Carlos Martiel: Um Sussurro sobre o Chão da Pólis

 

Política é um termo que temos distorcido – e não em vão – ao longo dos séculos. Da origem grega politikós, o termo fazia referência à convivência do cidadão na sua relação com a e na cidade, e a todas as implicações que resultam disso: as relações tecidas entre os indivíduos e aquelas que são tecidas entre eles e o espaço que habitam. Afinal de contas – como disse John Donne – nenhum homem é uma ilha, por isso não estamos sozinhos e juntos estamos para nos ajudar [1].

Desde o surgimento da modernidade, no final da Idade Média e início do Renascimento, essa correlação cidadã nos levou a ler o animal político de Aristóteles somente a partir do ponto de vista da condição social do ser humano: alguém que precisa do outro para ser reconhecido e, por sua vez, é reconhecido por esse outro. Mas a noção de política – como é bem observada por Hannah Arendt –, também denota outras coisas. Entre elas, uma ruptura cósmica, uma ruptura na ordem [2]. Com a criação da pólis e o estabelecimento da democracia, a esfera privada da vida (identificada no núcleo familiar) se ligou a uma segunda esfera: o bios politikós, a vida política e a cidadania. Dessa forma, havia duas ordens de existência: uma existência de nível próprio (ídion) e uma existência de nível comunal (koinón). Por um lado, a esfera privada, considerada como um espaço hierárquico e, portanto, aquilo que denota poder (na relação do homem sobre a mulher, do pai sobre o filho), desapareceu da esfera pública, tendo em vista que na dimensão da pólis todos éramos iguais. Assim foi fundado o primeiro espaço de liberdade e reconhecimento da alteridade. Com o advento da modernidade e a legitimação das cidades-estados, surge a esfera social que não é nem privada nem pública, mas, ao invés disso, se configura como uma integração e sobreposição das duas. Desde então, a esfera pública começou a se tornar cada vez mais hierárquica. 

Hannah Arendt, no livro La Condición Humana, observa também que o significado fundamental de política implicava na capacidade de elaborar um discurso sobre o mundo que nos rodeia: Zôon Lógon Échon, um ser vivo capaz de discursar. Ser político e viver na pólis significava que tudo se dizia através de palavras e de persuasão, e não através da força e da violência [3].

Visto isso, podemos dizer – numa primeira instância – que todo artista é político e, dessa maneira, considerando que Carlos Martiel é artista, logo ele também é político. Além disso, podemos afirmar que ele é político por outras razões. Num momento em que o subversivo, o antissistema, o transgressor, o periférico parecia ter um valor tão institucionalizado nas artes assim como as instituições criticadas, o verdadeiramente político – não o panfletário, não o evidente – se mostra como uma virada, um caminho para adentrar outra paisagem. No caso, o discurso que não se impõe violentamente (aquele que não grita, mas sim aquele que sugere) abre possibilidades de leituras realmente amplas acerca dos problemas da esfera social. O discurso que busca a persuasão – e a obra de Martiel é persuasiva – é, talvez nesse momento, uma das formas mais refinadas de subversão.

Nascido em Cuba, em 1989, e formado dentro da arte da performance por Tania Bruguera, que é uma das figuras emblemáticas da arte contemporânea cubana, o artista Martiel é conhecido pelas práticas de violência que exercita sobre o seu corpo. Herdeiro de uma longa tradição de performance, que começou com os Acionistas vienenses – e sem nunca ter atingido o nível escatológico desses artistas –, as suas ações são políticas porque dão visibilidade aos aspectos da realidade à qual todos nós pertencemos. Assim, quando se diz ação política, não queremos com isso dizer ação de vanguarda ou militante, como são as terminologias militares, tão apropriadas pela esquerda, que geralmente gostam tanto de utilizá-las no momento de falar do transgressor na arte. Em Mi Corazón al Desnudo, Baudelaire fez piada de todas essas metáforas que denotam os espíritos orientados para exercer a disciplina, ou seja, o conformismo [4]. A obra de Martiel não é uma obra de vanguarda; muito menos se apresenta como transgressora, embora ela seja. Acima de tudo, não é uma obra conformista. Embora ele use muitos elementos clichês das práticas performáticas (nudez, sangue, violência física e corporal), este jovem artista cubano conseguiu escapar das repetitivas propostas dos trabalhos atuais, o que mostra que o problema não está especificamente na linguagem, mas sim no seu uso. Na poesia, a palavra “lua” foi dita desde muito tempo por Enheduana, quem foi a primeira poeta da qual temos conhecimento e que viveu na Suméria há 4.300 anos. Mas todo grande poeta é capaz de nos fazer olhar a lua pela primeira vez.

