Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Bomba. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Julho de 2015. Fotografia de Lucas Czepaniki
De gestuais enérgicos e tão bem calculados, de um humor corrosivo, festivo, insolente, uma aparente exatidão na racionalidade das criações de Rodrigo Munhoz (a.k.a Amor Experimental) desmancha-se a partir do primeiro retorno que recebi do artista após um pedido que lhe fiz de um simples mapeamento das suas obras em ordem cronológica.
Na verdade, a racionalidade estritamente lógica, inteligível, se desfaz perante o meu olhar sobre o seu trabalho antes de eu acessar a camada mais profunda dele, mas, de forma alguma, afirmo que haja no trabalho de Munhoz uma negação de uma pesquisa lúcida/metodológica em favor de uma criação meramente intuitiva. Minha surpresa mesmo foi identificar que há duas distintas formas de ordenamento no seu processo criativo e não apenas um: o lógico e o sensível. Logo, o que se desfaz realmente em meu prejulgamento, depois de conhecer melhor a trajetória de Amor Experimental, é a minha visão unilateral que percebia toda a composição desse artista como fruto de um processo amparado unicamente pelo racionalismo. Claro, contrariando minha visão de processo criativo equivocada como descrito acima, o caráter sensível e inteligível não são formas distintas de ordenamento, não são autônomas, não podem ser totalmente dissociadas, e a prova disso, na trajetória de arte e vida de Rodrigo, é que, mesmo partindo das suas vivências/memórias pessoais, a maneira como cada estímulo ou cada impulso intuitivo é captado para servir-lhe de assunto a ser desempenhado em performance, há a premeditação, portanto há a pesquisa, que por sua vez é de ordem racional.
Solicitei-lhe uma linha cronológica com os nomes dos seus trabalhos e respectivas datas de cada uma das criações e, então, o que me foi devolvido no lugar da tão modesta construção me atingiu como um soco no estômago muito bem dado e, ao mesmo tempo (e contrariamente), como o mais doce beijo fraternal que alguém pôde me dar nos últimos tempos. Um soco devido ao teor tão duro. Um beijo pela confiança em apresentar uma linda história pessoal com passagens sórdidas, mas que lhe valeram um caráter colossal como pessoa e como artista: tratando-se de performance, uma coisa não existe sem a outra.
As camadas criadas nos trabalhos de Munhoz, muitas vezes funcionam como um casulo, onde o elo entre o seu corpo e o da audiência está mediado por papel kraft, por cola, por fogos de artifício, vidro, espuma, madeira, plástico, bombas, máscaras, telas onde sua imagem está em projeção ou seu corpo escondido por debaixo do ecrã tátil etc.
As relações que os trabalhos de Munhoz estabelecem com outros já conhecidos da história da performance são muitas, e dois exemplos, que merecem ser apontados aqui, são Günter Brus, com destaque para a ação Self-mutilation (1965), capturada em vídeo por Kurt Kren, bem como a agressividade visual impressa nas ações de Olivier de Sagazan, com massas tão espessas quanto aquela que Rodrigo utiliza em Cabeza, I am your Father (2012). Claro, ainda é possível relacionarmos este trabalho citado de Munhoz a um terceiro artista, mais precisamente às seis pinturas que compõem a série intitulada Head (1949), de Francis Bacon, especialmente as pinturas Head I, Head II e Head V.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Cabeza: I am your Father. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Janeiro de 2014. Fotografia de Germânia Heibe
É apropriado ainda ressaltar uma aproximação estético-conceitual das ações Palestra Motivacional (2014), Há Tempo para o Amor (2013) e Manual para Degenerar o Mundo (2014), assim como das Videocriaturas de Otávio Donasci, iniciadas em 1983. O Amor é Pedreiro (2015), O Amor é Vitrine (2015), O Amor é Colosso (2015) e Arena Performance (2013) já são trabalhos em que o artista explora mais a noção da nomeada “estética relacional”, mas, obviamente, nas suas outras obras podemos também detectar vestígios do que desponta mais assumido aqui nessas ações mencionadas.
