ARTivismo

 

Uma entrevista com a artista performática Beatriz Albuquerque.

 

Imagem (frame) a partir do registro da performance Color, de Beatriz Albuquerque, realizada na Gallery G2 (Chicago, EUA) em 2007

 

Beatriz Albuquerque, Projecto: Trabalho de Graça, Performance exterior, Chicago, EUA, 2005

 

Em março de 2011 fui à abertura da exposição Desperate Acts, na Macy Gallery, que se encontra localizada no campus da Columbia University, e que ainda permanece de forma memorável em minha mente por três razões. Uma delas, é por causa da performance divertida e brincalhona de Gerald Pryor, na qual cobre o corpo com vaselina e imprime as suas impressões corporais em fotografia, numa reminiscência entre Fluxus e as ações Warholianas. As suas palavras ecoaram através da galeria enquanto pressionava a vaselina que cobria as partes do seu corpo, peito e rosto, no vidro de montagem do trabalho de fotografia. Em seguida, ele colocou talco em toda a vaselina.

A segunda razão é por ter sido comissionada por Maurizio Pellegrin.

E a terceira razão é porque me tornei obcecado por uma artista portuguesa que desenvolve trabalhos interdisciplinares, abordando conceitos como o capitalismo, crise, valor, percepção e arte como fatores inseridos numa comunidade e comodidade.

Beatriz Albuquerque trabalha em animação, videoarte, performance, fotografia e instalação, ou seja, em quase todos os mediums. A videoarte dela, ACTivism, recebeu o Myers Award em 2009, e é um vídeo no qual ficamos submersos num mundo de cartazes e de publicidade que se inter-relacionam com uma forma de ideais entre o jogo e a catarse do sistema em que vivemos. Nesse mundo alternativo, vemos um avatar com várias armas que atingem e interagem com o meio envolvente. Em seu novo livro Video Games + Glitch = Learning (Lambert Academic Publishing, 2012), ela examinou como a arte e a educação artística imergem numa educação de autoaprendizagem em DIY [1], no contexto dos video games, com uma nova abordagem acadêmica sobre a aprendizagem através do reino da arte dos video games e da educação.

 

Autoaprendizagem

 

Projecto: Trabalho de Graça, de Beatriz Albuquerque, formula a questão: “por que a Arte não pode ser comprada por todos?”. Porque dessa forma ela passa a ser oferecida de graça. Mas como é que ela faz isso? Durante a performance, Beatriz Albuquerque realiza um contrato com os membros do público. Nessa premissa, o público interage e, em simultâneo, comissiona um trabalho de arte realizado com a performer. Esse trabalho pode ser uma pintura, escultura, vídeo, performance, enfim, o que o público desejar. Depois de ter sido especificado, o trabalho artístico desejado é assinado em um contrato. O performer oferece o trabalho e o público, o material necessário para a realização da obra de arte.

 

Imagem (frame) a partir da videoarte ACTivism, de Beatriz Albuquerque, realizada no Chelsea Art Museum, Nova York, EUA, 2007

 

Imagem (frame) a partir da videoarte W. B., de Beatriz Albuquerque, realizada no Site 110, Nova York, EUA, 2011

 

Após esta breve introdução, relatarei uma conversa por telefone que tivemos há dias, quando Beatriz voltou a Nova York a partir do seu país de origem, Portugal, em agosto de 2011.

 

