Hans Eijkelboom: São Paulo

 

Categoria: entrevista

Assunto: Hans Eijkelboom sobre o seu trabalho e a sua participação na Bienal de São Paulo em 2012

Data das conversas: 9 e 23 de março de 2012

 

Hans Eijkelboom por Sheila Matthes

 

PETER NIJENHUIS: Em 1971, quando ainda tinha cerca de 21 anos de idade, foi convidado a participar na exposição de Sonsbeek de então, organizada por Wim Beeren. Naquela altura o seu trabalho era conceptual, como aliás continua a ser. Porque é que optou por essa abordagem conceptual logo desde tão jovem, foi algo que herdou da família?

 

HANS EIJKELBOOM: O meu pai era eletricista na PGEM, a empresa de eletricidade daquele tempo, ou seja, era um trabalhador qualificado. Não me lembro de alguma vez ter ido com os meus pais a um museu ou a um teatro. Mas a arte estava presente lá em casa. Há uma fotografia minha, aí com uns catorze anos, deitado soturnamente sobre a cama no meu quarto de adolescente. Atrás podem ver-se diversas reproduções emolduradas de obras de van Gogh. Muito mais importante para mim, sobretudo agora pensando retrospectivamente, foi o facto de os meus pais serem politicamente ativos. Eu cresci no tempo da reconstrução pós-guerra. Todos acreditavam que a vida ia melhorar, que o poder e a prosperidade tinham de ser devidamente distribuídos e que a sociedade era exequível. Os meus pais estavam convencidos que se podia melhorar a sociedade com boas ideias, mas é claro que as boas ideias tinham de ser desenvolvidas. Penso que a minha atitude e os meus interesses, enquanto artista, beberam influência daí. Interesso-me por aquilo que as pessoas pensam, pelas suas ideias e suposições e pelo que aparentemente fazem a partir delas. O que me fascina é o fosso existente entre as ideias e as realizações. O que se percebe é que as pessoas usam as coisas ou agem de determinada forma sem que façam qualquer ideia sobre isso. Nesse aspeto, recebi influências dos meus pais e da minha educação. Também recebi deles o gosto pela fotografia. O pai da minha mãe era fotógrafo amador e como eu, em criança, andava muito com ele, também comecei a fotografar. Aos 18 anos fiz os exames de ingresso na Academia de Breda para ser fotógrafo. Fui admitido mas nunca cheguei a estudar lá. Enquanto rapaz fui membro do movimento juvenil humanitário (Humanistische Jongerenbeweging) e do movimento juvenil pacifista socialista (Pacifistisch-Socialistische Jongerenbeweging). Às sextas-feiras à tarde haviam reuniões nos clubes desses movimentos, na Oeverstraat em Arnhem. Havia chá e café e sentávamo-nos ali, num grupo de quinze a vinte rapazes, e falávamos sobre assuntos previamente determinados. Agora que penso nisso, era coisa muito séria. Através dos movimentos juvenis travei conhecimento com um outro movimento, o “Ban de Bom” [banir a bomba], que protestava contra a ameaça das armas nucleares. Convém lembrar que havia na altura uma verdadeira ameaça de uma guerra nuclear entre o Bloco Soviético e o Ocidente. Esta ameaça mantinha ocupadas pessoas do mundo inteiro. Como estava empenhado no movimento “Ban de Bom” e participava nas manifestações, despertei a atenção dos serviços de segurança interna (Binnenlandse Veiligheidsdienst ou BVD) da altura, que informaram a direção da academia das artes de Breda sobre a minha atividade e esta logo me enviou uma carta onde me fazia saber que eu não seria bem-vindo naquela escola, devido ao meu comportamento social inadequado. Era assim naquele tempo. Numa solução intermédia, fui durante um ano para a academia das artes de Den Bosch e depois disso passei para o Desenho de Monumentos na academia das artes de Arnhem. Os docentes desse departamento, nomeadamente Berend Hendriks e Peter Struycken, foram determinantes para o meu desenvolvimento. O Struycken era alguém que desempenhava um papel de relevo na arte da altura, além de que foi um dos primeiros a fazer experiências no computador. Ele ensinou-me muito na área da arte conceptual, embora eu também fosse muito curioso. Sensivelmente a partir de 1969, o primeiro ano na academia de artes de Arnhem, eu ia frequentemente a Keulen. Aí, não havia apenas museus, mas também algumas galerias, algo que ainda haveria de conhecer desenvolvimento nos Países Baixos. Em Keulen e em Krefeld, na Casa Lange, que eu considerava formidável, vi obras de artistas como Piero Manzoni, Günter Uecker, Otto Piene e Yves Klein.

