Carlos Leppe, A Estrela

 

O exercício da crítica de arte é normalmente entendido como uma forma de tradução e uma maneira de tornar o visível compreensível. Esta disciplina, se assim podemos chamá-la, é uma forma de diálogo, em que a ferramenta fundamental é a percepção. Esta, com a ajuda do exercício da erudição, criará o sentido da obra.

Este discurso implica, consequentemente, uma ordenação de níveis descritivo, analítico e, por último, avaliativo. Tal sequência deve levar em consideração todos os fragmentos da obra para que, a partir de suas partes, seja possível construir a unidade do seu conjunto.

A partir desses princípios é que ouso me aproximar do exercício da crítica, declarando uma inquietude que toma tempo ao dar voltas em minha cabeça. Tenho experiência de leituras sobre Carlos Leppe, conheço a sua obra e ouvi as coisas que são comentadas ao respeito do seu trabalho. Isso me permite afirmar que esse artista parece ter realizado somente uma performance através de todos os seus trabalhos, autodeclarando-se assim uma verdadeira estrela da arte chilena.

O conceito de estrela [1] deve ser entendido como aquele artista que pensa o seu próprio eu, sendo um eu de gênio criador: um ser excluído e iluminado, bastante consciente do que vive o seu tempo para assim ser aceito pela sociedade que lhe deu a luz, e que se coloca a si próprio acima da cabeça dos demais mortais. Um conceito muito romântico, porém, nesse caso, identifico-o como uma atitude transposta e traduzida para o contexto da segunda metade do século XX, em que os gênios iluminados do século XIX se equivalem às figuras admiradas de nosso tempo. No meio de tantas controvérsias, seres considerados talentosos ganham simultaneamente tantos adeptos de sua causa como também difamadores.

Traço uma estratégia que talvez não seja precisamente estruturada, mas que pode ser utilizada para analisar a história artística de Carlos Leppe. Através de passos curtos, ele foi construindo uma dupla trajetória: a coerência de um discurso artístico e político (criado para atuar e ser eficaz no período da ditadura); e sua ascensão à fama (projetada para permanecer no tempo apesar do desaparecimento do inimigo, no fim da ditadura).

Levando em consideração o fio da história [2] como a principal estrutura de análise, assim com é descrito por Justo Pastor Mellado, podemos compreender a forma como Carlos Leppe foi criando a sua imagem como mártir da arte chilena, alcançando o lugar direcionado para a obra de arte e convertendo-se assim na própria obra, ao ser exibido como uma vitrine para receber a admiração do espectador encantado com a genialidade de suas criações e pela luz brilhante de seus trabalhos.

Ao colocar em relação duas de suas performances, consideradas por mim como as mais convenientes, busco dar um novo sentido para este discurso, estabelecendo assim o princípio necessário para desenvolver minha análise.

É possível dizer que, através da sua participação na denúncia disfarçada [3], realizada pela escena de avanzada [4] (noção utilizada por Nelly Richard), não era esperado somente que ele desempenhasse um papel político no ato de protestar contra o regime dominante, mas também que ele desejasse um modelo idealizado de gênio criador, sendo precisamente o modelo de Marcel Duchamp. Um artista que, desiludido com seus companheiros, decide lutar pelo seu nome, projetando a sua obra-prima através da sucessão de várias obras, as quais, se colocadas em contato umas com as outras, descrevem o planejamento que este artista possuía. Isso se reflete nas semelhanças (assumidas ou não) que encontramos em suas performances em relação às obras criadas por Duchamp: A Ação da Estrela e Os Sapatos de Carlos Leppe, que se assemelham às obras A Estrela, de Marcel Duchamp e a transformação da figura deste último artista em Rose Sélavy [5]. As duas performances, quando colocadas em contato, poderiam nos levar a descobrir o discurso oficial (político e artístico), assim como também o discurso pessoal (aquilo que se relaciona com a sua biografia e a sua fama).

Nessas performances, identificamos duas informações essenciais: a destruição do pai e a autoproclamação do sujeito independente. Tais conteúdos se encontram em relação direta com ambas as finalidades de Leppe, e são transmitidos através de suas ações.

