O Que Proclamar ao Público Sem se Dirigir a Ele: Conversa com Patrícia Corrêa

 

Abreviações

Na página pessoal em que registra seus trabalhos de performance, Patrícia Corrêa nos aponta um conjunto de indagações que servem como foco da sua pesquisa artística. A performer, que vive e trabalha em Portugal, desenvolveu, ao longo de dois anos, um conjunto intenso de trabalho que, talvez, seja o contraponto que lhe é necessário “por ter chegado aqui tão tarde”. Esse chegar tarde é, na verdade, o reflexo de um percurso longo e refletido, iniciado pela artista com uma formação dedicada a pensar e vivenciar as manifestações artísticas sem, contudo, incluir uma prática. Formada em Fotografia e História da Arte, Corrêa estabeleceu seu primeiro diálogo com a performance a partir de um ponto de vista exterior, como nos relatou em nossa conversa. Talvez, a gestação e a digestão dessa prática seja o que a aproxima do tempo como problema estético.

 

Patrícia Corrêa, Alma, da série AB_OVO. Performance, Aveiro, 2012. Fotografia de Madina

 

Ao observar o percurso de Patrícia Corrêa, vemos emergir e imergir a temporalidade. Em performances como Alma ou Tempo 4, o tempo é matéria plástica e objeto da arte. É um tempo da memória que é evocado em alma nestes pequenos objetos herméticos (ovos, por exemplo), que encerram a vida, a qual se rompe e se desenlaça no decorrer do tempo. Ao mesmo tempo, despedaçam-se, como a inexorável passagem do tempo, o despedaçar da existência. Talvez Nietzsche, na obra O Nascimento da Tragédia, ao desvelar o segredo do Sileno em “o melhor de tudo é para ti [o homem] inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” [1] esteja, em alguma medida, afirmando um horror da existência que se revela também pela passagem do tempo que nos encaminha a todos ao não ser.

 

Patrícia Corrêa, Tempo 4. Performance. Fotografia de Patrícia Corrêa

 

Em Tempo 4 – projeto ainda em andamento – é o tempo da transformação. Nesse trabalho, uma ação simples que se repetirá ao longo de quatro anos e que irá ao encontro de distintas “Patrícias Corrêas”, não há como ter certeza que ela ainda será a mesma a repetir a ação iniciada no último ano. Fica a questão em saber se realmente podemos ter certeza de que existe algo em nossa identidade que seja sempre permanente; talvez, toda mudança seja uma mudança do que somos. Nesses trabalhos performáticos, o tempo emerge com a potência agregadora da consistência de uma pesquisa estética.

 

Patrícia Corrêa, Haan galo-haan galo. Performance, Berlim, 2011. Fotografia por Monika Sobczak

 

Nos trabalhos como Haan galo-haan galo e Planta-me uma palavra, o tempo volta a imergir e repousa à espreita na duração e no tempo da interação e do diálogo que compõe. Haan galo-haan galo é um trabalho no qual a pesquisa transparece na execução. Este trabalho – realizado com Liesje van den Berk – possui várias versões, nas quais as performers desenvolvem variações de um diálogo mudo: em um, temos conversa extensa (no espaço e no tempo) que se desenvolve através de linhas “costuradas” ou “enlaçadas” numa sala ampla (Haan galo-haan galo #6), em outro, é uma conversa trocada em folhas de papel que se acumulam ao redor das performers, deixando a palavra imobilizada na sua materialidade escrita (Haan galo-haan galo #3), ou ainda, a conversa é um fio que se desenrola de uma bobina e que amarra as duas artistas em volta de uma mesa (Haan galo-haan galo #2).

 

Patrícia Corrêa, Planta-me uma palavra. Performance-instalação, Lisboa, 2012. Foto de Rita Máximo

 

Patrícia Corrêa, Planta-me uma palavra. Performance-instalação, Lisboa, 2012. Foto de Rita Máximo

 

Patrícia Corrêa, Planta-me uma palavra. Performance-instalação, Lisboa, 2012. Foto de Rita Máximo

 

Em Planta-me uma palavra, o diálogo é com o espectador e, como nos relata Corrêa em nossa conversa, é este o foco mais recente do seu trabalho: poder vivenciar uma relação intensa com o espectador. E, nesse trabalho, justamente, a artista convoca o espectador a se deslocar de sua posição de simples observador, para se aproximar e dialogar silenciosamente. O que está em jogo é, sobretudo – como destaca Corrêa –, a partilha daí decorrente, a palavra se perde no percurso de comunicação entre performer e espectador; o que permanece é o gesto.

Durante a nossa conversa, falamos ainda sobre Portugal e a presença de sua origem cultural na sua pesquisa e trabalho performático. A artista destacou a presença de elementos emblemáticos do imaginário português como o 25 de Abril ou, ainda, o Cais das Colunas, no qual seus barquinhos de papel navegaram em busca de comunicação (e nos levaram a um passado poético do mundo português), mas que levaram, também, nossa conversa à realidade atual que vive o país.

Assim como na ação Planta-me uma palavra, na qual Corrêa destaca a importância dos aspectos não verbais na constituição do diálogo e da interação entre os indivíduos, nossa conversa esteve repleta de enigmas não verbais, intrínsecos às conversas humanas. Em alguns casos, foram preenchidas por entonações e nuances que nossos leitores não terão a chance de acompanhar. Por isso, optamos, na edição de nossa conversa, em não manter integralmente o conteúdo da nosso diálogo estabelecido pelo Skype através de um discurso transcrito. Usamos algumas afirmações entre aspas, correspondendo às citações da própria artista, em meio ao texto que descreve as perguntas e respostas juntamente com os pormenores que situam o leitor.

