Presença Caleidoscópica – Um Estudo de Presença, Escuta e Movimento em Lisboa

 

O texto original (com resumo) foi publicado sob o título “Kaleidoscopic Presence. A Study of Presence, Listening and Movement in Lisbon”, em: PAD. Pages on Arts and Design, Milão, n. 15, dez. de 2018, p. 51-69. Ver em: <http://www.padjournal.net/archive/>.

 

Processo de investigação de BICHO no Beco do Jasmim em Lisboa. Fotografias de Clara Bevilaqua e Thiago Righi

 

1. A Artista Está Implicada

 

B I C H O

Há uma delicadeza em farejar o fluxo do corpo.

Eu tenho um bicho

Um bicho que habita o relevo das coisas 

bicho de canto, de chão, de quinas, bicho que não quer ser visto

 

O corpo entornado,

relevo que engole a si próprio.

 

Dançar é lamber as feridas

cá coisas para não esquecer.

 

           

É importante ressaltar que este texto sobre o processo artístico de BICHO – coreografia autoral realizada no Beco do Jasmim em Lisboa – não se apresenta como o resultado de um processo criativo do corpo, mas como um tecer dos muitos materiais que emergiram da investigação em estado de dança. A fisicalidade do ato de escrever pode também promover uma atualização crítica do presente work in progress, de forma a lançar novas questões para futuros desdobramentos.

Aqui, autora e artista coincidem na mesma figura: nesse processo não há hierarquias entre dançar e escrever — a informação que emergiu do/no corpo pode também ser expressada (e elaborada) em palavras, para depois retornar ao corpo movente como novas perguntas a serem dançadas, e assim por diante. Esses papéis e informações simultâneos são decisivos para tratarmos de BICHO, e para compreender que não se trata de uma coreografia de dança, mas de uma investigação cinestésica e estética que aponta para uma postura ética específica do corpo movente.

A presente escrita descreve a experiência do processo criativo do trabalho BICHO como uma consequência do convívio com um coletivo de artistas internacionais que integrou o curso O Risco da Dança, no c.e.m. – centro em movimento, uma estrutura de investigação nos estudos do corpo e do movimento dedicada à prática da arte como forma de conhecimento, localizada no coração de Lisboa.

Em Lisboa, senti que o meu trabalho de corpo no estúdio do c.e.m. demandava um estar na cidade, na rua. Foi então que a pesquisa em corpo abraçou a possibilidade de desenvolver um fluxo entre investigar o corpo em estúdio e investigar o estado de dança na rua, mais precisamente no Beco do Jasmim, situado na região da Mouraria.

A escrita que segue pretende discutir questões a respeito da elaboração de uma dança a partir de estados corporais sugeridos pela relação com um lugar específico. O BICHO fez parte da programação do Festival Pedras’18, em julho de 2018, e a presente escrita vem da ventania trazida pela comunicação dessa investigação do corpo. É a partir dessa experiência corporal que pretendo trazer à luz questões como: o que pode ser o que tenho chamado de presença caleidoscópica?; como posso elaborar essa dança sem hierarquizá-la sobre o espaço e os residentes locais?; essa dança poderá me mostrar o caminho para a criação?; esse processo é um gesto micropolítico?; é possível considerar o processo de investigação de dança e movimento como um trabalho em si, aberto, poroso, vivo?