 

PETER NIJENHUIS: Todos os nomes que refere são de artistas europeus. A partir de meados dos anos sessenta já deveria ser possível encontrar os trabalhos minimalistas e conceptualistas de norte-americanos em alguns lugares. Também os viu na Alemanha?

 

HANS EIJKELBOOM: Não me recordo de, no tempo de que falo, quando ia a Keulen, haver muita arte norte-americana que se visse. A primeira exposição de Carl Andre que vi foi nos Países Baixos. Para além de Keulen, eu também ia obviamente a Amesterdão, ao museu Stedelijk e à Galeria Art & Project que tinha aberto portas em 1968. Na Art & Project vi exposições que se revelaram muito importantes para o meu percurso. Ali expunham artistas que deram um contributo internacional no âmbito da arte minimal, da arte conceptual, da land art. Foi também na Art & Project que travei conhecimento com a obra de Ger van Elk, de Marinus Boezem e de Jan Dibbets, e também estes trabalhos me alargaram os horizontes.

 

PETER NIJENHUIS: Como é que logo aos vinte e um anos de idade debuta diretamente na exposição de Sonsbeek e o que é que lá expôs?

 

HANS EIJKELBOOM: Um dia, o Peter Struycken perguntou-me se eu tinha documentação do meu trabalho. Sem eu saber, mostrou essa documentação a Wim Beeren que se encontrava a preparar a exposição de Sonsbeek de 1971 e Beeren achou que havia ali qualquer coisa. Agora que penso nisso, o que mostrei era interessante, mas nada de muito extraordinário. Peter Struycken e Berend Hendriks consideravam que os artistas, sobretudo aqueles que eles tinham formado no seu departamento de desenho de monumentos, em Arnhem, tinham de integrar equipes de concepção de arquitetos e engenheiros urbanistas ocupados com projetos de novas edificações por toda a Holanda. Na prática, eu não cheguei muito bem ao relevante papel do artista dentro das equipes de concepção de novos projetos de construção. Os projetos dos artistas, na maior parte dos casos, são completamente desvirtuados pelos arquitetos e pelos engenheiros urbanistas. Isso fez-me pensar numa abordagem que afetasse o mínimo possível esses profissionais da arquitetura e do urbanismo. Uma das coisas de que me lembrei foi acrescentar um corante, por exemplo, ao tijolo, que fizesse com que um edifício ou todo um bairro mudasse de cor quando chovesse. O meu contributo para a exposição de Sonsbeek de 1971 residiu precisamente numa extensão dessa ideia. Quis mostrar, com dois projetos, como é que se pode trabalhar com o vento como força criadora. O primeiro projeto foi um estandarte com 120 metros de comprimento na chaminé da Steenfabriek em frente ao Museu aan de Rijnoever. Aquela coisa, exposta ao vento, fazia todo o tipo de movimentos e essa era a obra. O segundo projeto foi uma curta-metragem onde eu mostrava como o vento poderia modificar a forma de uma fila de choupos. Involuntariamente, via-se nas imagens que as árvores não abanavam ao vento, como parecia, mas que eram agitadas por uma corda que eu puxava por detrás de um arbusto. Mais tarde, infelizmente, o filme perdeu-se, às mãos de Frans Haks, o malogrado ex-diretor do museu de Groningen.

