Crônica da Lesbofobia Ordinária

 

Harry C. Ellis, Loïe Fuller em seu estúdio, 1889-1900

 

Contrapor as intimações à invisibilidade, resistir ao desprezo e à negação de nossas identidades pelos zelosos defensores da norma heterossexista é o destino comum às Lésbicas, Gays, Bi e Trans. Quaisquer que sejam nossas vidas, nós compartilhamos esta mesma experiência: que a qualquer momento o domínio heteropatriarcal pode ressurgir com toda a sua violência. Para isso, basta uma banal sessão de cinema.

La Danseuse é o primeiro filme de Stéphanie Di Giusto. Ele tem como tema Loïe Fuller, ícone da Belle Époque, admirada pela avant-garde por sua audácia e criatividade (ela realizou o feito extraordinário de, ao mesmo tempo, revolucionar a dança, patentear os próprios dispositivos cênicos de luz e de costumes e fundar a própria companhia). A audácia de Loïe Fuller também foi a de viver abertamente sua homossexualidade, especialmente com Gabrielle Bloch, que foi sua companheira por muitos anos.

Essa liberdade e ousadia, Stéphanie Di Giusto não hesitou em traí-las, falsificando no filme a vida íntima de Loïe Fuller, querendo a todo custo colocá-la no registro heterossexual… É ela mesma quem o diz: “Tomei também a liberdade de inventar o personagem de Louis d’Orsay, interpretado por Gaspard Ulliel. Eu precisava de uma presença masculina neste filme povoado por mulheres. Loïe Fuller era homossexual e era importante para mim que isso não se tornasse o tema do filme. Louis d’Orsay me toca profundamente: é o homem sacrificado do filme.” [Trecho do comunicado de imprensa.]

De fato, o filme é uma falsificação completa da homossexualidade de Loïe Fuller:

– Gabrielle, que foi sua companheira, tornou-se uma fiel colaboradora, e ficou ao encargo da atriz Mélanie Thierry a tarefa de criar a ambiguidade através de um breve olhar ou de um vago suspiro… sem que Loïe demostre o menor sinal de reciprocidade em relação a essa afeição sibilina;

– O personagem de Louis, puramente imaginário, mantém com Loïe uma relação de protetor/confidente/cúmplice erótico, se necessário… pois era preciso introduzir um ombro masculino, não só para não fazer por demais “filme de mulheres” (catástrofe visivelmente a ser evitada; belo exemplo de autodepreciação), mas também para puxar um pouco a brasa para a sardinha masculina, afligindo-se por esse ser torturado e mal-amado (montagem alternando, no final, entre a sua morte e a prestação de Loïe na Ópera de Paris, com o único intuito de conferir-lhes igual importância);

– Para se desembaraçar de seu evidente heterocentrismo, a realizadora teve o cuidado de colocar um “momento lésbico” no filme, um beijo entre Loïe Fuller e a sua rival Isadora Duncan. Além desse episódio surgir com uma relevância narrativa próxima de zero, podemos notar que ele tenciona sobretudo humilhar o potencial desejo lésbico de Loïe (que, aliás, está mais na ordem do fascínio que do sentimento amoroso): Isadora deixa-se beijar, pede para Loïe se despir e depois a deixa nua, abandonada.

Resumindo: um verdadeiro casal (Loïe-Gabrielle) invisível, uma relação heterossexual montada artificialmente, e uma cena de humilhação lesbofóbica. A dançarina: campeã absoluta do bingo do heterossexismo! Mas ainda não terminou; é preciso mencionar a obstinação da realizadora durante o debate ocorrido em Lille [na França].

No momento do “debate” que se seguiu à projeção, Stéphanie Di Giusto repetiu sem pestanejar e continuamente que ela quis “fazer justiça” à personagem de Loïe Fuller, e dar-lhe mostras de “honestidade” (especialmente ao evitar efeitos especiais nos números de dança). Fomos duas a reagir: ambas observamos que era um insulto à memória de Loïe Fuller falar de honestidade ao mesmo tempo que se ignora a relação dela com Gabrielle e que se introduz uma relação heterossexual fantasiada (pela realizadora); essas suas escolhas sendo, portanto, sinônimos de invisibilidade.

A essas observações legítimas, a realizadora opôs um tom douto, proclamando “eu li a autobiografia [Quinze Anos de Minha Vida] de Loïe, você parece saber um pouco da vida dela, você sabia que ela foi casada?” Sim, e no final do século XIX, casar-se cedo na vida, porque a norma social assim ditava, não invalida a realidade da homossexualidade de Loïe Fuller. Em seguida, Stéphanie Di Giusto acrescentou que não se devia ser “sectário” (sic), que “pode ser-se lésbica e sentir vontade de ter experiências com homens” (re-sic), que ela tinha sua liberdade de artista e que “a ideia não era fazer um Azul é a Cor Mais Quente” (risos na sala), e que, finalmente, o último plano, concebido como uma foto de família, mostrava bem a ligação entre Loïe e Gabrielle. (Nota da Redação: elas estão sentadas uma ao lado da outra num banco e conversam sobre as patentes de Loïe… É realmente uma representação límpida do casal.)

Pode-se notar a argumentação volátil da realizadora, entre invisibilidade assumida no press release e tentativa, quando face à contradição, de demonstrar que vemos, sim, que Loïe é homossexual (ou melhor, bissexual, segundo o filme, mas Stéphanie Di Giusto parece ter dificuldade com a distinção). A segunda intervenção enfatizou que, embora tenha sido sua liberdade artística, o resultado foi a invisibilidade e que ela, a realizadora, tinha uma responsabilidade quanto a isso; Stéphanie Di Giusto, porém, persistiu e reiterou as suas escolhas.

A atriz Soko, também presente, veio em socorro, e disse, sem rir, que “a ideia não era fazer mais um filme lésbico”… a onipresença de lésbicas no cinema havia-me até então escapado. À guisa de argumento de autoridade, Soko também brandiu a bandeira da própria bissexualidade. Era então de se esperar dela algo mais do que uma pose e de uma total falta de empatia a uma fala lésbica.

Nessa avalanche de má-fé e de heterossexismo assumido, acrescente-se igualmente um público silencioso, até mesmo hostil (ruídos de desaprovação à palavra “heterocentrismo”), que não levou em conta nossas falas e continuou o debate como se nada tivesse acontecido. Sensação de ser ondas minúsculas engolidas por um oceano…

O que resta dessa sessão? Náusea. Tristeza. RAIVA.

E a vaga esperança de que, excetuando Stéphanie Di Giusto e Xs héteros segurXs delXs [1], nossas falas possam ter interpelado alguém que ficou em silêncio, mas para quem essas palavras irão frutificar.

O que resta dessa sessão? Náusea. Tristeza. RAIVA.

E a determinação de existir, de resistir a todas as formas de opressão e de invisibilidade.

 

 

NOTA

[1] Nota da Tradução: Utilizei o “x”, como em matemática, para indicar todas as possibilidades de pronomes nas questões de Gênero.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FONVIEILLE, Aude. “Crônica da Lesbofobia Ordinária”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do francês para o português de Fernando L. Costa

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora

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