As práticas do corpo em movimento demandam escuta. As práticas do corpo com a cidade demandam uma camada a mais de escuta. Estar com um lugar significa abrir os poros para ouvir e receber o que a cidade nos revela — os sons, as palavras soltas ao ar, os fluxos de moradores em suas rotinas diárias, o movimento de abertura e fechamento dos restaurantes, a passagem de turistas com suas malas de rodinhas, o movimento da incidência da luz no espaço ao longo do dia, a umidade nas pedras do chão, o nascimento de pequenas plantas e flores por entre as pedras do pavimento, o relevo peculiar que sugeria um outro modo de mover-me com aquele chão, os muitos planos que a visão pode alcançar: tudo isso determina o estado do corpo em movimento. Para essa prática de investigação em estado de dança, algumas palavras saltaram à mente, como permanecer, ouvir, estar presente e mover-se com (c.e.m., 2010). A composição da dança que ali se aprofundou aconteceu a partir da escuta desses elementos do corpo, in loco. A metodologia teve que ser criada durante o processo. Cada passo definiu o passo seguinte. O corpo convida o tipo de material que precisa ser trazido para o processo, seja ele um texto, um som, um momento de escrita, um momento de dança. A chave para elaborar o processo criativo passo a passo, em tempo real, foi ouvir os estágios do desenvolvimento da dança em interação com o movimento da cidade. O próprio processo é também considerado, portanto, uma obra de arte viva, mutante.

 

Cai por terra a ideia da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição. Tudo, a qualquer momento, é perfectível. A obra está sempre em estado de provável mutação, assim como há possíveis obras nas metamorfoses que os documentos preservam. (Salles, 2006, p. 26)

           

Essa prática da dança partiu de um tripé referencial: 1) A Técnica Klauss Vianna [1]; 2) A experiência de ter feito parte do coletivo de artistas internacionais que integrou o curso de formação intensiva O Risco da Dança no c.e.m. em Lisboa, 2017-2018; 3) De uma fundamentação biopolítica (Agamben, 2007 e 2016; Barros, 2014 e 2017). Essas três principais referências me levam a pensar o movimento como oportunidade de praticar uma ação política profanadora contra os tantos dispositivos de poder que tentam a todo momento constringir o corpo, a vida e a morte (Barros, 2014 e 2017). Desafiar a propriedade sobre o corpo e habitar as fissuras (na cidade, no sistema) foram algumas das diretrizes adicionais do trabalho corporal de BICHO. As diretrizes aqui apontadas são consideradas gestos micropolíticos, não apenas por lutar para estar fora da normatividade, mas por existir como um diferente, como um elemento que se integra ao espaço — essa dança é sobre coexistência e não sobre o confronto. Dançar o BICHO foi/é também uma prática micropolítica.

 

Processo de investigação de BICHO no Beco do Jasmim em Lisboa. Fotografias de Clara Bevilaqua e Thiago Righi

 

2. Incorporar o Beco do Jasmim — O Exercício da Escuta do Espaço e dos Transeuntes

Durante todo o processo houve um empenho em evitar fórmulas ou procedimentos predefinidos. A metodologia foi inteiramente baseada na fisicalidade do encontro com o Beco do Jasmim. Há uma especificidade de cada encontro com um lugar, nas palavras da equipe do c.e.m.:

 

A relação que cada um estabelece com o contexto é muito singular, não existe de partida uma fórmula a seguir ou um objetivo fixo a atingir, cada um se reserva o espaço de estar-com, de escutar atentamente a textura daquilo e daquele que encontra, criar laços, aproximar-se, deixar que se aproxime, esperar, descobrir, integrar, ouvir histórias, detectar linhas de movimento ou de ausência dele.

É neste sentido que o acompanhamento dos profissionais do c.e.m. se torna precioso, tanto no permanente tecer dos movimentos singulares no sentido da criação de um organismo multifacetado como no estabelecimento da matéria de criação/acção e evidenciar uma outra escala do mapa que cada indivíduo se implica.

Todos os processos de criação englobam momentos mais solitários e momentos em que a partilha de pontos de vista e questões emergentes da prática se torna incontornável. Sabemos que aquilo que nos propomos a fazer é pertinente a nível de desenvolvimento humano e da reoxigenação do espaço urbano, sabemos que trabalhamos com pessoas e que, indo ao encontro de quem elas são levando conosco quem somos, estamos a abrir espaços de afecto sensíveis e frágeis, mas também, a nosso ver, urgentes. (c.e.m., 2010, pp. 6-7)

 