A ação da estrela consistiu no re/corte do cabelo em forma de estrela sobre a nuca, re/criando a forma do corte de cabelo redondo no topo da cabeça, parecido com aquele que foi criado por Duchamp. Nas condições da arte chilena, dentro da conjuntura dos anos 1973-1976, tal ação refletia o desejo de criar relação com uma história de arte internacional da qual não havia acesso direto. Isso coloca o artista chileno Carlos Leppe na condição de um monge de ”última tonsura”, que é o lugar mais humilde na hierarquia do convento. O cenário chileno aparece descrito como um claustro dentro do qual os artistas realizam funções de articulação numa economia fechada. Ao criar a referência da tonsura estrelada de Duchamp, Leppe inverte as condições de exclusão do cenário artístico de seu país, passando assim ao estrelato e se convertendo na nova estrela da arte chilena [6].

Com isso, Carlos Leppe possui uma missão principal: denunciar um estado de coisas e mostrar uma situação de seu tempo, enquanto busca colocar em evidência três ideias fundamentais:

 

1) A denúncia que faz sobre o regime ditatorial: ao destruir a bandeira, ele também destrói a identidade chilena. Deve matar o seu progenitor para se livrar do impacto traumático da ditadura;

2) Estabelece uma relação com a arte internacional (tendo como antecedente Marcel Duchamp) e com o seu modelo de inspiração (a imagem atual do artista romântico);

3) Ao ser ele mesmo, o principal sentido da obra se transforma em ser criativo e em objeto de contemplação: o artista gênio.

 

Embora a ação realizada por Carlos Leppe almejasse ser um ato de denúncia e de destruição do pai (assim como Rose Sélavy, que cria a si mesma sem pai e sem modelo de inspiração), além de criar um novo arsenal simbólico para a reconstrução do cenário nacional, o qual se encontrava imerso nesse submundo, observamos também nessa ação um ato de narcisismo intenso, destinado a uma autodeclaração de grandeza e a autoproclamação de ser um gênio.

A denúncia poderia ter sido realizada de outras formas, ou a destruição da bandeira poderia ter sido feita de outras maneiras, mas as necessidades de Carlos Leppe somente se satisfaziam quando ele se transformava no centro da representação. Ainda que possamos identificar algo parecido aos desejos de “alguns jovens artistas que estão se direcionando para a fonte mais próxima, a deles mesmos, para encontrar um material de possibilidades ilimitadas, capaz de abdicar de todas as exigências do artista, à margem da obstinação da matéria inanimada” [7], quando observamos Carlos Leppe, na maneira como ele está vestido de forma pura para uma cerimônia, não consigo imaginar outra coisa do que essas ocultas intenções narcisistas.

A operação conceitual se transforma assim num recipiente de conteúdos simbólicos e misteriosos, como o lobo disfarçado de ovelha. Carlos Leppe se transforma em princesa, em múmia ou em monstro [8], sempre com a intenção de uma mensagem dupla num disfarce duplo. O ser normal não somente se disfarça de artista como também se transforma na obra, transmitindo o conteúdo político que sua época necessita e levando consigo a semente do estrelato autoproclamado.

Justo Pastor Mellado analisa essa ação em relação a outro trabalho, Os Sapatos de Carlos Leppe [9] (no qual o artista novamente cita Duchamp como referência), o que nos permite encontrar as evidências que revelam o seu duplo objetivo. Tal finalidade é alcançada na aproximação com a figura de Rose Sélavy, que não possui pai e cria a si mesma ao autodeclarar sua identidade.

Carlos Leppe está travestido, talvez não explicitamente de mulher (como na obra O Cabide), mas está disfarçado em um ser ambíguo e híbrido. Desprezível e fétido, com seu cataplasma de excremento sobre a cabeça, ele está rejeitando tudo o que lhe deu a luz e resultou na sua máxima criação: ele mesmo.

A partir disso, posso refletir sobre a forma como ele, novamente, está destruindo o seu pai através do cartaz explicativo: “Eu sou meu pai”. O resultado é uma compilação de todas as suas ações (recompilação do repertório de suas obras que está evidenciada em sua maleta) através de uma declaração fundamental em que ele é o indivíduo que cria a si próprio, e que, convencido naquilo que acredita e deseja, se transforma num sem vergonha.

Nesse sentido, a Ação da Estrela pode ser considerada uma espécie de aviso. Aos poucos, Carlos Leppe estava preparando o seu caminho. Um caminho cheio de sinais simbólicos que podemos acompanhar seguindo o repertório de suas performances. Esses signos, ligados entre si, atuam como um código que possui a frase completa da mensagem política e delatora que a sua obra contém.