Fatalmente, o contato com a essência mais profunda do artista está resguardado em uma camada ainda menos óbvia do que a do material escolhido para cada uma das suas ações e, portanto, o conteúdo não é facilmente acessado para além dos signos empregados em cada uma das suas criações dotadas de um sarcasmo latente, de um senso de humor incontestável, mas Rodrigo Munhoz é peremptório na sua autoanálise que revela o riso como opção de fuga às lágrimas, o escárnio, o deboche, como substitutos da mágoa, da dor.
Depois de conhecer a trajetória de Rodrigo Munhoz por ele próprio e a aflição que ele desperta no(a) seu(sua) espectador(a) ao expor o seu corpo em ação, conseguimos facilmente detectar uma ideia de catarse em seu trabalho, ou seja, de expurgação/purgação ou, ainda, de purificação que está tão presente na arte autobiográfica, onde o “self” do artista é repetidamente exposto, podendo assim o sujeito vivenciar seus dilemas e traumas como uma forma de superação dos mesmos. Na arte, a expressão da performance parece ser o meio mais apropriado para refletirmos sobre o “corpo que assume papéis concomitantes de sujeito e objeto” [1], sendo que as temáticas recorrentes traduzem os dilemas e as aspirações do indivíduo na atualidade e, obviamente, da sua própria vivência nesse contexto.
Diz a autora Katia Canton que “nas artes, a evocação das memórias pessoais implica a construção de um lugar de resiliência” [2] e que essa evocação “é também o território de recriação e de reordenamento da existência – um testemunho de riquezas afetivas que o artista oferece ou insinua ao espectador, com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário” [3].
Embora Rodrigo Munhoz apresente o seu “diário pessoal” escancarado nas palavras abaixo escolhidas como forma de relacionar as suas vivências (traumáticas por vezes) da infância, adolescência até a sua idade adulta, ele não parece projetar uma analogia freudiana nas suas construções artísticas, onde, conscientemente e de forma amadurecida pelo posicionamento crítico apresentado, constrói uma narrativa visual com a qual estabelece uma autorregulação, expondo a sua dor psicológica e até física acompanhada das suas marcas. Ele não parece afirmar que traumas lhe inspiraram, pois trabalha artisticamente com toda a sua sensibilidade e experiência de vida e, assim, considera que existem diversos estímulos que o conduziram a tais assuntos traumáticos, mas que são sobretudo relembrados por conta do que também podemos chamar de “acasos significativos” [4]. Em suma, a prática psicanalítica não é afirmada como critério último de avaliação do conteúdo visual e expressivo da trajetória de Amor Experimental e nem mesmo do seu processo criativo, mas conhecer mais profundamente o que está por debaixo das camadas compostas para as suas ações é um viés no mínimo envolvente e que nos faz compreender com outro olhar as suas criações, nas quais arte e vida são inseparáveis.
Abaixo segue a resposta de Rodrigo Munhoz depois de receber o meu pedido para que criasse uma linha do tempo, onde os seus trabalhos estivessem listados em ordem cronológica com detalhes de onde foram realizados e com as respectivas datas. O que me foi devolvido está para muito além de um mero apontamento sobre a evolução da sua própria trajetória. É um texto autônomo que merece ser publicado na íntegra e que explicita muito melhor o teor das produções desse artista do que um olhar analítico mais distanciado sobre a sua produção. Até aqui, o meu escrito é só para anunciar, como um arauto, o artista Rodrigo Munhoz e suas criações.
Disparadores do Amor Experimental
de Rodrigo Munhoz
You can’t believe all the things I’ve done wrong in my life
Without even trying I’ve lived on the edge of a knife
Well, I’ve played with fire, but I don’t want to get myself burned
To thine own self be true, so I think that it’s time for a turn
Before I burn in hell
Oh, burn in hell…
Play with evil, cause I’m free [5]
Inicio este manuscrito em primeira pessoa, porque quero e posso falar assim, porque sou amante, agitador, brigador dessa que é a arte da pessoa, também conhecida como a Arte da Performance ou Arte da Ação. Só posso falar assim, porque só posso falar por mim e por alguns poucos pares que estão lutando e outrxs que ficaram pelo meio do caminho. Este texto tem sobressaltos como a vida… foi feito para conversar num bar, com cerveja… sem a preocupação linear de detectar este ou aquele aspecto. Trata-se de uma escrita feita enquanto se vive e esse é o ponto, vírgula, exclamação… as reticências.