Observo que nessa investigação o corpo revelou-se em uma textura de movimento específica, combinada com os desequilíbrios e curvaturas de coluna, provocados pela convivência com o relevo enrugado e acidentado do chão. O olhar do BICHO encontrou a possibilidade de viajar pelos diversos planos e paisagens que o beco oferecia: quando estava no alto, enxergava pontos da cidade que já não eram possíveis de ser alcançados quando o corpo escorregava para a parte mais baixa (e profunda) do beco. O alcance do olhar produz alterações no tipo de movimento que o corpo realiza: o olhar também é corpo. A paisagem que chegava a mim pelo olhar também se tornava corpo, tornava-se movimento no e com o Beco, o movimento tornava-se finalmente Beco, alterando o olhar do BICHO, formando, assim, uma espécie de ciclo vicioso: à medida que me movo, posso ter outros olhares-corpo-movimento, e assim por diante. Marie Bardet, em  A Filosofia da Dança: Um Encontro Entre Dança e Filosofia, discute a relação entre dança e espaço a partir dos escritos de Schopenhauer a respeito da arquitetura. Ela aponta que a “experiência estética da gravidade sair da oposição entre o pesado e o leve é aquilo que Schopenhauer observa em uma arte que, a priori, não tem nada a ver com a dança, a arte arquitetural” (Bardet, 2014, p. 59), e que certos elementos com os quais a arquitetura lida, assim como as práticas em dança, são: peso, coerência, resistência, fluidez, o reflexo da luz, dentre outros elementos. Barded convoca Schopenhauer para essa discussão com o intuito de abordar uma relação muito mais complexa entre o corpo movente em constante diálogo com as informações do espaço e da arquitetura que cercam o dançarino.

Em um processo criativo, é inevitável convidar e conviver com memórias corporais de trabalhos técnicos anteriores, portanto, BICHO permitiu que eu estudasse também a maneira como o Eixo Global da Técnica Klauss Vianna comportava-se, e de que forma os vetores ósseos [2] se reorganizam em um terreno enrugado como o que estive a trabalhar. É inevitável convocar e conviver com as memórias do corpo em um processo criativo. Abrir-me para esse processo significou reelaborar as premissas do corpo que dança, significou também flexibilizar as formas de mover e atualizar o que entendo por “técnica”. A experiência do BICHO fez com que eu flexibilizasse todo o conhecimento do corpo que elaborei até então, fez com que eu enxergasse que “técnica” pode ser questionada, amassada e revista.

Os recursos técnicos corporais que o BICHO recrutou foram chamados pelo corpo em movimento. Foi o próprio movimento quem revelou o que era necessário ser recrutado a seguir. O caminho de investigação seguiu o faro do corpo, e isso tem algo de revolucionário, tem algo que questiona o poder dos conhecimentos secularizados, daqueles procedimentos enrijecidos que querem dar ordens e dizer ao corpo o que fazer antes de ele próprio ser o que ele estiver desejando ser. O BICHO não funcionou com métodos preestabelecidos: ele exigiu que cada dia de trabalho fosse elaborado à medida que se desenrolava no ato de habitar o beco em estado de dança. As perguntas foram feitas de corpo inteiro para o corpo inteiro, e não de mente para o resto do corpo. Essa abordagem por meio da escuta é fundamental quando uma das principais (pre)ocupações é o mover-com o espaço, e não sobre ele, resultando em uma experiência muito específica, que não é apenas estética, mas também ética e, portanto, política.

Com o suporte lado a lado dos orientadores e colegas no c.e.m., fui afinando a rotina de trabalho no Beco do Jasmim. Foram horas a fio sentada observando, escrevendo em livre fluxo as palavras-movimento que o Beco me dizia, experimentando o fluxo das palavras que dançavam no papel, ouvindo o lugar, conhecendo a rotina dos moradores do bairro, para finalmente ouvir o surgir do movimento corporal que um dia viria a compor uma dança. A “coreografia” é precisamente o estado de dança que essa experiência abriu para o meu corpo. As práticas corporais do c.e.m. certamente foram decisivas para este e todos os meus trabalhos futuros.