E não se trata de originalidades, mas sim de transformar a tradição, de ser capaz de encontrar a forma em que nossa língua irá dizer – aqui vale a redundância – a língua. Dessa maneira, podemos observar que, ao utilizar a linguagem da performance, Martiel desenvolve uma análise e uma relevância. Ao mesmo tempo que há uma capacidade de sugestão de inúmeras possibilidades de leituras abertas para os espectadores, também é possível identificar com bastante precisão as intenções do autor. Com isso, os espectadores são críticos (não quero dizer com isso que é criado um juízo de valor) atravessando o caminho inverso da obra: encontramos o início do rio e a fonte da obra.

Podemos dizer que, na obra de Carlos Martiel, é possível identificar cinco eixos temáticos importantes: a perda da energia vital, o abuso do poder por parte das autoridades, emigração, memória e discriminação versus igualdade. Esses temas compõem, na verdade, uma grande questão: as muitas maneiras como a realidade exerce a violência sobre as nossas vidas e a forma como registramos essas experiências em nossa memória. Suas performances são uma rede, um tecido em que tramas se conectam e dialogam entre si, em que os eixos temáticos estabelecem correspondências e transferências.

No primeiro eixo temático – perda da energia – há duas obras que se destacam. A primeira é Acid Rain, na qual o artista permaneceu de pé e esticado numa altura de vários metros acima do solo com o corpo situado entre dois aquecedores. O seu suor caía constantemente no chão, sinalizando a perda do líquido vital, a perda daquilo que nos compõe e que, nesse caso, funcionava como a metáfora da erosão que sofremos sob pressões da vida cotidiana. Para Martiel, isso é uma questão de forte interesse, porque lida precisamente com o cotidiano quando, em sua aparente normalidade, acontece a transcendência, inclusive quando ela se dá de maneira terrível. Podemos também notar isso em Derrames, trabalho em que o sangue do artista caía em uma poça de petróleo, o que era uma forma de contextualizar esse tipo de desgaste: dois líquidos – duas formas de energia – que geram a combustão de coisas distintas e que no final se perdem, se misturam e se tornam inutilizáveis sobre o chão.

No segundo eixo temático – o abuso do poder por parte das autoridades – as ações performáticas se destacam não somente por aquilo que dizem ou pela forma como são realizadas, mas também por causa do contexto no qual foram criadas: Cuba. Aqueles que estão conscientes da realidade da ilha – e não fecham os olhos diante dela – conhecem a violência do aparelho repressivo de Cuba, o qual é composto desde o conjunto de policiais até os pequenos grupos que, através de atos públicos de repúdio, castigam aqueles que são considerados contrarrevolucionários. Em Cuatro Paredes, Martiel, com o corpo imóvel numa rua da cidade de Havana, recebia spray de pimenta. Cego, ele se concentrava em caminhar e tatear o entorno de uma quadra. Muitas pessoas o seguiam como se fosse uma peregrinação. Assim, a denúncia não estava direcionada somente às autoridades repressivas, mas também tornou palpável a cegueira metafórica de um povo condenado a viver sob um controle que não permite olhar para além da realidade imposta. Contudo, a obra era também sobre a cegueira, o grito silencioso, que une milhares de pessoas através do fio “invisível” da perda de seus direitos essenciais. Em relação ao tema da violência em Cuba, há também a obra Lastre na qual, coberto de lama molhada, Martiel foi espancado com cassetetes da polícia. Na lama, permaneciam os vestígios da violência e de sua memória, da mesma forma como persistem os golpes na psique dos corpos violentados.