O trecho da letra supracitada é de uma música que eu cantarolava em meu “parco, infanto e arábico” inglês aos sete anos, no auge do Heavy Metal no Brasil… era 1985, pós decepções nacionais… perdas… copa de 82, Movimento pelas “Diretas Já”. O metal corroía as convicções e era corroído pelo pós tudo, de modo que eu mal sabia o quanto esses versos do Twisted Sister, que me atravessavam em sentido e vida, iriam por conseguinte intensificar uma experiência de vida pelo restante do percurso dessa vida que segue. Sim, porque existe uma dimensão sobre o que fazemos e não nos damos conta, de maneira que esse “não dar conta” se desdobra em lugares inimagináveis. Começo então pelo meio, pela “performance que dividiu as águas” que não eram de março nessa minha vida; esse divisor de águas tinha a leveza lúdica de Lygia Pape, tinha um “Q” de Moisés, o arquétipo da água… dessa que se adapta às circunstâncias, se reinventa, se aliena da terra e acorda mais tarde… cujo chamado acontece no momento mais improvável da vida, durante uma longa “batalha muda”. Devo falar da performance que me fez tencionar o amor e a violência e, sobretudo, me levou a admitir toda a violência que havia sido praticada contra mim e a quem amava/amo, além de mostrar-me o quanto eu deveria reafirmar a minha violência enquanto recurso necessário para o enfrentamento de determinadas situações, afinal foi o que recebi de herança e é desse lugar que tiro potência para seguir. Dito isso, refiro-me à Cabeza, I am your Father (2012), ou à “performance da massa”. Essa performance nasceu de uma “rodada”, não sob o contexto de um giro, mas de um rodo aplicado como arma por meu pai sobre o corpo da minha mãe… era 1981 e minha mãe chorava muito com o prego do rodo enterrado em sua mão, sob palavrões proferidos pelo meu pai… então eu soube, por aquilo, que eu deveria lutar para ser grande… derrubá-lo, quem sabe matá-lo com justiça ao falar publicamente dessas coisas, como faço aqui, porque estamos no tempo de falar dessas coisas e não compreendo uma arte que não seja a vida e a briga pelo viver. Fato é que meu pai se especializou num tipo de surra ao longo dos anos… surra física, mental e moral; surra que não deixava marcas ou deixava marcas em lugares não aparentes.
Portanto, só poderia projetar nele a força do salto aos berros com a massa. De outro modo, não poderia fazer com a minha mãe, mesmo tendo eu me “divorciado” dela aos sete anos, ao me decepcionar na ocasião de um pedido que fiz para que ela e meu pai se separassem… pedido esse que teve seu início atendido e sucumbiu a uma noite de transa na véspera da assinatura do documento de separação. Pior que isso, me decepcionaria mais tarde com a pós-separação conquistada, momento em que minha mãe “desbundou” com justiça, mas se esqueceu que tinha duas crianças… uma de sete e outra de onze anos… ambos correndo de skate pelas madrugadas das ruas do Jaraguá… procurando um lugar para uma “boquinha”. Enfim, devo parar por aqui para preservá-la, mas não isentarei alguns integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo, aqueles que antes vinham nos defender do meu pai e que depois passaram a frequentar minha casa e promover todo o tipo de absurdo, de maneira que é melhor eu parar por aqui para preservar o que me resta. Não bastasse a violência dentro de casa perpetrada por meu pai, tinha também a violência social… muita gente com medo de andar comigo e meu irmão, uma vez que meu pai tinha a fama de violento e justificava isso para além de casa, ao incendiar lugares, agredir pessoas com socos, pontapés e muitas cabeçadas… cabeçadas/cabeça que mais tarde eu adotaria em minhas ações. Tinha também a violência da voz social, ao afirmarem que minha mãe era uma puta desquitada e que eu deveria calar a minha boca ao solicitar qualquer coisa na vizinhança. Foi dessa voz social, armada com todo o poder das instituições (família-polícia-comunidade), que notei o quanto deveria crescer para poder sobrepujá-los, mais especificamente ter a minha vendeta, usar de minhas presas e do meu metal… e o metal em questão foi se não a ação, e, nesse caso, da massa… uma mistura de água com farinha de trigo; afinal, a dor era tanta que, se pudesse, teria optado pela “ficção que sublima”, fosse pelo cinema, pelo teatro, contudo, restou ela… a performance.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Cabeza: I am your Father. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Dezembro de 2012. Fotografia de Geise Calvo