 

Photo Note August 24, 1997 • Hudson River Park, New York de Hans Eijkelboom

 

PETER NIJENHUIS: As duas décadas em que cresceu e deu os primeiros passos como artista, os anos sessenta e setenta do século passado, foram tempos de otimismo e de grandes mudanças. As antigas relações sociais são colocadas em questão. A prosperidade disparou, o número de estudantes no ensino superior aumentou e a construção industrial disparou. Também na arte houve grandes mudanças, se não até uma ruptura ou reviravolta radical. Os artistas opunham-se ao subjetivismo da geração precedente. Já não era a realidade suprema, mas os factos nus e crus do quotidiano que estavam no centro das atenções. Através de todo o tipo de procedimentos previamente definidos, os artistas experimentavam uma abordagem mais objetiva e marcante. Esta oposição ao subjetivismo romântico também o influenciou?

 

HANS EIJKELBOOM: Não. Nunca vivi com a ideia de que estava a experienciar uma ruptura histórica. Acho que sou demasiado novo para isso. A geração que me precedeu, e aqui em Arnhem foram artistas como Marten Hendriks e Ad Gerritsen, já há muito que se debatiam para afastar a antiga noção de arte. Quando eu comecei como artista, esse caminho já estava aberto. Acima de tudo, eu sentia-me livre. Só queria desmaterializar a arte. Não queria fazer mais objetos, mas registar coisas em fotografias e depois utilizar essas fotografias em exposições e livros. Pensava eu que dessa forma tornava a arte acessível a um maior número possível de pessoas. Nos anos sessenta e setenta, muito mais que na atualidade, a arte era um forte fechado e foi nessa altura que começou a luta para aumentar a participação artística, a democratização da arte. Não podemos esquecer-nos de que nos anos sessenta e setenta reinava um clima social progressista e de esquerda. Agora até se fala disso com desdém, mas o que muitos parecem esquecer é que mesmo os partidos de direita daquele tempo falavam em modernização, renovação e democratização. Naquelas circunstâncias e naquela altura nada havia de absurdo naqueles objetivos, embora se tenham atingido menos do que se esperaria.

 

PETER NIJENHUIS: Não obstante, utilizava (e continua a utilizar) um meio a que recorrem os artistas minimalistas e conceptuais para reduzir as influências subjetivas e ideias preconcebidas em prol de um registo mais ou menos objetivo dos factos. Esse meio é o procedimento. Antes de dar início a um projeto, determina como vai fazer e para onde direciona a atenção. Pode dizer-nos como usa esse meio e com que objetivo?

 

HANS EIJKELBOOM: Os procedimentos que idealizo e executo são simples. Para um dos meus projetos fui a Hengelo. Dei por lá umas voltas e, tal como já tinha decidido, pedi a alguém, que eu achei atraente, na rua, que me indicasse outra pessoa que essa pessoa, por sua vez, achasse atraente e assim sucessivamente. Fotografei essas pessoas uma a uma e reuni todas as fotografias num livro. Numa fase posterior, pedi às pessoas que me indicassem não só outra pessoa que achassem atraente, mas também uma pessoa que considerassem feia. Para um outro projeto procurei pessoas que já conhecia e que não via ou com quem já não falava há algum tempo. Pedi-lhes que descrevessem o que é que achavam que me teria acontecido. Como seria de esperar, obtive respostas muito diversas. Uma pessoa pensava que eu me tinha tornado num idealista, uma outra disse que sempre pensara que eu tinha acabado por ser um irrepreensível funcionário bancário. E tentei documentar fotograficamente, o mais possível, todas essas ideias. Fiz autorretratos como idealista, como funcionário bancário e como piloto de um caça a jato. Para um outro projeto pedi a pessoas que fossem comigo ao centro da cidade e que indicassem exemplos típicos de tipos de pessoas, o punk típico, o ricaço típico ou o pobretana típico. Registei em fotografia esses tipos que me indicaram e compilei-os num livro.