DAVID MOSCOVICH: Eu vi pela primeira vez o teu Projecto: Trabalho de Graça na Macy Gallery, localizada na esquina entre a 120th Street e a Broadway Avenue em Manhattan. Pode me falar um pouco acerca desse teu Projeto?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: É um projeto que comecei em 2005, em que basicamente me ofereço para trabalhar de graça, na criação de qualquer obra de arte que o público deseje. Na minha opinião, a arte deve ser acessível a todos, mesmo que os usufruidores não possam pagar. O que se observou na exposição foram dois momentos desse projeto. Há dois aspectos nele em que me ofereço para trabalhar de graça – primeiro, a performance ou consulta dos membros do público comigo na rua, numa conversa pessoal; e um segundo momento, quando mostro o processo numa instalação fotográfica e de vídeo na galeria. Por exemplo, durante a performance, na rua em Nova York, eu segurei um cartaz que dizia “Eu Trabalho de Graça” (I will work for free), e durante a performance tive várias interações do público que passava. Por exemplo, um policial veio ter comigo e, no princípio, pensei que ia ter problemas, como tive em Chicago quando fiz essa performance; mas, em vez disso, ele queria saber mais sobre o projeto e participou ativamente na performance, pedindo, inclusive, uma fotografia em preto e branco. A segunda parte consistia numa instalação de fotografias na parede da Macy Gallery, com repetição de fotografias do tamanho de um postal; era uma fotografia documentativa desse projeto, ou seja, 150 fotos alinhadas numa grade de 10 x 15 cm.

 

DAVID MOSCOVICH: A foto instalação montada na galeria aborda que temática?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: A foto instalação é constituída por fotografias documentais desse projeto em 2005, em Chicago. Curiosamente, encontrei cerca de sessenta websites e blogs, de advogados, economistas, empresários e até livros de ajuda com as fotos desse projeto, sem me creditarem ou mencionarem.

 

DAVID MOSCOVICH: Como chegaste a descobrir os websites que usam a tua fotografia de Projecto, sem no entanto te creditarem?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Um amigo meu mandou-me um e-mail com alguns links e, então, resolvi fazer uma pesquisa de imagens com o Google, e descobri existirem mais de sessenta websites com a mesma imagem.

 

DAVID MOSCOVICH: Chegaste a contatar alguém dos websites?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Claro, e pedi-lhes para contextualizarem a imagem, ou então que a removessem. No entanto, até agora, não obtive quase nenhuma resposta.

 

DAVID MOSCOVICH: Poderias especificar as respostas que recebeste?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Até agora recebi três respostas. Uma delas, o autor, Jeffrey Tucker, enviou-me um e-mail a desculpar-se e disse que iria remover a imagem, algo que não fez. Um outro, removeu a minha imagem e criou uma cópia da mesma. O terceiro, respondeu-me reenviando o meu e-mail de volta.

 

DAVID MOSCOVICH: Que tipo de Arte costuma o público pedir durante esse projeto em que te ofereces para Trabalhar de Graça?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: O público costuma pedir mediums variados, desde as instalações, as performances de animação, a arte digital, a web arte, o vídeo, a pintura acrílica, mas depende da pessoa. No entanto, tenho notado que diferentes públicos desejam diferentes tipos de arte. Em Portugal, é diferente o que solicitam em relação à Inglaterra. Os portugueses tendem a pedir mais obra física como a pintura; na Grécia e no Reino Unido, mais pessoas queriam trabalho digital como web arte. Nos Estados Unidos, é cerca da metade. Havia pessoas que me pediam para limpar fundos de fotografias de entes queridos e para fazer uma montagem artística assim como realizar o presente de aniversário para o pai delas. Nesse último caso, era uma casa expressionista pintada em acrílico numa tela. Algumas das pessoas que interagiram comigo nunca tiveram contato com qualquer outro artista ou entraram numa galeria. Em todo o processo de criação de obra de arte solicitada, eu encorajo o público a ser ativo e a participar em todo o processo enquanto estou a criar fisicamente a sua peça.

 

DAVID MOSCOVICH: Comente um pouco mais dessa primeira encomenda, a obra de arte?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Nessa encomenda, pedido de obra de arte, uma senhora queria que eu alterasse uma fotografia da sua sobrinha. Era uma fotografia de um hospital pouco antes de ela morrer. Por ser a última fotografia da menina, pediu-me para limpar o fundo e para que eu colocasse nesse local uma imagem feliz, para que ela pudesse ter uma imagem impressa da sua sobrinha num contexto diferente e feliz.