Eis que a massa surgiu por essas massas de experiências e, sobretudo, amparada por um desejo de lidar com o pai, óbvio que sem a inteligência kafkiana das missivas, posto que isso não era do meu mundo e o meu mundo já tinha uma frase por aproximação pra insuflar esse contexto: “Digo alô ao inimigo / Encontro um abrigo / No peito do meu traidor” [6]. Sim, o Agenor e o Renato foram os heróis da resiliência nessas horas: “Disparo contra o sol / Sou forte, sou por acaso / Minha metralhadora cheia de mágoas / Eu sou um cara” [7] ou ainda “Se o mundo é mesmo / Parecido com o que vejo / Prefiro acreditar / No mundo do meu jeito / E você estava Esperando voar / Mas como chegar / Até as nuvens / Com os pés no chão” [8]. Sendo assim, a massa foi esse lugar onde eu pude dar o soco mais bem dado, saltar com tudo o que tenho, com meu sobrepeso, com tudo o que posso e com as minhas inabilidades. Quando estive no México por ocasião de uma residência, dobrei o tamanho da massa, engordei o tanto quanto pude para igualar a categoria dos pesos pesados, enquanto ela expandia sob uma densa quantidade de fermento. Lutei de igual para igual, fui surpreendido com a aderência da massa, fui vencido, fui morto, retornei como uma espécie de “Malverde” aos gritos de amor… e venci porque vencemos quando perdemos e faço questão de ressaltar isso, visto que é preciso fracassar, esgotar, cansar, errar, perder… para vencer alguma coisa nessa vida.
Eu e meu irmão João convivemos ainda por um bom tempo com essa violência abrangente e diária, entre as idas e vindas dos meus pais, uma vez que se separaram e voltaram diversas vezes (hoje encontram-se separados). É fato que o comportamento “vaivém” dos meus pais acabou por instaurar um clima de promiscuidade muito grande, pois obtinha-se o perdão sob quaisquer tipo de circunstância absurda, de maneira que essa mesma promiscuidade nos fez conviver e naturalizar certos comportamentos, como, por exemplo, ao nos inserir numa primeira camada de acesso à marginalidade, de modo que isso é assunto para morrer aqui.
Essa convivência com a violência ainda me colocou em rota de colisão com outros lugares e pessoas, sob o contexto da força bruta, como quando eu era camelô e corria muitas vezes do “rapa” ao querer evitar a perda da minha “mercadoria”, que por sinal se resumia a dezenas de livros. Também trabalhei com moradores de rua e mais tarde com adolescentes encarcerados da antiga Febem (Fundação do “bem-estar do menor”) Franco da Rocha, Tatuapé, Raposo Tavares. Nesse período presenciei muita violência, como também perdi um ex cunhado sob circunstâncias de ultraviolência. Enfim, foi um período tumultuado em que a revolta bateu forte, me fez esquecer da arte, sobretudo me afastou de minhas pinturas até em face de não considerar mais a mesma como uma arte de impacto, de maneira que senti uma necessidade intensa de me aproximar de uma arte que pudesse proporcionar um corpo a corpo em ação… uma arte que também tivesse ímpeto, ainda que isso fosse contraditório e me devolvesse a um lugar por onde transita a violência. Em todo caso, faz-se necessário recordar também que aquilo que viola em alguma medida a percepção sensível, é também capaz de achatar a autoestima, detonar a subjetividade, como também colocar o corpo em alerta… em prontidão, visto que o ataque poderá vir em qualquer tempo ou espaço. A violência também é um dado cultural de nossa terra, é por ela que aprendemos e desaprendemos, é fato também que ela se converteu num recurso de sobrevivência e por que não dizer… de resistência. A violência cumpre um lugar de “tempestade e ímpeto” para alguém cuja razão passa longe e a emoção é profunda e destituída de contorno.