Com estes projetos que referi, eu pretendia tornar visível o que é mais ou menos invisível. Constato daqui um facto complexo: desenvolvemos seguramente um sentido muito forte da autonomia do indivíduo no Ocidente. Apreciamos o pensamento de cada pessoa ser senhora de si mesma. Somos de nós próprios, não somos de mais ninguém. Nos limites da civilidade, fazemos o que quisermos. Obviamente isso não impede que as pessoas sejam também seres sociais e públicos. Mostramo-nos na rua, em público. Deparamo-nos com o olhar dos outros sobre nós. Temos consciência e sentimos que esse olhar não é neutro nem despreconceituoso. Os outros olham-nos e avaliam-nos. Carimbam-nos, rotulam-nos. E nós fazemo-lo aos outros. Embora não tenhamos muita consciência disso, ou não queiramos tê-la, entramos no jogo, e isto apesar das nossas ideias sobre a nossa própria independência individual. O sinal mais claro é o vestuário. Peças de roupa verdadeiramente originais, que não respeitem qualquer cânone além de um gosto individual muito pessoal, não são bem vistas. A maior parte do vestuário assemelha-se entre si e é conforme um ou outro padrão. Por outras palavras, vestimo-nos segundo um determinado código social que é entendido pelos outros. Somos peões num jogo social muito complexo e muitas coisas influenciam o decurso desse jogo. Além do olhar dos outros, há ainda as expectativas dos outros e as nossas ideias sobre o que os outros possam achar bonito ou feio. É a esse jogo, e às influências sobre ele, que eu quero dar visibilidade com os meus projetos. Porém, esse tornar visível também não dá respostas concisas a perguntas muito concretas. Aquilo que eu torno visível gera um fenómeno para o espírito, as pessoas geralmente não ficam impenetráveis mas deixam-se influenciar nos seus comportamentos e na sua vida. Suscita questões que, na minha opinião, merecem ser refletidas. Os resultados dos meus projetos, ou pelo menos de determinados aspectos deles, são para mim, aliás, um motivo para encetar mais projetos.

 

Photo Note October 4, 2005 • Henan Nan Lu, Shanghai de Hans Eijkelboom

 

PETER NIJENHUIS: A fotografia é sobretudo utilizada para registar algo importante: um ente querido num acontecimento especial ou um lugar particular num momento especial. Em 1992 deu início a um projeto que durou até 2007. Nesse projeto, Fotonotities [apontamentos fotográficos], a fotografia desempenha um papel diferente do habitual. Fez séries de pessoas e grupos de pessoas que, de algum modo, apresentam semelhanças entre si no aspecto, na atitude, no comportamento. Ou seja, não usou a fotografia para demarcar pessoas ou coisas, mas para as poder comparar em séries. Pode explicar-nos o que é que o levou a faze-lo?

 

HANS EIJKELBOOM: Na base do projeto que iniciei em 1992 estiveram várias ponderações. Uma das questões com que me defrontei foi qual era para mim o cerne e a peculiaridade da fotografia enquanto meio. A forma como a fotografia começou por ser usada derivara da pintura, mas as circunstâncias e as particularidades da pintura são técnicas, artísticas e socioculturais, muito diferentes portanto das da fotografia. Esta já é uma história velha, mas então o que é que é específico e próprio da fotografia? Para mim é o registo. Ao concluir isso, cheguei ainda a um outro pensamento, ou melhor ainda, a um desejo. Eu queria fazer um espelho da sociedade da qual eu julgo ser um produto. E precisamente o que eu disse sobre o jogo social, no jogo entre o indivíduo aparentemente autónomo que se codifica mediante vestuário e comportamento para ser entendido pelos outros, o consumo desempenha um papel importante. E não consumimos apenas individualmente. Também mostramos o que consumimos, consciente ou inconscientemente, aos outros e os outros, aliás, também manifestam muito interesse nisso. Em todo o caso, quando ando pela rua tenho os olhos bem abertos. Na rua, principalmente nas ruas de comércio, percebemos como devemos parecer, ou não devemos, e o que ainda podemos mudar em nós. Somos bombardeados com informação e compras. É o lugar onde aprendemos alguma coisa sobre o mundo atual e sobre a forma como o mundo se desenvolve substancialmente aos meus olhos neste momento. Posso afirmar que estou de fora ou acima disso, mas então terei de me considerar a mim mesmo como o lunático. Se me tivesse perguntado há dez anos se eu alguma vez andaria de sandálias, teria dito convictamente que não. “Não, claro que não!” Cinco anos mais tarde eu já tinha umas, porque naquela altura estava na moda, em determinados círculos, usar as sandálias certas. Eu queria colocar sobre a mesa todo este fenómeno, a rua de comércio como o lugar onde o consumo exerce um poder em formação, e queria torná-lo visível. O procedimento era simples. Meter-me durante algumas horas numa rua de lojas de comércio. Fi-lo primeiro em Arnhem e depois, quando me mudei para Amesterdão, na Kalverstraat [uma das principais ruas pedonais de comércio na capital holandesa], bem como em Nova Iorque e noutras cidades. Primeiro andava algum tempo numa determinada zona comercial até algo me chamar a atenção, como por exemplo a quantidade de mulheres com um casaco de cor vermelha. Tomava uma informação desse tipo como tema do dia e esse constituía o meu ponto de partida. Agrupava as fotografias em séries e as séries por vezes davam-me novos temas. Veem-se mulheres na rua sozinhas, mas também se veem muitas mães e filhas e mães e filhas em que uma delas está ao telefone. Veem-se homens com uma t-shirt colorida ou impressa e homens com uma t-shirt impressa e um café na mão. E eu fiz séries com todos estes tipos característicos. Em alguns casos são visivelmente sinais do comportamento social e de consumo que se espalharam pelo mundo inteiro desde os anos noventa.