 

À esquerda: Processo de investigação de BICHO no Beco do Jasmim em Lisboa; À direita: Dançando BICHO no Festival Pedras’18: “Em que mundo queremos viver?”, Beco do Jasmim, Lisboa, Portugal, julho de 2018; Fotografias de Clara Bevilaqua e Thiago Righi

 

3. Presença Caleidoscópica

No campo das artes corporais, presença é uma questão muito relevante a ser considerada — os artistas precisam trabalhar a fundo o que vem a ser a atenção em suas práticas, de forma que possam ser capazes de ler o contexto em que estão inseridos e comunicar-se por meio de suas artes e práticas corporais (Barros, 2017; Vianna & Carvalho, 2005).

O que tenho elaborado em minhas práticas é algo que excede o “estar presente e atento”, é algo que extrapola o evento do corpo presente, como um estado de presença que se transforma a cada mudança no próprio corpo ou no ambiente que o circunda. Como um caleidoscópio, que modifica completamente a imagem formada mesmo se apenas uma pedrinha mudar de lugar dentro do aparelho, um só elemento pode transformar o todo. Ver a imagem se transformar no caleidoscópio convoca outras sensações, outras leituras. Com a presença caleidoscópica é a mesma coisa: há um tônus específico, uma temperatura, um cheiro, um olhar, um desejo, uma velocidade, uma distância que, constelados de determinada maneira, levam o corpo a mover-se de acordo. A cada constelação desses elementos, uma forma específica de mover (ou mesmo pausar) o corpo no espaço. Sinto essa presença caleidoscópica como uma presença despida, despretensiosa, atenta, honesta — é a confiança de se deixar revelar em movimento, de receber com o peito aberto, de entregar-se ao fluxo e fazer disso uma investigação em arte que se estende para as práticas de corpo na vida. Para tanto, é preciso um certo grau de desapego do que eu acho que quero fazer, para que eu seja capaz de ouvir o que o meu corpo como um todo deseja; e é aí que encontro lugar para surpreender-me comigo em movimento. O nascer de qualquer gesto deve vir do sutil ato de ouvir.

Presença é o primeiro tópico da primeira etapa da Técnica Klauss Vianna (Processo Lúdico). E, não por acaso, presença é o assunto que tem me acompanhado ao longo de toda a minha história com os estudos em dança. Isso significa que considero a presença como um recurso que podemos expandir e desenvolver. Para mim, isso tem a mesma importância que desenvolver qualquer outra habilidade física virtuosa.

Especialmente após ter tido contato com a dinâmica do c.e.m. (trabalho com pessoas e lugares), comecei a investigar e observar como a presença é recrutada como um dos mais importantes fundamentos da prática do artista. Presença não significa apenas dominar a atuação, mas tem a ver principalmente com a escuta, com o abrir-se ao espaço e às pessoas ao redor. Diz respeito ao construir uma vida não hermética, e, portanto, uma dança não hermética — e esse foi o meu maior aprendizado ao dançar o BICHO no Beco do Jasmim. Um percurso de trabalho muito exigente, mas certamente uma experiência duradoura, capaz de mudar toda uma concepção a respeito do mover e do dançar.

No curso O Risco da Dança, no c.e.m., fui desafiada a habitar/dançar/estar em lugares da cidade de Lisboa. Quando em movimento nas práticas de estúdio, eu já vinha ouvindo um estado corporal que era recorrente: um corpo entornado, curvo, enrugado, selvagem, com tônus alto. Foi durante as orientações com Mariana Lemos, Paula Petreca, Sofia Neuparth, Margarida Agostinho, Peter Michael Dietz e Valentina Parraviccini que encontrei caminhos para experimentar a prática dessa qualidade de corpo e movimento no Beco do Jasmim.