Tal código, elaborado por Carlos Leppe, necessita de uma coerência. No texto Cuerpo Correccional, o autor Nelly Richard constrói uma lógica através da qual desenvolve uma descrição e uma explicação quase poética das obras de Leppe que antecedem a publicação do livro. A poesia de Richard colocou artisticamente a figura de Leppe sobre um pedestal, deixando, no fundo daquele universo artístico elaborado pelos dois, o desejo do artista de se transformar numa estrela.

Nesse mundo artístico, ele sempre permaneceu próximo das problemáticas ligadas à sua biografia, fortemente marcada pela figura de sua mãe. Em suas performances, Carlos ressalta os acontecimentos marcantes de sua história pessoal (como a indefinição sexual, a discriminação, o abuso carnal e a sensação de castração), que são colocados em contato com a maltratada história nacional (o golpe de estado, a perseguição política e a censura). Essa elaboração é composta por disfarces simbólicos criados pelo artista, que contêm o duplo sentido do seu discurso e de sua meta. Tais disfarces, necessários para se proteger da pressão política e da moral predominante, também conseguem ser úteis para esconder as suas intenções.

Desde a época de Escena de Avanzada, Leppe ingressa nos estudos com a grandiosidade de suas ações. Tornou-se grande e admirável a custa de qualquer coisa: juntando-se ao protesto, destruindo os códigos paternos ou declarando que a nossa história não possui construções tectônicas porque foram destruídas (o que é possível observar quando ele se arrasta descalço e ferido em suas performances). Esse homem criou uma lógica que atravessa toda a sua obra ao denunciar a necessidade que o Chile possui de ter um verdadeiro pai. Isso é notável quando o artista se arrasta descalço, construindo a sua própria imagem e destruindo os símbolos do impositivo poder paterno. Porém, ao mesmo tempo, ele constrói a si mesmo sobre o nada.

Leppe atua como aquilo que se encontra na “ideologia do traidor” [10], que alimenta a sensibilidade da transvanguarda. Da mesma forma como a transvanguarda italiana foi estimulada pela utilização de uma linguagem pura como base que se contamina, na busca de um prazer semiótico que reside na ambiguidade de símbolos, Leppe cria uma nova linguagem com novos símbolos num trabalho intensamente semiótico.

Há um prazer na ambiguidade que encontramos em toda a obra de Carlos Leppe: um novo artista que não aspira necessariamente à linguagem universal, mas sim que se direciona para a sua própria língua, destruindo o simbolismo de seu pai e construindo a sua própria identidade ao criar a si próprio.

Ele se transforma numa estrela com uma luz digna de ser admirada e imitada. Sendo meu interesse realçar este ponto, sem invalidar nem deslegitimar a sua obra, a minha intenção é chamar a atenção para o fato de que, apesar de Leppe cumprir a tarefa crítica da arte contemporânea, o seu objetivo principal já estava estabelecido: exaltar a si próprio, subir no pedestal, ser a obra e objeto de admiração e contemplação. Ele esteve em contato com a crítica política de um regime opressor e, ao mesmo tempo, assumiu fortemente o seu lugar dentro das instituições artísticas oficiais.

 

 

NOTAS

[1] O rock sempre foi uma maneira de expressar o sentimento de liberdade. As diversas figuras criadas pela indústria musical representam um estilo de vida próprio, que inspira outros modos de vida incorporados pela massa.

[2] A relação que existe entre as performances é tomada da seguinte divisão histórica: Artes de la Huella, situadas na década de 1960 em relação às problemáticas levantadas por José Balmes; Artes de la Excavación, que aparecem em conexão com Eugenio Dittborn; Artes de la Disposición, desenvolvidas em relação com as obras emergentes dos anos de 1990. Para Justo Pastor Mellado, Leppe funciona como uma linha que pode unir estes três momentos. Nesse sentido, ele escolhe uma performance realizada em 1999 sobre materiais de acabamento indígena: Os Sapatos de Carlos Leppe e A Estrela.

[3] Levando em consideração a relação descrita por Nelly Richard, em seu texto “El Cuerpo y la Biografía / el Cuerpo en Relación Temporal con los Acontecimientos Genéticos Influyentes en el Devenir Simbólico del Sujeto”, do livro Cuerpo Correccional, quando o autor se refere principalmente às obras que se concentravam na reconstituição de uma cena, destruída pelo acontecimento histórico, através da produção de novos símbolos por meio da arte corporal, quando se produzem a castração e a função materna, resultando na produção de uma nova linguagem.

