Céu cinzento e ar rarefeito, um furacão verde engole o Brasil e a América Latina. A publicação do Ato Institucional n. 5, em 1964, marca a entrega do cetro do poder às mãos dos militares. Caracterizado pela deslegitimação do poder legislativo e suspensão das garantias individuais dos cidadãos brasileiros, o AI-5 trouxe consigo a mordaça que silenciou artistas e o punho forte que esvaziou o Congresso Nacional, prendeu estudantes e militantes do movimento socialista e assassinou muito dos que discordavam do poder instituído.
Recorrendo à metáfora do Mahabharata, é preciso continuar escrevendo o poema da vida, mesmo com a pena quebrada (força da destruição impulsionando o ser ao recomeço). Nesse movimento, a revolução cultural parisiense ocorrida em maio de 1968 constitui um momento de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais que alteraram as sociedades, promovendo novos rumos mundiais. A “big wave” ganha pulso e vai quebrar nas praias de “Tio Sam”, por conta da rebelião ocorrida no Stonewall Inn, no dia 28 de junho de 1969 (em Nova York). Insatisfeitos com o tratamento dado pela polícia, gays, lésbicas e travestis respondem com violência física e marcando, desde então, a luta por respeito e, consequentemente, o reconhecimento de direitos civis dos hoje reunidos sob o signo LGBTT’s.
O velho Silviano Santiago, como um feiticeiro em seu O Cosmopolitismo do Pobre, se propõe a descobrir em que ano e circunstâncias históricas começa o “fim” do século XX na América Latina e, particularmente, no Brasil. Numa visão escatológica, o “bruxo” anuncia que o período de 1979 a 1981 marca o momento de transição do século XX, batizado de auge do desbunde brasileiro. O acinzentado céu brasileiro é tomado por uma revoada de borboletas coloridas que, com sua beleza e despretensão, compõe uma canção com o bater de suas asas que tem como refrão “É proibido proibir”.
Num encontro entre Mnemosyne, sua filha Terpsícore e eu, sentados diante dessa enorme mesa, tomamos desse chá alucinógeno e revivemos o cenário dos anos de 1970 e de 1980. Considerado como período de redemocratização do Brasil, vislumbramos o retorno de muitos de vários de nossos exilados que traziam muita história para contar, “debaixo dos caracóis de seus cabelos”. A fumaça que sai do bule da velha Memória traz consigo um aroma de novas subjetividades dentro de um contexto de engajamento social, expresso nas produções artísticas da época. Como não se lembrar da imagem de uma brejeira Gal Costa com suas madeixas desgrenhadas, sentada num banquinho, sem modos algum, e invocando a presença de índia de sangue Tupi? Ou do jovem esquálido Fernando Gabeira tomando seu costumeiro banho de sol e ostentando seu “discreto” tapa sexo de crochê nas areias escaldantes de Ipanema.
Parafraseando a pesquisadora Thereza Rocha em um de seus diálogos epistolares com a filósofa Márcia Tiburi, “a memória não é arquivo. A memória é uma experiência presente”. Nesse sentido, faço questão de beber desse caldo cultural que continua quentinho, pronto a colaborar com a proposta de um corpo queer que provoque microfissuras nas estruturas docilizadas da sociedade contemporânea. E por falar nele, no corpo, vale dizer que, quando se mostra “em dança” (expressão usada por Thereza), perturba a ordem e o conhecimento instituídos.
Borboletas sangram, sofrem, choram e se desesperam, mas nunca desistem de voar [1]. Com os delírios poéticos do desbundado Bayard Tonelli, sigo minha viagem agarrado as asas coloridas desse inseto. Num sobrevoo pelas praias cariocas, avisto meninos do Rio em aparelhos de ginástica exibindo seus corpos definidos e tatuados, invadidos pelas câmeras fotográficas do misterioso Alair Gomes. Seguindo meu trajeto aéreo, chego ao meu destino: um casarão no bairro de Santa Teresa. Para minha alegria e espanto, sou acolhido por uma família sui generis, composta pela mãe (o ator Wagner Ribeiro), o pai (o bailarino Lenie Dale), suas filhas, sobrinhas, tias e até uma empregada. O melhor modelo de família heteronormativa subvertido em sua estética e comportamento. São corpos peludos e viris, cobertos por vestidos curtos, espartilhos, perucas e maquiagem que os aproximam do clown; todos vivendo numa sociedade alternativa e construindo em coletividade o que ouso chamar de Glitter Revolution ou, no idioma tupiniquim, Revolução Purpurina.