Vivemos num mundo onde o excesso de imagens violentas, mais do que alcançar um impacto real nos espectadores, acaba às vezes – e pela sua constante repetição – se transformando num espaço de indiferença e de hábito. Como produzir uma imagem que se distingue da informação de massa do sensacionalismo? Desde onde é possível falar para romper os limites da excessiva exposição cotidiana? No século XX, a maioria das imagens que abriram os olhos do público diante dos horrores da realidade sociopolítica, nacional e internacional, não mostravam a violência de maneira evidente. É inevitável lembrar, por exemplo, a imagem de Kim Phúc, a menina vietnamita banhada em Napalm, que foi fotografada por Nick Ut durante a guerra e que conseguiu mobilizar as manifestações antibélicas muito mais do que todas as notícias que, até então, haviam chegado do Vietnã. Fotografar as feridas em seu corpo – uma imagem aparentemente mais escandalosa – ou o momento em que os soldados a queimavam talvez não fosse tão chocante quanto a imagem do gesto devastador no seu rosto e a absoluta fragilidade do seu corpo nu.

Da mesma forma, as imagens de Lewis Hine, no início do século XX, foram capazes de comover a opinião pública, resultando na criação da Lei de Proteção do Trabalho para o Menor nos Estados Unidos. Isso não se deu pelo fato de suas fotografias mostrarem explicitamente as crianças trabalhando nas fábricas, mas sim porque o seu trabalho se direcionava, de maneira inteligente, para revelar a inocência de todos esses rostos que, desde quase um século atrás, continuam nos olhando e nos interpelando desde a sua visão frontal. Os exemplos são muitos, incluindo as obras de arte contemporâneas. Isto é, existe na capacidade de sugestão muito mais peso do que aquilo que se diz abertamente, pois a sugestão brinca com a capacidade individual de conceber o horror. Isso se torna uma questão fundamental para compreender as performances de Martiel, nas quais o terrível é trabalhado sempre a partir de uma ética do silêncio, do inusitado, da entrelinha. Já sabemos que, para os bons leitores, poucas palavras bastam.

O terceiro eixo temático – eu busco estabelecer essas categorias a partir da minha experiência, como espectadora, para colocar ordem numa produção tão extensa e com muitas arestas – tem a ver com os problemas específicos da emigração. María Zambrano dizia:

 

[…] Precipita-se, portanto, sobre o exilado toda a ambiguidade da condição humana; eles a assumem ou então são obrigados a assumir pelas demais pessoas. Dessa forma, se tivesse que responder por todos que foram interrogados, seria necessário vivenciar tudo aquilo que lhe atribuíram ser, seria necessário encarnar cada um desses personagens e interrogar, dizer […] a verdade que ele está vivendo. Isso resultaria ver esses personagens como eles são: máscaras. [5]

 

Muitas das performances de Martiel falam sobre as máscaras do exilado, do emigrante – e sobre as condições em que ele está vivendo. Em especial, a obra A donde mis pies no lleguen, criada em 2011, ressalta os problemas do êxodo cubano. Anestesiado e deitado num barco que flutuava sobre o rio Almendares, em Havana, e com a ideia de que o mesmo fluxo da corrente o faria chegar até o mar, o artista realizou essa obra num período em que se evidenciava um movimento de saída do país por parte da população cubana, a qual utilizava os mais diversos mecanismos que variavam do nível dramático ao surreal: qualquer coisa era possível para garantir a fuga. Cinco anos antes, de acordo com as estatísticas oficiais, o número de barcos que chegou às margens de Miami foi de 20.000 pessoas, sendo que 2007 foi o ano com a maior taxa. É importante mencionar que as pessoas que morreram no mar não estão contabilizadas em nenhum registro oficial. É a ilha, está ali – para dizer nas palavras de Virgilio Piñera – a circunstância maldita da água em todos os lugares; está o mar, a barreira monstruosa, o abrigo e a prisão.