[4] Nota do Tradutor: A expressão “Escena de Avanzada” é o nome utilizado para denominar a manifestação de uma série de obras e artistas que estão inseridos no contexto artístico chileno que ocorreu após o Golpe de Estado de 11 de setembro de 1973. Naquele momento, o Golpe de Estado representou um acontecimento político marcante para o país em diversos setores. A ditadura militar impôs um modelo de censura que não se restringiu somente à imprensa como também se estendeu ao contexto cultural. No caso específico das artes visuais, por exemplo, muitos artistas ficaram restritos a uma expressão de suas artes em nível local e nacional, sendo impedidos de criar experimentações e aproximações com a arte conceitual e internacional. Carlos Leppe foi um dos muitos artistas que tiveram dificuldades de reconhecimento de seus trabalhos muito ousados e transgressores, uma vez que eles estavam inseridos num contexto político limitado e fechado. Dessa forma, a “escena de avanzada” reflete a expressão de artistas advindos de diversas áreas que tinham como principal objetivo transformar as questões políticas da arte chilena, buscando uma aproximação maior com as linhas neovanguardistas para a renovação do cenário artístico nacional.

[5] “A arte não é nunca reprodução, porque isso pressupõe a realidade como pré-história, como o espelho em que se reflete o macaco artístico com suas posturas esculpidas no tecido da linguagem”. BONITO OLIVA, “Capítulo Cuarto: Transvanguardia: Italia/América”. In: GUASCH, Ana Maria, Los manifiestos del arte posmoderno: textos de exposiciones: 1980-1995, Madrid, Ediciones Akal, 2000, p. 34-54. Citação na p. 39.

[6] MELLADO, Justo Pastor, “El concepto de filiación y su intervención en la periodización del arte Chileno Contemporáneo”. Ver em: <www.justopastormellado.cl/escritos_cont/semanal/2002/20020109.html>. Acesso em: 10/12/2006. 

[7] Willoughby Sharp, “Body Works”, pp. 14-17, In: GUASCH, Ana Maria, El Arte ultimo del Siglo XX, Madrid, Alianza, 2000.

[8] Faço menção a essas figuras ao me referir às obras O Cabide e Sala de Espera, descritas por Nelly Richard em seu texto Cuerpo Correccional, Santiago de Chile, 1980. 

[9] “Ele desceu com muita dificuldade do pequeno carro alugado carregando consigo uma mala. Objetos utilizados em performances anteriores foram amarrados na mala… Depois de tomar um tempo para enumerar e exibir os restos recuperados, Leppe retira de um saco […] uma certa quantidade de excremento […] que, logo em seguida, coloca sobre a sua cabeça. Esta já está machucada por cortes irregulares da tesoura, simulando uma superfície gravemente afetada por micose […] Ele escolhe a parte superior de um huaco fálico (uma peça andina de cerâmica) […] que fixa sobre o cataplasma de excremento que cobre a sua cabeça […] Com suas mãos sujas, ele apaga a frase escrita no cartaz ‘Eu sou meu pai’ e inicia um choro desesperado […] Dois trabalhadores da construção o agarram para arrastá-lo como um animal ainda mais morno […] Ele chegou ajoelhado e saiu arrastado como um grande lobo marinho moribundo […]” PASTOR MELLADO, Justo, op. cit.

[10] Definição que aparece em BONITO OLÍVA, op. cit. A “ideologia do traidor” estimulou a sensibilidade da transvanguarda italiana. Da mesma forma, ela também estimulou o maneirismo e outros movimentos, que fazem referência a uma linguagem pura, contaminando-a com uma identificação e demonstrando que a regressão é impossível. O prazer da ambiguidade se encontra quando o novo artista não almeja uma linguagem universal, mas sim quando ele se direciona para a criação da sua própria língua. 

 

BIBLIOGRAFIA

GUASCH, Ana Maria. El Arte Último del Siglo XX. Madrid: Alianza, 2000.

______. Los Manifiestos del Arte Posmoderno: textos de exposiciones: 1980-1995. Madrid: Ediciones Akal, 2000, p. 34-54.

MELLADO, Justo Pastor. “El concepto de filiación y su intervención en la periodización del arte Chileno Contemporâneo”. Ver em: <www.justopastormellado.cl/escritos_cont/semnal/2002/20020109.html>. Acesso em: 10/12/2006.

RICHARD, Nelly. Cuerpo Correccional. 1. ed. Santiago del Chile: Francisco Zegers, 1980.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

GAMONAL, Alyson. “Carlos Leppe, A Estrela”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução de Davi Giordano

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus, Revista Punto de Fuga e o autor

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