Em termos metodológicos, posso destacar algumas perguntas e diretrizes que foram surgindo ao longo do processo de estar em estado de dança no Beco do Jasmim: adentrar a rotina do espaço e estar lá cotidianamente era, para mim, como pedir licença para fazer parte do Beco do Jasmim. Era necessário que eu não me impusesse ao lugar nem às pessoas, e isso foi uma conquista da rotina diária de trabalho naquele local. Aprendi que a presença no estúdio de dança não devia ser maior do que a presença na rua, para que eu não hierarquizasse as situações, os lugares, as ações – significa que estar com uma pessoa a conversar na rua requer a mesma atenção de quem está a dançar, de quem está a atravessar uma calçada, de quem está a cozinhar, de quem está a escrever, e assim por diante. O corpo é o mesmo. Parece-me importante saber transitar por entre as situações e lugares sem perder a mim mesma, sem entrar no piloto automático, sem deixar de relacionar-me com o entorno. É importante também permitir-me não ter domínio da situação. A escuta profunda que a presença requer é uma escuta de pele, de poros, de corpo inteiro, tridimensional, que chamo aqui de Presença Caleidoscópica. Caleidoscópica porque quando estou em relação comigo mesma e com o ambiente 360 graus, em tempo real, sou capaz de produzir novas paisagens, novos desenhos, novas respostas e propostas a cada instante. Estar em estado de presença caleidoscópica significa estar disponível e flexível, significa cocriar com o ambiente.

 

Processo de investigação de BICHO no Beco do Jasmim em Lisboa: trabalho com os pés e a paisagem. Fotografia de Thiago Righi

 

4. Um Faro do Que Pode Ser o BICHO — Olhando Para Trás, Olhando Para Frente

 

Não é sobre o que faço, mas como faço e quem sou quando faço. Quem vou sendo enquanto faço. (Neuparth, 2010, p. 13)

 

Percebo que estar no Beco do Jasmim nas condições aqui descritas produziu uma qualidade específica de relação com o espaço e as pessoas. O BICHO era parte do Beco e vice-versa — habitar o Beco era também habitar relações descoladas dos dispositivos de poder, da normatividade (eu dançava em um espaço “não usual” para a dança, ao mesmo tempo que passava a fazer parte daquela paisagem, dia após dia, tornando aquele espaço um espaço também de dança). Portanto, o processo criativo também se ocupou de criar outros tipos de relação do corpo dançante com o Beco do Jasmim e as pessoas de lá: relações libertas, arejadas, despretensiosas, nas quais dificilmente exercíamos qualquer poder uns sobre os outros. A potência estava justamente no ajuntamento, no lado a lado despretensioso que nos entrelaçava naquele espaço. Nós nos conhecíamos na medida em que convivíamos uns com os outros. Se a biopolítica nos aponta para todo o desejo de controle sobre a vida e a morte dos corpos, a profanação aponta para a potência do corpo de escorregar para fora dos grilhões dos dispositivos de poder, criando, assim, uma outra existência (mesmo que temporária, fugaz). Leio a profanação como um movimento, como uma forma de ser corpo movente no mundo. No caso do trabalho com o Beco do Jasmim, a profanação pode ser considerada como o “estar a ser beco”, o “deixar-me ser beco”, e pode abraçar o poder do corpo que lá está para nada, para a dança e para a escuta de toda a potência que o encontro pode revelar. “A importância recai na manutenção do movimento, em manter viva e potente a chance de profanar. Dessa forma, mantemos vivo também o potencial político dos sujeitos” em favor de uma micropolítica do corpo profano (BARROS, 2017, p. 97).

Para além dessas práticas micropolíticas, dançar o BICHO proporcionou-me a experiência do aturdimento do animal quando se depara consigo mesmo enquanto potência de vida (Agamben, 2013). Por fim, este artigo abre-se para a discussão que essa criatura dançante trouxe sobre o aturdimento — por ora, essa é a expressão que melhor comunica a sensação dessa criatura em estado de dança. No entanto, o empenho em colocar em palavras esse estágio do trabalho significa também correr o risco de constringir a experiência. Nesses sete meses de investigação em Lisboa, pude dar-me conta de mim mesma enquanto elaborava-me como um ser em estado de dança: o saborear a potência de vida do animal, encarnada na experiência do BICHO. Essa é uma aposta para a investigação que segue, mais como uma pergunta para ser dançada do que uma resposta pronta e acabada. A possibilidade do aturdimento como procedimento de pesquisa é o que move agora o BICHO por outros territórios, é o que me interessa para as próximas experimentações.

