturgos e demais profissionais da área teatral.
[2] Sacolas cujas grifes são destinadas ao consumidor feminino.
[3] CAETANO, Nina. Depoimento postado no blog do Obscena. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[4] DOMINGOS, Clóvis. Bonecas da Savassi: Um Sonho Imperfeito. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[5] CAETANO, Nina. Depoimento postado no blog do Obscena. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[6] DOMINGOS, Clóvis. Bonecas da Savassi: Um Sonho Imperfeito. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[7] VILHENA, Erica. Sobre o Baby Dolls. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[8] MALTA, Joyce. Sobre o Baby Dolls. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[9] CAETANO, Elvina. Resumo de Entrevista: Agrupamento. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[10] CAETANO, Elvina. Queridas Obscênicas. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[11] CAETANO, Elvina. Experimento Cênico Inacabado. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[12] CAETANO, Elvina. Queridas Obscênicas. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
[13] CAETANO, Elvina. Experimento Cênico Inacabado. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 21 de junho de 2011.
BIBLIOGRAFIA
AGRUPAMENTO Independente de Pesquisa Cênica “Obscena”. Espaço virtual de divulgação da produção teórico-prática de artistas pesquisadores. Ver em: <http://www.obscenica.blogspot.com>. Acesso em: 13 de dezembro de 2014.
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WOLFF, Francis. “Por Trás do Espetáculo: O Poder das Imagens”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Muito Além do Espetáculo. São Paulo: SENAC, 2005, p.16-45.
PARA CITAR ESTE ARTIGO
GASPERI, Marcelo Eduardo Rocco de; LIMA E MUNIZ, Mariana. “O Espectador Transeunte na Sociedade do Espetáculo: Uma análise de ‘Baby Dolls’ – Agrupamento Obscena”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e xs autorxs
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