Ao longo de aproximadamente quatro horas, Martiel permaneceu inconsciente dentro do barco. Um estado de inconsciência que pode ser interpretado de diferentes maneiras: desde estar anestesiado (dopado, a perda de controle sobre si mesmo) pelas diversas circunstâncias; até a proximidade com a situação de morte das muitas pessoas que fugiram atravessando o mar. Por outro lado, como forma simbólica, o barco possui relação com o rumo da vida. Com isso, é possível também interpretar o questionamento sobre o próprio destino, o próprio norte, o viver dormindo no meio de uma realidade cuja única certeza é o fim.

Simiente, uma peça apresentada na Defibrillator Gallery, em Chicago, misturava sobre o corpo do artista sangue doado por vários emigrantes, pois emigrar é se misturar e é também – como sugere o título da obra – a origem de uma nova vida. Mas a performance também era uma metáfora de alegoria em relação aos matadouros situados nas encostas do rio Chicago, que acabaram contaminando a água desse local, sendo possivelmente um comentário a respeito da ideia de que se misturar é se contaminar. Essa ideia, que parecia uma postura típica dos habitantes locais, também era vista, em muitos casos, como uma postura daqueles que chegam num novo lugar e acabam perdendo a pureza da sua cultura original. Porém, sem mistura não há vida possível, pois somos aquilo que nos une e nos funde.

A questão de se misturar também aparece em Horror Vacui, peça que foi apresentada em Liverpool no ano de 2010, na qual o artista costurou na sua própria pele uma vestimenta de moda extremamente cara. Emigrar – aqueles que já vivenciaram essa experiência sabem do que se trata – é sempre um ato de reajustar e reconstruir a identidade. Afinal, na sua origem etimológica, máscara não quer dizer nada mais do que persona: o rosto que criamos para estar no mundo. Nesse ato de reconstrução, algo se perde e algo se ganha. Adaptar-se – como as ciências já comprovaram – é um mecanismo de sobrevivência. Para isso, os caminhos, que são muitos e complicados, passam também pela camuflagem: mimetizamo-nos para evitarmos sermos vistos como alvo de ataques. Somos e não somos, não somente um estrangeiro para os outros, mas também um estrangeiro de nós mesmos. Mover-se é sempre uma forma de desabitar-se e repovoar-se. Algo se divide, um eu que acreditamos ser conhecido e que a partir de sua divisão nos recriamos. O emigrante tem que se adaptar ao novo, pois o novo não pode se adaptar a ele. O emigrante é um iniciante que dá um novo passo num caminho, assim como evidenciamos o gesto simbólico muito potente, que é o ato de costurar sobre a própria pele uma vestimenta cara, que se torna um elemento estranho em relação às roupas e costumes de um caribenho. É criada uma nova pele, um ato ritual que rememora os acontecimentos nos quais os xamãs e os caçadores vestiam a pele de um animal para incorporar os seus poderes e, acima de tudo, se transformarem nesse animal. A transformação é, afinal, um fim e um começo inevitável para todos que saem do seu lugar de origem. 

Embora não seja diretamente ligado ao exílio – ainda que isso faça parte de sua vida –, o trabalho de Martiel com a memória é outra linha ou lente através da qual podemos ler e observar o conteúdo de suas produções. Não somente a memória como armazenamento de sua história pessoal, mas também especialmente como aquela que carrega uma herança ou uma cultura. Em relação a isso, podemos comentar a obra Prodigal Son, que foi apresentada em Liverpool no ano de 2010. As medalhas militares do seu pai – que foi condecorado como herói de Angola e não recebeu nenhum reconhecimento pelo seu feito – foram grudadas na pele do artista como uma indicação sobre a pouca importância que as condecorações possuem como referência aos valores externos, em contraposição aos valores internos. Filho pródigo cuja única herança que carrega é aquela de nível cultural e familiar.