Impulsionados pelo mote “Só o amor constrói”, criado pelo mentor espiritual e ideológico do grupo, Wagner Ribeiro, defendem a ideia de uma estética que alia o espírito libertário da época e a invenção artística através de uma revisão de valores sociais estabelecidos, como o binômio masculino/feminino, e proclamam a androginia. Tomados pela força recompositora dos seres bipartidos por um castigo divino, os artistas abalam as estruturas impostas socialmente. Tendo como influência as manifestações culturais brasileiras como o teatro de vanguarda, a Bossa Nova, os cultos de matriz africana e Jazz Dance norte-americana, eis que ecoa no ar a palavra mágica: DZI.
To be or not to be? A interrogação shakespeareana ganha outro sentido e toma corpo na resposta de Simone de Beauvoir: “ninguém nasce, torna-se”. E dentro da realidade de um croquettes, ninguém nasce bicha, torna-se bicha – ou não, como já dizia Caetano Veloso. Porém, a voz do conservadorismo incide e insiste em perguntar o que eles são: São homens? Mulheres? Lenie responde: “Somos gente! Gente computada igual a você!” [2] As sábias palavras do bailarino são suficientes para arrastar jovens de várias idades, sexo e classes sociais que se identificam com a nova maneira de se fazer revolução. Nasce o termo tiete e a garotada, antes tolhida pela rigidez familiar, arruma seus trapinhos em suas mochilas e seguem atrás da trupe de cara pintada e espírito livre.
Com minhas calças vermelhas, um casaco de general e meus anéis, assumo a responsabilidade de buscar os rastros de performatividade de gênero no trabalho dos Dzi Croquettes e assim construir uma escrita cênica que potencialize esse devir sexual. Pensando nas vozes cênicas que coadunam com o homoerótico nos anos de 1970 e de 1980 (atualmente rebatizado como estética queer), chamo à discussão personalidades como o artista plástico Hélio Oiticica, o cantor Ney Matogrosso e o grupo Seco e Molhados, o poeta Wally Salomão, o performer Edy Star e outros para juntos pensarmos como a subversão ganha corpo na cena artística e contribui para futuras lutas e conquistas no campo dos direitos humanos.
Na busca pelos rastros de performatividade, me debruço sobre entrevistas, matérias jornalísticas, fotografias, diários, prontuários médicos, boletins de ocorrência policial e demais documentos antes pesquisados a fim de fazer dialogar as vozes do grupo da época com as mesmas vozes expressas no documentário Dzi Croquettes (2009), dirigido por Tatiana Issa e Rodrigo Alvarez. Tal movimento é executado a fim corroborar com o conceito agambeniano [3] de “contemporânea” como refrão que vai buscar no passado recente elementos que dialoguem com a atualidade.
Há um clima sombrio pairando no ar. Mais de quarenta anos após a Revolução de Maio de 1968, somos tomados por uma atmosfera de conservadorismo que leva pessoas às ruas em prol da “Família com Deus”. Na mesma vertente, ouve-se os pedidos incongruentes de “intervenção militar pela liberdade de expressão”. Paradoxalmente, uma nuvem colorida de borboletas (uma panapaná) alça voo sobre o céu brasileiro. É a volta dos Dzi Croquettes, numa empreitada liderada por um de seus remanescentes: o bailarino Ciro Barcellos (a filha caçula Silinha Meleca). Em parceria com Bayard (a Tia Bacia), os veteranos incorporam o Rei Midas e, possuídos pelos espírito do “papai” Lennie Dale, trazem ao palco jovens e competentes artistas no espetáculo Bandália. Mantendo a marca do profissionalismo impressa sob o bastão da “professora de dança” linha dura (Mister Dale), a revista é colorida por matizes de elementos históricos, “e [por] uma sequência de quadros musicais e cômicos, com tiradas de comportamento e política” [4].