Por um outro lado, esse fenômeno pode ser experimentado em outras circunstâncias… sob certas licenças poéticas, onde o ímpeto gerado pelo ato violento possa despertar outras impressões sem lesar a percepção sensível em corpo alheio… aliás, permite fragilizar os aspectos invasivos que potencializam a violência, tal qual um dublê que lida com o perigo/risco, sem se ferir com gravidade. Trata-se também de ponderar sobre a violência e não tão somente afastá-la… encará-la, admiti-la com as contradições possíveis; além da massa, posso citar mais performances que transitam por esse lugar… Amor Contra a Parede (2015), por exemplo, onde dispositivos forjados por desenhos geram colisões entre o corpo e a parede… situações em que o corpo testa seus próprios limites; em que portas e janelas são desenhadas durante a ação, para que sejam “rompidas” a cada impacto. Toda uma ordem de coisas é evidenciada por traços, na medida em que me coloco em confronto de forma improvisada, tal qual um processo de decantação… em que as reminiscências servem de insumo para uma sequência imbricada de elementos que se distribuem ao longo da ação.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Amor Contra a Parede. Performance realizada em Curitiba, Brasil. Maio de 2015. Fotografia de Fernando Ribeiro
Toda a violência descrita até aqui, redundante como a própria natureza do excesso, é também aquela cuja selvageria abrangente é capaz de friccionar tantas outras camadas de uma experiência em vida dentre aquelas possíveis… cabe apontar aquele fenômeno que pondera e abre os poros para outras percepções; refiro-me mais precisamente ao amor. A experiência do amor é aquela que possibilita ir além de qualquer binarismo, perceber nuances, sutilezas… e isso aplicado ao percurso das performances que desenvolvo, traduz-se como um lugar afeito ao deslocamento daquilo que parece estar consolidado numa determinada ação. Dito de outra forma, o amor funciona como uma instância imbricada por um elã que desacomoda certezas, tempos e espaços… é o moto-contínuo que mais se parece com a performance, dada a entropia com a qual os processos acionam lugares e pessoas. Pensar o amor em performance é estabelecer uma base de lançamento para questões outrora distantes, o que confere ao mesmo a condição de um canal disponível para problematizar qualquer tipo de questão que atravessa a pessoa no cotidiano. O amor é essa dimensão empática tal qual uma tela em touchscreen, cuja interface intuitiva consegue dar conta de uma experiência em que os caracteres não se sobrepõem, antes se atravessam para gerar outros modos possíveis para a percepção sensível.