Suas duas últimas performances se concentraram precisamente sobre essa herança que não inclui somente uma série de valores e tradições como também a cor de pele. Ambos os trabalhos são – cada um a seu modo – uma crítica ao racismo e à marginalização, abrindo uma quinta linha discursiva que trabalha sobre a igualdade de direitos. Em Punto de Fuga, apresentado em Nápoles, o artista permaneceu de pé durante um longo tempo num museu. Do seu corpo saía uma multidão de fios que se estendiam até as paredes e construíam uma imagem que lembrava o quadro O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci. No entanto, essa versão do homem vitruviano tinha uma particularidade: a sua pele era negra e, com isso, a obra se estabelecia como uma crítica silenciosa ao eurocentrismo, revertendo o processo que, durante mais de quinhentos anos – tempo compartilhado pelo desenho de Da Vinci e pela chegada dos primeiros escravos africanos na América –, legitimou a supremacia do homem branco. 

Sua peça mais recente, Condecoración Martiel, Carlos, mostra uma medalha muito parecida com aquela que o governo cubano outorga aos cidadãos proeminentes. Dentro dessa medalha, há um pedaço da pele do artista, que foi extraída cirurgicamente e posteriormente dissecada por um conservador. O galardão foi acompanhado por um vídeo da cirurgia e por fotos dos detalhes técnicos da obra, as quais foram tatuadas ao redor da cicatriz pós-operatória. Ao fazer uso de uma ironia muito refinada e através de elementos precisos e simples, Martiel faz referência direta a algumas autoridades (cubanas) que, apesar de estarem constantemente proliferando discursos sobre a desagregação, fizeram realmente muito pouco para melhorar a vida da população negra da ilha, a qual continua vivendo em péssimas condições socioeconômicas, ainda que possuam os mesmos deveres e direitos de cidadãos que os demais. Em 2013, Roberto Zurbano, Diretor do Fundo Editorial da Casa das Américas, denunciou a situação dos negros em Cuba para o New York Times, o que resultou na sua demissão do cargo. Sendo de alguma maneira um questionamento sobre o ocorrido, Martiel concebe esta peça: a condecoração que busca dignificar a vida das muitas pessoas que, por estarem em Cuba e por sua cor de pele, vivem ainda em situação de marginalizados.

Um dos legados deixados pelo romantismo é, precisamente, a relação arte-política: o artista é convocado para questionar o incômodo do mundo, tornar público o que está errado no funcionamento do sistema. É possível proferir gritos, fazer barulhos excessivos, mas os gritos são ensurdecedores. Questionar o incômodo é também um espaço para a metáfora: quando imagens aparentemente irreconhecíveis se chocam, elas produzem faísca. Em A Insuportável Leveza do Ser, Milan Kundera fala de uma memória poética na qual as imagens que amamos ou que nos perturbam se inscrevem para ser. É aí onde as imagens criadas por Martiel resistem vibrando. Observá-las somente de um ponto de vista dramático é uma maneira de reduzi-las, pois nelas também há uma forma de beleza. A beleza – Rainer Maria Rilke disse melhor do que qualquer outro – não é nada mais do que esse grau tão terrível que podemos suportar.

Cada uma dessas performances é, se assim alguém desejar, um ritual de iniciação: o iniciado deve atravessar uma série de provas concretas para provar que é apto a crescer e se integrar, já como adulto, na vida em sociedade. Na sua obra, talvez não tão profundamente, há uma postura sacra, um olhar místico, diante da vida. Cada ato é uma pequena cerimônia em que o artista-oficiante abre as portas – inclusive para si mesmo – diante da compreensão do que se move por trás da realidade.