 

DAVID MOSCOVICH: Como é o processo desse projeto em que te ofereces para Trabalhar de Graça?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Eu começo com uma performance ao vivo. E reúno todas as informações das conversas que tenho com o público. As pessoas que interagem comigo me dizem o que desejam numa obra de arte. Eu as aviso de que quanto mais específicas forem, mais o trabalho final ficará de acordo com a ideia que têm. Depois, assinamos um contrato para formalizar o ato performativo e, então, crio a obra de arte. Também incentivo as pessoas a estarem presentes e a acompanharem todos os passos da obra de arte até à meta final.

 

DAVID MOSCOVICH: Existe alguma coisa que não fazes?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Claro, existe uma cláusula no contrato, no qual é explícito que não farei mal a mim mesma ou a outras pessoas, assim como a recusa a alguns elementos como a nudez, sexo, sangue ou fluidos corporais. Em relação a mediums, eu não faço esculturas ou música. Anteriormente, tive uma pessoa que queria uma performance em que eu batesse noutras pessoas, e, obviamente, isso não faço.

 

DAVID MOSCOVICH: Alguma vez alguma pessoa, durante a performance, pediu para fazer uma obra de arte imediatamente e, se sim, que medium pediu?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Um desenho. A pessoa me pediu numa rua em Nova York: “desenha-me já na forma como você me vê”. Logo a seguir, ao realizar o pedido, apareceu o policial que também me pediu para lhe enviar uma foto em preto e branco por e-mail; outra pessoa me pediu para fazer uma sessão de desenho com ele e um outro queria que eu fizesse um fantoche.

 

DAVID MOSCOVICH: Para que foi usada a marionete que lhe fizeste?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Soube que a usou para uma performance.

 

DAVID MOSCOVICH: Ele creditou a você o trabalho da marionete durante a performance dele?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Não sei.

 

DAVID MOSCOVICH: Gastaste dinheiro teu ao realizar as obras de arte que te pediram durante a performance?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Não, só trabalho. Alguns dos trabalhos são no mundo virtual, no computador, e isso não requer material físico. Mas se for uma obra física, uma pintura, a pessoa que assinou o contrato comigo tem que me trazer o material. Por exemplo, já aconteceu de pedirem-me um céu azul na pintura, mas depois, quando me trouxeram os acrílicos, não tinha azul, logo o céu não pôde ser azul. Outras me pediram uma pintura, mas não me trouxeram os pincéis, ou seja, a pintura foi feita com os meus dedos e ficaria diferente caso tivessem trazido o pincel. Isso deixa de acontecer quando o trabalho é digital. Ou mesmo quando é uma décollage. Nesse caso, eu arranco cartazes da rua e tiro uma foto digital da décollage e envio por e-mail.

 

DAVID MOSCOVICH: Como é que a décollage funciona exatamente?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Uma pessoa me pediu uma décollage com animais e tom cor-de-rosa. Levei um tempo enorme a encontrar isso, mas, finalmente, uma vez mais, rasgando cartazes na rua em Lisboa, em Portugal, encontrei essa temática. Como os cartazes são colados uns em cima dos outros, nunca se sabe o que está por baixo. Quando comecei a arrancar os cartazes, encontrei um rosto de um gato num fundo rosa, assim como cartazes de Carnaval com animais. Foi uma questão de sorte ao fim daquele tempo todo e de várias tentativas.

 

