Brasas

 

Tanto já foi dito sobre o trabalho, a vida e a morte de Ana Mendieta que adicionar uma única frase pode parecer ao mesmo tempo excessivo e redundante. No entanto, a vontade de retornar a esse trabalho vez após outra é irresistível: ele é multiforme, fecundo, exige atenção repetida. O emaranhado de palavras que se formou em torno do corpo da obra de Mendieta é uma reação direta ao poderoso mutismo do trabalho. Se a intensidade desse discurso nas décadas de 1980 e 1990 era apenas uma consequência necessária das circunstâncias de sua morte, ou uma reflexão sobre uma batalha mais ampla a respeito de que vidas e obras de fato importavam ao mundo da arte na política violenta da época, então as palavras devem ter arrefecido a essa altura. Mas os argumentos continuaram a proliferar e engrossar porque a própria obra, em silêncio e com paixão, continua a falar conosco. Os atos viscerais e incendiários de Mendieta, seus vestígios corporais e impressões enlameadas ainda tocam, queimam e incomodam. O uso que ela faz de substâncias elementares (terra, ar, água, fogo e carne), seus deslocamentos da figura e do solo, comovem por meio dos paradoxos emotivos da existência mortal: as tensões vividas entre o material e o imaterial, o presente e o ausente, o que fica e o que vai embora. Dessa maneira, essas obras operam nos limites do que pode ser pensado e dito por meio de linguagem. Elas acessam sentimentos de existência elementar e gesticulam na direção da ausência de limites e da eternidade. Apesar de evidentemente estarem marcadas pelo momento em que foram confeccionadas, essas obras carregam uma qualidade atemporal, tanto que parecem estranhamente contemporâneas. Não é para menos que a obra de Mendieta continua a perturbar o aparato cultural que deseja ordená-la, localizá-la e contê-la: o mercado, os museus, os arquivos e as arbitrariedades da história da arte. 

 

Ana Mendieta, Rape, 1973. Lifetime color photograph, 8 x 10 polegadas (20.4 x 25.4 cm). © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York

 

Parte do atrativo da obra de Mendieta vem do seu não conformismo marcante. É difícil nomear e localizar a prática dela nas narrativas estabelecidas da história da arte ocidental relacionadas às décadas de 1970 e 1980. A obra dela migrou rapidamente pelas disciplinas da arte sem se deter em nenhuma mídia ou movimento específico. A assimilação prolífica e a adaptação singular de compreensões contemporâneas e formas manifestadas em seu trabalho o situa entre vários impulsos estéticos diferentes. Os primeiros trabalhos de Mendieta podem ser vistos em afiliação com a body art: a cru Untitled (Rape Performance) [Sem título (Performance de estupro)] (1973), junto com suas outras ações ousadas do período, coincide com muitos aspectos daquela cena emergente. Mendieta se retratou sem roupa, ensanguentada, “brutalizada” e descartada em uma “terra de ninguém” anônima, e também em uma performance de duas horas em seu próprio apartamento. Depois de anos de conceitualismo cerebral, bacana e higiênico, os artistas foram tomados pela necessidade de rematerializar a arte contemporânea (e de repolitizá-la) por meio do uso da carne do artista como matéria estética. Ao explorar o corpo como uma coisa mutável e que pode ser ferida, como um objeto avariado, os artistas corporais testaram os limites das ordens sociais e dos tabus. Risco físico foi utilizado para questionar relações de poder e de desejo em identidade de gênero. O uso que Mendieta faz da degradação e da submissão pode ser interpretado neste viés; o fato de ela reunir um pequeno grupo para testemunhar seu corpo posado, “profanado”, como uma ferida na consciência social que requer cura política. Mas Mendieta nunca usou o próprio sangue nesses trabalhos (como fizeram seus contemporâneos Marina Abramović, Chris Burden e Gina Pane). Ela encarou a violência patriarcal de frente nessas ações, apesar de seu trabalho evitar o masoquismo implicado nas feridas repetidas de seus colegas de body art: em vez disso, ela usou corpos e sangue de animais para aludir ao cerimonial e ao sacrifício. Sweating Blood [Sangue de Suor], feito no mesmo ano que as peças sobre estupro, é um curta em Super-8 em que sangue de um coração de vaca escorre pelo rosto imóvel e passivo dela. O filme manifesta ideias comuns à body art: o físico e o emocional como rupturas das ordens do visual e do racional. Porém também apresenta elementos figurativos que serão recorrentes em seus trabalhos posteriores em escultura e em filme, além dos ambientais: o coração como material mais do que humano, o interesse nos corpos como entidades morfológicas e a preocupação com os vestígios corporais e as impressões afetivas. Esta última preocupação com a força emotiva dos resíduos visíveis dos corpos é cristalizada em um filme do mesmo ano, Untitled (Moffitt Street) [Sem título (Rua Moffitt)], em que Mendieta registrou as reações passageiras de transeuntes diante de um derramamento de sangue nojento na calçada. A mancha carnal é uma interrupção no dia a dia, uma questão social, mas também meio de testar a força vital de restos corporais em um local específico.