Em suas propostas, encontraremos um indivíduo que não se isola, que não atua somente pelos seus próprios interesses, mas sim um indivíduo ousado que luta e se responsabiliza pelos outros seres humanos. Uma obra livre porque atua sobre o chão da pólis, deixando de ser memória pessoal para se transformar em memória coletiva e, sussurrando, abre as nossas caixas como se fossemos um gabinete de curiosidades. Uma obra verdadeiramente política, pois implica a correspondência com o seu espaço e com aqueles que o compartilham. Verdadeiramente política já que, na performance, ação e discurso são, acima de tudo, inseparáveis.

Embora inserido no viés contemporâneo, como performance e conceito, o trabalho de Martiel é capaz de construir imagens que vão além das circunstâncias da atualidade e se convertem não em mera declamação sobre si próprio, mas tornam-se capazes de criar diálogos com a história do mundo, da arte e das vivências do outro. Uma obra que apela para o sentido de integração, sendo por isso subversiva num momento em que o autorreferencial parece estar dominando todos os campos da criação. Também é subversiva porque busca subverter a ordem política do momento, quando – e diferentemente da antiguidade – o espaço hierárquico, típico da esfera privada, parece ter se colocado acima da ordem comum, democrática, sobre a igualdade entre os cidadãos. Ou ainda pior, o idiotikós acabou prevalecendo sobre o politikós. Se a arte é capaz de criar uma nova ordem, um novo cosmos, na obra de arte deste artista cubano isso adquire uma dimensão social. Não na acepção imediata e talvez panfletária do sentido social, mas sim porque é direcionada para e desde o koiné; para e desde o coletivo.

Martiel é um homem de seu tempo e a ele se dirige, porém as suas práticas artísticas vão além disso para se inserir na complexa dimensão humana e na forma como a sua arte é enunciada. Sua obra não se sujeita nem nos sujeita, mas é sempre um convite para nos reconhecermos. E se ser livre é precisamente não estar submetido ao mando de ninguém e não mandar, se ser livre é desatar todos os nós, podemos dizer que, de fato, a obra de Martiel aspira – acima de todas as coisas – à liberdade. Ela lhe pertence, ela lhe canta. 

 

NOTAS

[1] Nota da Tradução: A expressão utilizada no texto original em espanhol é: ningún hombre es una isla, siempre las campanas doblan también por nosotros. Trata-se de uma expressão cuja metáfora quer dizer que a política é uma esfera que cobre tudo, como um sino que não toca para um, mas sim para todos, a menos que estejamos isolados como uma ilha.

[2] A utilização do termo kosmos para designar a totalidade do universo aparece pela primeira vez num fragmento de Heráclito. Antes disso, o termo designava a ordem institucional ou bélica ou então qualquer tipo de ordem, pois a palavra kosmos se deriva do vocábulo grego kosméo: ordenar.

[3] Hannah Arendt. La Condición Humana. Barcelona: Ediciones Paidós, 2005, p. 45.

[4] Charles Baudelaire citado por Antoine Compagnon em Las Cinco Paradojas de La Modernidad. Caracas: Monte Ávila Editores, 2010, p. 45. 

[5] María Zambrano. La Razón en La Sombra: Antología Crítica. Madrid: Ediciones Siruela, 2004, p. 462.

 

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. La Condición Humana. Barcelona: Ediciones Paidós. 2005.

COMPAGNON, Antoine. Las Cinco Paradojas de La Modernidad. Caracas: Monte Ávila Editores. 2010.

ZAMBRANO, María. La Razón en La Sombra: Antología crítica. Madrid: Ediciones Siruela. 2004.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MARTÍNEZ, Kelly. “Carlos Martiel: Um Sussurro sobre o Chão da Pólis”. Trad. de Davi Giordano. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, mar. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do espanhol para o português de Davi Giordano

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2015 eRevista Performatus e a autora

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