 

PETER NIJENHUIS: Podemos dizer que as Fotonotities relativizam as particularidades do indivíduo. Mas noutros projetos sucede o inverso. Em 2001, participou na exposição de Sonsbeek, organizada sob o nome “Locus Focus”, por Jan Hoet. Para essa exposição, fotografou com Peter Spaans casas, ruas, jardins, praças e pátios interiores ao longo da linha de autocarros de Arnhem. Essas fotografias estão publicadas no livro Waar de bus ons brengt [Onde o autocarro nos leva]. Uma parte das fotografias foi tirada em zonas de edifícios de construção uniforme do pós-guerra. É digno de nota que, mesmo nessa aparente uniformidade, parecem observar-se nessas fotografias muitas particularidades e lugares facilmente destrinçáveis uns dos outros. Pode dizer-nos como chegou até esse projeto? 

 

HANS EIJKELBOOM: Eu fui criado em Arnhem Zuid, num bairro construído nos anos cinquenta do século passado. Era um ambiente bastante monótono e desprovido de estímulos. Penso que o facto de ter crescido num ambiente assim contribuiu para o meu interesse pela arquitetura e pelo urbanismo. Também influenciou a minha posterior decisão de ir estudar Desenho de Monumentos em Arnhem. Como é que se pode mudar um ambiente assim ou o que é que se pode apreender dele? Independentemente dessas questões, sempre me interessou o ambiente de construção; e seguramente também os bairros novos do pós-guerra. O mesmo dirá Peter Spaans, creio. Fui muitas vezes com Spaans a Nova Iorque, onde passeávamos horas a fio. O que se pode observar em Nova Iorque e noutras cidades é que estão sempre dois poderes em ação. É concebido um ambiente atrás do estirador, que de seguida é construído. Mas as pessoas apropriam-se disso, fazem pequenas e grandes intervenções e assim surge uma determinada particularização. Tanto eu como o Peter Spaans nos interessamos por esse tipo de fenómenos, que muitas vezes são rapidíssimos, e foi desse interesse que nasceu também o projeto para a Sonsbeek de 2001. 

 

PETER NIJENHUIS: Acabou de dizer que, nos anos setenta, pretendia desmaterializar a arte. Significa isso também que queria abolir o museu como quadro cultural? 

 

HANS EIJKELBOOM: Não. Nos anos setenta tratava-se de mudar o museu. Queríamos retirar ao museu o caráter cerimonioso e fechado que possuía. Nunca ninguém pode fazer seriamente um apelo à abolição do museu. Amiúde vi as exposições mais belas precisamente em museus. Para o meu próprio trabalho é essencial expor em museus e galerias. São os sítios onde o público vem ver e onde vêm os críticos e a imprensa. O meu trabalho só ganha sentido na medida em que as pessoas o veem, falam dele e leem e pensam sobre ele. Quando digo que os museus e as galerias são indispensáveis para o meu trabalho, isso não significa contudo que eu considere que fora do museu ou da galeria não existam locais interessantes. Pode-se sair dos caminhos previamente traçados e começar num bom espaço de exposições fora das instituições, como o Lokaal 01 em Breda inaugurado em 1981 para, como se disse na altura, “tornar pública a obra de arte”. 