O borboletear dos relidos Dzi, embora considerado pela crítica como menos chocante e afrontoso, promove micropolíticas quando, nas filas das bilheterias dos teatros, avisto um grupo de adolescentes ousados que – contrariando a sexualidade higienizada, tão em voga nos dias de hoje – ostentam bocas pintadas de batom vermelho contrastando com os pelos de uma barba rala que enfeita seus rostos. Quem tem medo da bicha barbada? A liberdade de ser, nada conformada na ditadura do “não sou, nem curto afeminados”. Afeminar-se se torna ato político na contemporaneidade.
Num repaginado palco que lembra a canção de Gilberto Gil, a alma dos jovens artistas não cheira a talco mas a testosterona mesclada ao blush e cílios postiços. Cutucando a senhora heteronormatividade, corpos musculosos são cobertos por roupas consideradas femininas e orquestrados por uma entidade hi-tech. A cena que principia a remontagem potencializa as palavras de Miss Judith Butler, que afirmam: “gênero é performance repetida”. Endossados pelo mote de Lennie Dale, as cortinas se fecham com o reconhecimento de que num mundo onde “tudo que é sólido se desmancha no ar” [5], “não somos nem homem, nem mulher: somos gente”.
Vivemos momentos de tensões sociopolíticas significativas que mexem com estruturas institucionais – muitas dessas revistas com base na aquisição de direitos civis, no que tange às chamadas minorias sexuais. O reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo, as novas diretrizes para a adoção de crianças entre casais gays, o acesso ao tratamento e cirurgia de redesignação sexual oferecida pela rede pública de saúde ao transexual e o direito ao nome social às travestis são algumas das muitas conquistas adquiridas pelo público LGBTT. Ditas conquistas confluem com o avanço de uma maré de conservadorismo que encontra no fundamentalismo religioso sustentação para atitudes preconceituosas.
Afogados nesse cataclismo tradicionalista, muitos de nós reverberamos um discurso em nome da moral e dos bons costumes, promovendo retrocessos assustadores. Vale lembrar a recente confusão instaurada nas redes sociais por conta de uma campanha publicitária de uma marca de perfume e cosméticos que, entre seus casais de namorados, evidenciou um suposto casal homoafetivo (faço uso da expressão, mesmo não a considerando adequada). Discursos fascistas mascarados de ordenança divina servem de alimento ao ódio de homofóbicos. Porém, a ironia e o humor daqueles que não se deixam dominar por um sistema opressor, transformaram tal discurso em chacota (e, consequentemente, em estratégia inesperada de marketing para a empresa em questão).
A maré de doutrinamento ideológico vai ganhando requintes de crueldade com a tentativa de silenciamento da arte. A performance da transexual crucificada, realizada na 19ª Parada do Orgulho LGBTT em São Paulo, fomenta, na sacrossanta bancada fundamentalista religiosa do Congresso, a necessidade de reconhecimento do crime contra o pensamento cristão (chamado de crime de “cristofobia”). A cristofobia é uma realidade histórica em nosso país. Quando o sangue de um LGBTT é lançado ao solo por conta da intolerância à diversidade, mais um pequeno Cristo tem sua pluralidade apagada por conta de tamanho desamor.
Em busca do pote de ouro no final do arco-íris, reler o desbunde tem como objetivo atualizar a pergunta da potência atual do Dzi Croquettes para a cultura brasileira. Nesse sentido, sigo meu voo, a bordo de minha borboleta tecnicolor, acreditando numa sociedade mais igualitária e equânime, que faz valer o conceito de democracia.
NOTAS
[1] Estrofe do poema “Borboletas”, de autoria do ator, bailarino e membro da primeira formação dos Dzi Croquettes, Bayard Tonelli.
[2] Um dos motes do espetáculo Dzi Família Croquette (1972), que deu origem ao grupo.
[3] Giorgio Agamben. O que é o contemporânea? e outros ensaios. SC: Argos, 2009.
[4] Trecho da matéria intitulada “Dzi Croquette Retoma Choque e Afronta mas Fala ao Presente”, de Nelson de Sá para a Folha Ilustrada de 04/05/2015. Ver em: <http://goo.gl/hYQnF9>.
[5] Referência ao livro homônimo de Marshall Berman.
PARA CITAR ESTE TEXTO
OLIVEIRA, Haroldo André Garcia de. “Dzi: A Palavra Mágica Ecoa Novamente”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor
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