O amor funciona como um organizador no combo das performances que realizo, uma vez que é por ele que “apaziguo”, reacomodo e distribuo minha poética. É pelo amor que me pergunto o quanto do que faço é capaz de gerar sentido, criar fluxo de contato entre as pessoas. Não à toa e por isso é que parte do que faço também está ligado ao lúdico, mais especificamente à diversão esse vertere é o que possibilita desviar, errar, bagunçar as convicções, ou, como diz uma expressão popular, “virar no Jiraya”, ou seja, é um dispositivo que proporciona o escoamento daquilo que o contorno concentrou por muito tempo. Por exemplo, isso fica evidente na sequência de trabalhos chamada Volume Sonoro (2010), visto que toda a construção partia de uma ideia de oficina e dependia da participação de terceiros. Aliás, essa sequência de trabalhos existiu também em potência pela contribuição máxima de dois artistas-educadorxs, Verônica Pereira e Carlos Rogério Amorim. Aliás, fazíamos parte de um programa público de iniciação artística dedicado às crianças, conhecido como “PIÁ”. Acionamos por quase três anos um dispositivo sonoro que, para variar, ganhou em expansão, elemento caro naquilo que desenvolvo, posto que o mesmo possibilita lidar com novos estágios de dificuldades… perder o controle, errar e flanar em busca de outros sentidos. É premente mencionar o quanto cada performance realizada tem se servido de elementos ligados à ideia de oficina, pois boa parte das ações tem transitado por etapas onde o “como se faz” é expoente, sobretudo por imprimir um caráter em que o código aberto se faz presente mediante à aplicação de tutoriais. Para além disso, existe também a permanência da reinvenção de um lugar de resiliência que consiste em trabalhar com o que se tem (herança das oficinas que dei) e fazer mais do que se pode… hackear, gambiarrar, improvisar sem se acomodar… expandir para ter mais alcance. Em resumo, pode-se dizer que o amor abriu caminho para a diversão, e essa última, para revisitar tudo o que fiz com a violência… afinal, foi pelo amor que alavanquei visões diversas dentro daquilo que fiz e vivo fazendo. Pelo amor encontrei parcerias, como essa que desenvolvo junto a Recy Freire… companheira de amor, “artista bomba”, que plantou uma parceria iniciada a partir de uma ação denominada Há Tempo para o Amor (2013), que falava sobre casais que namoram nas plataformas de trens da cidade de São Paulo (também éramos namorados de plataforma). Foi pelo amor que encontrei uma rival para lutar numa arena, em favor dos clichês, enquanto forma didática de aproximação com o campo da Arte da Performance. Aliás, em Arena Performance (2013) a questão da diversão se confunde com a ideia de tutorial e se desloca num combinado de afazeres propostos aos cúmplices que ladeiam nossa presença.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Volume Sonoro. Performance realizada em Brasília, Brasil. Setembro de 2011. Fotografia de Carlos Rogério Amorim
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), frame de Há Tempo para o Amor. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Junho de 2013
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Arena Performance. Performance realizada em Natal, Brasil. Dezembro de 2014. Fotografia de Rafael Passos
Vale pontuar algumas ações onde tudo isso tem se destacado e, por que não dizer, explodido em potência para uma sequência de trabalhos, cujas poéticas se atravessam e buscam gerar instabilidade no tempo e espaço de cada ação, como uma autossabotagem que oferece novos desafios, fracassos e reflexões. Esses trabalhos provocam empatia, chamam para brincar, lidam com as causas mas não deixam de esgotar os efeitos, assumem e disparam o que é superficial/ordinário para situações onde os mesmos se convertam em extraordinários, ao elucidar camadas anteriormente não aparentes. É importante citar o quanto da precariedade permeia cada trabalho, todavia essa precariedade é abatida no momento em que se percebe o quanto de força é possível extrair de cada material. Por exemplo, em O Amor é Kraft (2015) o corpo é tomado por extensões físicas sob a ação do papel kraft, material de ótima resistência mecânica para criar extensões do corpo. Esses desdobramentos criam situações onde o corpo lida com outras (de)estruturas arquitetônicas, sejam aquelas que se referem a um corpo estável ou em movimento.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Kraft. Performance realizada em Campinas, Brasil. Junho de 2015. Fotografia de T. Angel
Esse jogo do corpo com a arquitetura, ou “anarcoarquiteura”, está presente também em Volume Sonoro (2011), O Amor é Pedreiro (2015), O Amor é Phopho (2015) e “1”, da série Onde o Vento Faz a Curva (2013). Esses trabalhos estabelecem uma zona de atrito entre o corpo e uma matéria que o desafie. Fato é que a matéria em questão será sempre responsável por desalojar esse mesmo corpo de suas convenções, visto que os sentidos e suas respectivas lógicas estão colocados à prova. Entretanto, isso só acontece em face de um árduo desejo pela deformação enquanto atributo, e isso não somente se deve a um problema pessoal que tenho com a ideia genérica de formação, inclusive não tenho formação universitária, muito embora tenha amigos na área e tenha sido citado em trabalhos de conclusão de curso e mestrado. Em geral, o que me afeta na formação é o peso que ela carrega, sobretudo no que tange ao ponto de vista normativo, colonial e disciplinar.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Pedreiro. Performance realizada em Campinas, Brasil. Junho de 2015. Fotografia de Recy Freire