 

Penso que estas perguntas e práticas micropolíticas do corpo na cidade são questões importantes para pensar não só o processo de criação artística, mas também a reverberação desse movimento no contexto em que o processo se insere. O Beco ficou com rastros dessa dança, e o BICHO segue em pesquisa, agora com o território do Beco do Jasmim incorporado em forma de qualidade de movimento — “o movimento criativo é a convivência de mundos possíveis” (Salles, 2006, p. 26).

Compor o BICHO nunca foi um objetivo a ser alcançado porque ele sempre mostrou-se como uma consequência da fisicalidade que se criou com a prática diária no estúdio do c.e.m. e no Beco do Jasmim. O corpo inventa a si mesmo no contato com os outros. E esta será sempre uma pergunta do corpo.

 

NOTAS

[1] Klauss Vianna (1928-1992) foi um artista e pesquisador brasileiro que desenvolveu um relevante trabalho nas artes cênicas do país. O trabalho corporal que teve início em suas pesquisas e práticas corporais foi sistematizado por Neide Neves e Rainer Vianna, publicado por Jussara Miller (2007), hoje leva o nome de Técnica Klauss Vianna e localiza-se no campo da Educação Somática. Embora ainda viva e em constante processo de investigação e desenvolvimento, a Técnica Klauss Vianna foi sistematizada didaticamente em três etapas: Processo Lúdico, Processo dos Vetores e Processo Criativo.

[2] O Eixo Global é um dos tópicos do Processo Lúdico, enquanto os sete vetores ósseos compõem o Processo dos Vetores da Técnica Klauss Vianna. Ambos se referem à organização da estrutura óssea do corpo em movimento, e podem ser vistos em MILLER (2007).

 

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. de Selvino José Assmann. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

_____. O Aberto: O Homem e O Animal. Trad. de Pedro Mendes. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

_____. O Uso dos Corpos: [Homo Sacer, IV, 2]. Trad. de Selvino José Assmann. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

BARROS, Camila Soares de. Profanações – Possíveis contra-dispositivos da Técnica Klauss Vianna. 2014. 56 f. Monografia (Especialização em Técnica Klauss Vianna). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2014.

_____. A Técnica Klauss Vianna: Por uma Micropolítica do Corpo Profano. 2017. 109 f. Dissertação de Mestrado em Educação. UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo, 2017.

BARDET, Marie. A Filosofia da Dança: Um Encontro entre Dança e Filosofia. Trad. de R. Schopke e M. Baladi. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

C.E.M. – centro em movimento (Org.). Pessoas e Lugares. 1. ed. Lisboa: Edições c.e.m. – centro em movimento, 2010.

MILLER, Jussara. A Escuta do Corpo: Sistematização da Técnica Klauss Vianna. 1. ed. São Paulo: Summus, 2007.

NEUPARTH, Sofia. Movimento. 1. ed. Lisboa: Edições c.e.m. – centro em movimento, 2014.

_____. Práticas para ver o Invisível e Guardar Segredo. 1. ed. Lisboa: Edições c.e.m. – centro em movimento. 2010.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística. 2. ed. São Paulo: FAPESP/Annablume, 2006.

VIANNA, Klauss & CARVALHO, Marco Antonio de. A Dança. 3. ed. São Paulo: Summus Editorial, 2005.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

BARROS, Camila Soares de. “Presença Caleidoscópica – Um Estudo de Presença, Escuta e Movimento em Lisboa”. Trad. de Camila Soares de Barros. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do inglês para o português de Camila Soares de Barros

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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