 

Photo Note May 5, 2012 • Centro, São Paulo de Hans Eijkelboom

 

PETER NIJENHUIS: O que é que vai fazer em São Paulo? 

 

HANS EIJKELBOOM: O curador principal Luis Pérez-Oramas quer expor o meu trabalho, juntamente com o do fotógrafo alemão August Sander, no último piso do edifício da Bienal. August Sander, no início do século passado, estabeleceu o objetivo de mapear toda a ordem social do seu tempo através de retratos fotográficos.

O que ele tinha em mente era um total de 45 pastas de arquivo, cada uma com 12 retratos de tipos, ou seja, retratos de representantes de profissões e ofícios. Nunca conseguiu concluir o projeto, mas ainda assim é considerado uma obra-prima da fotografia e um importante documento sociológico e histórico. O curador principal Luis Pérez-Oramas escreveu-me a dizer que o seu sonho seria expor umas boas 638 fotografias da autoria de Sander. Nunca se fez uma exposição tão abrangente! E Pérez-Oramas quer expor o meu trabalho conjuntamente com o de Sander. Aos olhos do curador, as minhas Fotonotities representam para a atualidade aquilo que a obra de Sander representou para o séc. XX. Pelo menos foi isso que Luis Pérez-Oramas me escreveu no convite. Não preciso de dizer o quanto me senti lisonjeado, mas para além disso, Pérez-Oramas tem acima de tudo um plano interessante. E esse interesse reside também na abordagem de August Sander. Ele trabalhou num tempo em que as circunstâncias sociais e económicas se alteravam com menor rapidez que agora e em que havia mais certezas sobre a identidade social de cada qual. Sander ainda podia procurar sinais característicos de classes profissionais e estratos sociais para criar daí um retrato típico e apresentar, sob forma visível, a totalidade do cosmos social. A grande força da obra de August Sander reside no facto de o artista ter tornado visível um conceito social mediante um conceito artístico. 

 

PETER NIJENHUIS: E, na sua opinião, que relação existe entre o trabalho de August Sander e o seu? 

 

HANS EIJKELBOOM: Para mim é penoso responder a essa questão. Parece arrogante querer estabelecer uma comparação. Não obstante, farei uma tentativa. A minha pessoa e o meu trabalho são o produto de um tempo completamente diferente daquele em que Sander viveu. A pressão e disciplina que, no tempo de Sander, asseguravam que cada pessoa ocupasse o seu devido lugar no sistema social, já desapareceram entretanto em grande medida. Os mecanismos visíveis de pressão foram substituídos por outros mecanismos sociais muito mais difíceis de manipular. Na sociedade moderna, o poder torna-se o mais invisível possível. O poder cria a ilusão de que a pessoa autónoma se autodetermina. Já não se trata de obediência e disciplina e sim de uma força moderna que não impõe, mas que ajuda o indivíduo a disciplinar-se a si mesmo e a encontrar o respetivo lugar na sociedade. A mão suave e imperativa, que molda tanto a minha vida como a das outras pessoas, já me mantém ocupado desde o início dos anos setenta. E é nas movimentadas ruas de comércio que essa mão suave auxiliadora está mais patente. É aí que conseguimos ver como ela opera: somos seduzidos a fazer compras que geram a sugestão de que sublinham a nossa personalidade única, pese embora serem artigos de produção massificada. Objetivamente encaradas, muitas formas de consumo comprovam, no máximo, como ainda continuamos a ser membros fiéis da sociedade de consumo. Espero que, quando as minhas Fotonotities puderem ser vistas em São Paulo, ao lado da obra de August Sander, não sobressaiam apenas as diferenças entre o meu trabalho e o dele, mas que se note que essas diferenças também clarificam os desenvolvimentos hodiernos.

 

Mais: http://www.photonotebooks.com

 

Arnhem, Peter Nijenhuis

[tradução do neerlandês por Susana Canhoto] 

 

Link para o texto original: http://peternijenhuis.blogspot.nl/2012/03/hans-eijkelboom-sao-paulo.html

 

 

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