Como Untitled (Rape Performance) também mostra, Mendieta já estava envolvida com uma arte no e do ambiente, apesar de a dela ser bem diferente das qualidades prevalentes de boa parte da land art: natureza transformada em algo monumental, com a paisagem designada como cena escultural. Da mesma maneira, Mendieta era atraída pelo lado de fora, pelo mundo natural, e por fazer intervenções estéticas em locais aparentemente intocados pelo humano e pelo cultural. No entanto, o gesto escultural dela nesses locais “remotos” invocava uma relação absolutamente mais íntima e questionadora entre o humano e “o selvagem”. O termo que ela inventou para a série Silueta — “esculturas corpo-terra” — é a epítome perfeita da distinção e do estado liminar desse trabalho. A relação apaixonada com a matéria elementar inaugurada em seus primeiros trabalhos levou-a a comunhões temporárias com os materiais rebaixados e sem forma que são a terra, a areia e as plantas. Longe de colonizar a natureza alienígena, deixando uma marca de posse nela, há um estar-com-a-natureza nessas obras que tira a força da reivindicação humana. Ao mesmo tempo, o longo envolvimento dela com a prática da escultura foi desencadeado pelo profundo compromisso com a total dissipação do objeto escultural (na natureza) e por sua tradução nas durações e dimensões bem diferentes da fotografia e do filme. Aqui há algumas afinidades visíveis com a arte conceitual: o uso da serialidade e de imagens em estilo documental como evidência direta de uma atividade. E, no entanto, para Mendieta, a ideia não tinha privilégio sobre a execução, e estas não eram encenações isoladas, como acontece em boa parte das obras conceituais: as qualidades emocionais, sensuais e afetivas de seus materiais eram vitais e eram desempenhadas por meio da forma aguda da imagem escolhida. A serialidade aqui é aberta e ocorre como a consequência inevitável de uma paixão mutante e sustentada há muito tempo. Em seus trabalhos posteriores, em que esculturas e totens reais de fato permanecem, um diálogo com as noções dominantes da escultura minimalista fica evidente, mas Mendieta combina simplicidade e atenção à “matéria enquanto matéria” com elementos bastante contrários ao ímpeto minimalista: formas orgânicas irregulares persistem ao lado de simbolismo “antigo” enganoso.

 

Ana Mendieta, Untitled (Silueta Series, Iowa), 1977. Lifetime color photograph, 20 x 13 1/4 polegadas (50.8 x 33.7 cm). Coleção Museu de Belas Artes de Boston. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York

 

Ana Mendieta, Untitled (Gunpowder Work), 1981. 35mm slide. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York

 

Cada uma dessas diferenças em relação ao viés principal da body art, da land art, do conceitualismo e do minimalismo é influenciada de maneiras complexas pelo gênero e pela etnia de Mendieta, sua experiência como forasteira dupla nos mundos de predominância masculina branca em que ela transitava necessariamente. Mendieta era, de qualquer modo, um sujeito deslocado e em desvantagem: um ser itinerante. Sua migração de Cuba para os Estados Unidos com a irmã na adolescência foi resultado da situação política do pai. Na idade de formação, isso fez com que as irmãs Mendieta fossem excluídas do privilégio social, de um lar e das relações familiares para viverem em condições de tutelagem e alienação étnica e linguística. Muito disso, por consequência, foi formado a partir da relação de Ana Mendieta com a terra como “lar”; Mendieta certa vez descreveu seu trabalho como tentativa de recusa junto à terra, que ela via como “uma imagem posterior do abrigo original dentro do útero”. No início da carreira ela rejeitou os “lares” institucionais da prática artística como locais para seu trabalho: o estúdio, a galeria e o museu. Assim, ela realizou um investimento sustentável não apenas no exterior, mas nos espaços decididamente marginais, não cosmopolitas e rurais do Iowa, do México e então, finalmente, em sua “pátria-mãe”, Cuba. Se tais buscas eram dirigidas a algum tipo de moradia primária, seja de gênero, terra ou nação, sua serialidade continua a transmitir inquietação e as obras não resolvem (para seus espectadores, pelo menos) os sentimentos de alienação a partir dos quais podem comover. Uma certa solidão sempre persiste.