DAVID MOSCOVICH: Que gênero de público, pessoas, interagem contigo durante a performance?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Eu tenho constatado que o público é diferente entre países diferentes. Na Europa, tenho sempre uma fila de espera à frente da minha mesa durante o tempo todo da performance, e todos participam e pedem uma obra de arte. Por exemplo, em Lisboa, durante a performance de três horas, eu tive trinta e sete pessoas que participaram no projeto. No entanto, em Chicago, em 2005, as pessoas que falavam comigo estavam preocupadas se era um esquema em que iria pedir dinheiro no fim. O que fiquei a saber foi que, após a depressão nos Estados Unidos, foi criada uma legislação em que afirmam que, se você faz o trabalho, ele deve ser pago. Houve casos em que pessoas foram processadas no tribunal sobre pagamentos de trabalho que tinham aceitado de outrem. Em Chicago, o público queria me pagar e, quando recusei, tive as mais diversas reações; uns me perguntaram se era contra o sistema capitalista, outros ficaram ofendidos e me disseram: “Por que pensas que os americanos precisam de alguma coisa de graça?”. Quando voltei em 2007 a Chicago e realizei o projeto numa residência artística no The Institute for Community Understanding Between Art and The Everyday, (InCUBATE), inserido numa zona comercial da cidade, esse local tinha um espaço com uma janela virada para a rua e, quando se entrava no espaço, havia uma sala de espera pintada de azul elétrico e cadeiras vermelhas de teatro. Depois da espera, falavam comigo dentro do meu escritório/instalação. Tive cerca de setentas pessoas que entraram e interagiram comigo durante um mês, mas só vinte e cinco quiseram uma obra de arte, e várias quiseram me pagar ou me dar algo em troca. Uma delas tentou me dar um bolo, outra, uma caixa de chocolates, e outros, dinheiro. Mas em Nova York foi diferente; em menos de trinta minutos, três pessoas me pediram uma obra artística e um deles quis, naquele mesmo momento, um retrato.

 

DAVID MOSCOVICH: Já te apareceram muitas pessoas a questionarem se o projeto de Trabalhar de Graça é contrário ao capitalismo?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Sim. Uma dessas vezes foi em 2006, no Millennium Park, em Chicago, quando estava a fazer uma performance no Festival Edge. Uma limusine parou em frente do local em que estava a fazer a performance e duas senhoras saíram de lá de dentro e vieram diretamente em direção a mim. Elas me perguntaram: “Por que pensas que precisamos de alguma coisa de graça? Nós podemos pagar o que precisamos”. Tive uma conversa bem divertida com elas. Para mim é mais a questão de que a arte deveria chegar a todas as pessoas, ser completamente acessível, podendo as pessoas adquiri-la ou não, e essa obra deveria ser da forma que as pessoas sempre quiseram. Isso é o que eu ofereço de graça, uma obra que a pessoa deseja, no medium que ela deseja. Também relembro às pessoas de que são sempre bem-vindas quando estão a criar a sua obra de arte, ou seja, fomento para que elas vejam o processo de criação e realização de uma pintura ou instalação.

 

DAVID MOSCOVICH: Vês o Projecto: Trabalho de Graça à margem do sistema capitalista?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Eu acho que é um pouco fora do circuito, pois não há troca de dinheiro ou comodidades comigo, no entanto, quando dou as obras de arte que realizo, não sei, depois, o que lhes sucede. Será que as pessoas vão vendê-las ou trocá-las? Acho que o processo entre mim como criadora e o cliente, público, é um pouco fora do capitalismo, sim. Eu digo um pouco, porque se a pessoa comprou os materiais, então, nessa premissa, assume-se o capitalismo presente.

 

DAVID MOSCOVICH: Então é difícil afirmar se houve lucro com esse projeto?

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: Depende do que se considera lucro. Sentir-se bem ao receber um presente – uma obra de arte – é lucro? É um lucro emocional, estético, mas seria um lucro capitalista? Eu sei que a minha interação com o público durante a performance é sem nenhuma intenção capitalista, mas é uma crítica subversiva ao mercado de arte. O que eu poderia vender nesse Projecto? Ofereço tudo de graça. A única coisa que pode ser vendida é a documentação do projeto. Todo o resto é de graça.

 

DAVID MOSCOVICH: Muito obrigado por teres respondido às minhas perguntas.

 

BEATRIZ ALBUQUERQUE: De nada.

 

Beatriz Albuquerque, Projecto: Trabalho de Graça, Macy Gallery, Nova York, EUA, 2011

 

Nota da Tradução

[1] “Faça você mesmo” (em inglês “do it yourself”, sigla DIY) refere-se à prática de fabricar ou reparar algo por conta própria em vez de comprar ou pagar por um trabalho profissional.

 

 

Tradução de Beatriz Albuquerque

Revisão da tradução de Paulo Aureliano da Mata

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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