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Phopho. Performance realizada em Campinas, Brasil. Janeiro de 2015. Fotografias de Marcello Ferreira
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Onde o Vento Faz a Curva. Performance realizada em Nísia Floresta, Brasil. Janeiro de 2014. Fotografia de Recy Freire
Contudo, a deformação me parece mais palatável pois permite deter meu olhar sobre as reentrâncias daquilo com o que lido. A deformação aparece em boa parte dos trabalhos, pois a mesma possibilita ir de encontro ao que se concebe enquanto transdisciplina, de maneira que quando isso é tensionado ao esgotamento, torna-se possível estar além, assumir o que há de indisciplinar e tão logo incorporar tudo o que é negado pela norma e que se converte num combo… numa mixórdia. Desse modo, vale frisar o quanto a deformação dispara um encontro com o “lado B, C… Z” das coisas e, nesse sentido, recorro a um conjunto de tags que me são caras: amor, violência, vingança, diversão, gambiarra, hackeamento, bagunça, desobediência, malcriação, tutoriais, arquitetura, decepção, esgotamento, inadequação, descondicionamento físico, excessos, fracasso, antinorma, memória, arquivo. Feito isso, sinto-me livre para aplicar cola sobre o rosto e ser feliz ao descamar feito um peeling, ou ainda encher a cabeça de bombas e correr por aí, agredir o solo em que piso com a minha cabeçorra; desenhar sobre o rosto alheio através de um vidro; me prender ao corpo de crianças e adultos para andar sobre palafitas; acionar, acionar, acionar, pois assim me foi permitido, posto que resolvi criar o que bem entendesse com base em minhas emergências… descobri, aliás, que faço melhor em fúria, quando não dou conta de uma determinada situação, quando me ponho vexado diante de mim mesmo.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Vitrine. Performance realizada em Campinas, Brasil. Junho de 2015. Fotografias de Recy Freire
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), frames de O Amor é Peeling, 2012
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), O Amor é Colosso. Performance realizada em Macapá, Brasil. Agosto de 2015. Fotografia de Cristiana Nogueira
Essa liberdade autoconsentida… autodidata, é a mesma que me permite falar do que me incomoda quando solicitado, não obstante, além de associar as performances com um dado de compartilhamento…, numa aproximação com a (des)educação é que acabei também por associar a performance com a palestra, sobretudo embasado por meios que envolvem a metalinguagem, opensource, creative commons, copyfight da cultura livre… “pirataria de saberes e sabores” etc. Foi assim em Performance Tutorial: Versão Beta (2015), Dispositivo Disparador de Presença (2014), Palestra Motivacional (2014) e Manual para Degenerar o Mundo (2014). Todas foram trabalhadas com arquivos de imagem, som, texto e deslocadas até o lugar da ironia/humor com o modo pelo qual operam as palestras e seus respectivos recursos… Power Points da vida. Portanto, há um dado muito forte em tudo o que faço no que concerne ao conjunto dessas relações de confronto e cooperação entre arte e educação. Penso que boa parte das ações carregam modos que brincam nesse território áspero e que se encontram no momento da pré-execução, execução e na etapa posterior que diz respeito à memória, sobretudo através dos arquivos onde a imagem e o som podem estabelecer um panorama encadeado de toda a trajetória. Para tanto, tenho pesquisado maneiras de compartilhar essas variadas ações com as pessoas e, por isso, sou colaborador de uma plataforma ou estação de trabalho em performance, de caráter coworking chamada La Plataformance [http://laplataformance.blogspot.com | http://facebook.com/laplataformance]. La Plataformance se estabeleceu mediante um tripé centrado em autoria de trabalho, interface de trabalho e circulação de trabalho, de maneira que tenho compreendido alguns fluxos do meu trabalho, bem como dxs demais integrantes, na medida em que acompanho e colaboro. A La Plataformance tem sido a peça de um quebra-cabeça que serviu para suplantar o lugar da formação, indo ao encontro concreto da deformação ao lidar com outras abordagens livres para o trabalho em rede. A La Plataformance ajudou a dar sentido ao que faço em lugares impensáveis, com o auxílio dxs amigxs que lá estão nessa força que preserva, respeita e intensifica o sentido dado a cada ação; sobretudo, por respeitar a individualidade, a idiossincrasia constituída ao longo da vida de cada um. Para além disso, pesa também o fato de que ela amplificou um movimento de moderação que já fazia via Facebook, de modo que eu não me sentisse mais tão isolado assim, afinal, conto agora com outras tantas pessoas que colaboram.