Nesta leitura, a arte de Mendieta fica presa em um movimento repetido de retorno, uma busca pelo lar e pelo pertencimento conduzido pela terra: um re-enraizamento. E, no entanto, a natureza frágil e que se desfaz de suas muitas impressões na terra fala da impossibilidade de algum dia ir para casa, de algum dia aterrissar, depois que uma pessoa é arrancada de seu lugar de origem. A terra, de todo modo, não é simplesmente fecunda, abundante ou geradora nessas obras, também é com frequência árida, inerte e improdutiva. Instabilidade, não pertencimento e transição são as qualidades primárias que aparecem nas imagens dela. Os vestígios corporais a que ela alude parecem dispostos na direção de algum “outro lugar”. As obras de Mendieta com a terra são uma exceção em relação às obras de muitos de seus contemporâneos homens da land art, já que ela recusa gestos na direção da terra que iria impor, suplementar e insistir. Na verdade, paisagens completas são raramente examinadas na série Silueta – a locação fica fora do enquadramento –; em vez disso, observamos com os olhos um pouco baixos para os contornos de um corpo feminino singular contra a matéria da terra. E o que vemos ali não é tanto uma construção, mas um alojamento, um encaixe ou amarração de um corpo em locais de conforto ou descanso temporário. Nas Siluetas posteriores, o corpo posado de Mendieta abandona a cena e o que sobra são entalhes, moldes, brasas e chamuscados; o traçado de contornos de uma forma feminina que se desfaz, se consome, vai embora. A figura se transforma em contorno do corpo, que por sua vez se dissolve na ausência de forma da matéria elementar. Como distinguir a figura do solo? Será possível dizer com certeza que Mendieta está agindo na terra, fazendo uma reivindicação, personificando-a? Terra e elementos também são experimentados como agentes aqui. Água corre, terra se desfaz, brasas brilham e fumaça se dispersa, depois some. O status antropocêntrico da arte é deslocado por uma visão de produção humana como apenas um aspecto de um sistema vivo de criações terrenas.

É melhor que tais obras sejam lidas como interações entre a terra, os gestos e os vestígios de uma mulher; invocações das relações vibrantes e do fluxo de todos os elementos terrenos, incluindo a carne do animal humano. A terra é tocada com cuidado aqui, acariciada, para permitir que a transformação incessante e exultante das coisas fale: murmúrios de uma consciência ecológica radical.

Não é possível localizar as obras de Mendieta, nem pensar nelas como objetos autônomos, porque as obras raramente residem em uma única forma, mas vivem em algum lugar entre atos e formas. Este é particularmente o caso da série Silueta, em que cada Silueta é a relação de uma performance, de uma escultura, de uma fotografia ou de um filme. Junto com o compromisso profundo com uma arte que é formada de maneira sensual a partir de matéria orgânica, que se localiza na natureza e que se reverte aos elementos por meio do processo inevitável do apodrecimento, vemos que esse investimento produz algo mais, que acontece por último: imagens e filmes. Mas essa não é a captura comum da arte performática em uma única fotografia icônica que então faz as vezes da obra. Como as dimensões arquivistas desta publicação deixam claro, as imagens de Mendieta proliferaram na medida em que ela tentou traçar durações de ação no objeto. Perante a obra de Mendieta, o espectador lida com a relação entre matéria e formas — performance, escultura, imagem —, cada uma delas carregando durações distintas, cada uma a consequência de uma atenção duradoura. A obra se constitui em “algum momento” entre esses períodos: é atemporal. E o que sobra não é soma nem condensação da obra, mas os artefatos visuais que parecem iniciatórios, cheios de potencial: apontam a futuras dissoluções ou reformações, um final nunca é visto. É também por isso que, apesar das tentações de leituras fatídicas e biográficas, a obra de Mendieta continua a resistir à sua redução ao ensaio da morte: suas passagens são insistentemente extáticas, natais e prolíficas. Mendieta falava de seu trabalho como partícipe “da tradição de um artista neolítico”, e a afinidade vai muito além dos materiais, das formas e dos símbolos. A noção de arte como ritual, as repetições sempre diferentes, as invocações de transfiguração e transformação fazem com que essa arte seja imemorial. Matéria com espírito. Isso vem das Américas das décadas de 1970 e 1980, mas também de algum lugar distante e de algum tempo muito no passado, e é absolutamente vital quando vai embora.

 

 

Primeira publicação em Ana Mendieta: Traces (Hayward Publishing: Londres, 2013). Texto reimpresso como cortesia da Hayward Publishing (http://shop.southbankcentre.co.uk/hayward-publishing).

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

HEATHFIELD, Adrian. “Brasas”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução de Ana Ban

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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