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Dispositivo Disparador de Presença. Performance realizada em Juiz de Fora, Brasil. Setembro de 2014. Fotografia de Ramsés Albertoni
Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental), Palestra Motivacional. Performance realizada em São Paulo-SP, Brasil. Setembro de 2014. Fotografia de Verônica Pereira
Em suma, termino aqui o texto, pois a vida se encarregará de outros fatos para subsidiar outras tantas ocasiões em que poderei revisitar o que faço de modo detalhado. Queria dizer que muita coisa se passa pela minha cabeça o tempo todo. A cabeça com os seus orifícios é o lugar da empatia, dessa forma é que declaro a loucura dessa minha cabeça, que se desloca em sua insuficiência. Inclusive, convivi com o apelido de “Cabeça” durante toda a minha infância, pois a mesma sempre foi avantajada… meu pai também sempre foi cabeção… sempre o chamaram de cabeção… janela, ao passo que eu era o “vitrosinho”. Minha insuficiência vem dessa coisa de “não dar conta de”, acompanha o peso dessa cabeça… física e mental. Então eu crio extensões, ora com espuma, ora com papelão, ora com capacete que explode coisas, ora com bombinhas… a cabeça é a minha antena… é por onde chego primeiro… é por onde já senti as dores mais excruciantes, mas é também o lugar por onde vi e tenho visto as coisas mais lindas dessa vida, é por onde eu troquei fluidos de amor, emiti sons com ou sem sentido… é meu peso e o meu alívio quando tranquiliza… ao fechar os orifícios para o mundo e repousar com justiça.
NOTAS
[1] CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo, p. 24.
[2] Idem, Tempo e Memória, p. 21.
[3] Ibidem, p. 34.
[4] Termo utilizado pela autora Fayga Ostrower em sua obra Acasos e Criação Artística.
[5] Canção “Burn in Hell”, de Twisted Sister, do álbum Stay Hungry, lançada em 1984. Tradução livre: Você não pode acreditar em todas as coisas que eu tenho feito de errado na minha vida/ Sem nem sequer tentar eu tenho vivido na ponta de uma faca/ Bem, eu já brinquei com o fogo, mas eu não quero terminar queimado/ Para teu próprio ser verdadeiro, então eu acho que é hora da mudança/ Antes que eu queime no inferno/ Oh, queime no inferno/ Jogue com o mal, porque eu sou livre.
[6] Canção “Faz Parte do Meu Show”, de Cazuza e Renato Ladeira, do álbum Ideologia, lançada em 1988.
[7] Canção “O Tempo Não Para”, de Cazuza, do álbum O Tempo Não Para, lançada em 1988.
[8] Canção “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, de Dado Villa-Lobos e Renato Russo, do álbum As Quatro Estações, lançada em 1989.
BIBLIOGRAFIA
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CANTON, Katia. Tempo e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
OSTROWER, Fayga. Acasos e Criação Artística. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1995.
ZAMBONI, Silvio. A Pesquisa em Arte: um Paralelo entre Arte e Ciência. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2012.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales; MUNHOZ, Rodrigo. “Rodrigo Munhoz (a.k.a. Amor Experimental): de um Suposto Jeito Frugal de Fazer Performance ao Transbordamento do Sensível Camuflado em Camadas Inanimadas”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e os autores
Texto completo: PDF