 

Conversa com Patrícia Correa

Formada em História da Arte, Patrícia Correa, quando foi indagada sobre como estabeleceu seu encontro com a prática da performance, conta-nos sobre o longo período de tempo em que permaneceu nos bastidores do ambiente artístico, perto do magnetismo, do fascínio dessa ambiência seleta, embora estivesse a cumprir funções bem mais burocráticas em espaços de museus, onde não expunha seus trabalhos realizados e, apesar da sua formação e prática no campo da fotografia, não mostrava nada do que fazia artisticamente ali naqueles lugares. Passou tempos a fazer workshops de teatro e dança e, conforme narra, “por falta de coragem talvez”, por longo período, não “assumia que o que queria fazer era justamente a performance”.

Foi, então, quando perdeu o emprego que ela se candidatou a uma residência artística em Berlim e foi aceita. Em Berlim, tudo se transformou. Na cidade que, depois da queda do muro, testemunhou a intensa ascensão de uma realidade muito mais cosmopolita e marcada pelo caloroso multiculturalismo, Patrícia encontrou sua mais íntegra forma de se expressar. E não parou mais.

“Sob uma perspectiva de historiadora da arte, talvez”, mantendo a sua postura de observadora, distanciada de si, com um ponto de vista de um espectador sobre alguém (ela mesma) em ação, Corrêa reflete sobre a temporalidade – algo que é, também, determinantemente característico dos historiadores da arte, que estão sempre a lidar diretamente com o tempo –, indagando tal abstração a partir de meandros mais pessoais, onde o seu microcosmo pode ser transposto (desempenhando papel de relevância) para o macrocosmo. São questões pessoais que levam “o tempo” a funcionar como recurso e estímulo à criação. “O tempo é uma coisa que me atormenta”, descreve a artista. E esse não será o tormento de toda a humanidade sob os adventos tecnológicos que nos fazem perceber o tempo todo o quanto tudo é superado e ultrapassado a cada segundo?

Foi esse tempo fugaz que mobilizou a artista a desenvolver uma ação para acontecer ao longo de quatro anos, repetindo um mesmo gesto diariamente (todos os dias às quatro da tarde) em Tempo Quatro (com início em 29 de Fevereiro de 2012), onde através da ação repetida, a artista se expõe em processo natural de volubilidade. A performance consiste em carimbar diariamente a data do momento em que performa na sua na pele, ou seja, o compromisso só termina em 2016, momento em que sua identidade já não corresponderá totalmente com a inicial. Com isso, marca em si o registro do tempo: seja na efemeridade de cada marca diária, na transitoriedade da sua própria constância identitária e, inclusive, na forma como o registro é feito; apesar da forma ser quase igual, não é nunca idêntica.

 

Para onde nos leva o tempo?

Suavemente [a seu tempo] o tempo transforma tudo em tempo.

No meu trabalho exploro a presença do tempo em cada acção e a fragilidade do tempo nas nossas vidas… respirando cada segundo, absorvendo cada movimento, dançando cada batimento do coração, lambendo cada lágrima… uso representações como metáforas do tempo, revelando o meu consciente e subconsciente para comunicar esta presença, este espaço incorpóreo comum.

Somos feitos de tempo… o presente é somente um reflexo, uma miragem de estar aqui. Não possuímos o tempo apenas fragmentos, fotografias mentais, sabores, sentimentos, cheiros… as nossas memórias. [2]

 

Sondada acerca das performances Haan galo-haan galo e Planta-me uma Palavra, notamos uma coerência temática entre as duas ações, sendo a preocupação em estabelecer um diálogo sem o recurso do logos, fugindo de um discurso calcado na palavra, mas, ainda assim, estabelecendo o diálogo, a interação, a conexão com o outro, embora a primeira ação não incorpore o público.

Patrícia explica que fez a ação intitulada por Planta-me uma Palavra em São Tomé e Príncipe, depois, em Lisboa, e, em seguida, na Tailândia e que, nos diferentes territórios, a entrega à participação se estabelecia de forma semelhante, mas, que, ao mesmo tempo, “é muito interessante como é que o próprio público faz interpretações completamente diferentes” do conteúdo de uma mesma partitura: “sempre muito exotéricas, muito ligadas às suas próprias crenças religiosas e às suas próprias culturas”. A comunicação se estabelecia pelo olhar, pela respiração e pela própria palavra que, escrita em uma folha natural, era ingerida e devolvida de outra forma a cada participante.

Haan galo-haan galo pertence a outra fase da artista, momento em que trabalhava em parceria com a artista Liesje van den Berk. Nessa ação, ambas estabelecem um extenso diálogo através dos seus olhares. Não apoiam-se em palavras, mas somente no poder do diálogo entre os olhos.

Claro que, para pensarmos nessas duas ações de Patrícia Correa, podemos nos lembrar do impetuoso encontro de Marina Abramović e Ulay no MoMA durante a exposição Marina Abramović: The Artist Is Present (2010), no silêncio, durante a performance The Artist is Present – originada a partir da ação Nightsea Crossing (1981-87), assim como Conjunction (1983) –, há a comprovação de que o olho comunica melhor do que o som que sai da boca, que olhares dizem bem mais do que palavras.

A palavra que é escrita pelo observador acaba por se tornar uma imagem e não propriamente algo que imprima o que conhecemos por logos, pois o transforma em algo “figural”. “Na maioria das vezes, eu não consigo perceber o que as pessoas me escrevem”, descreve a artista. “Mesmo quando não é em tailandês, pois a tinta borra toda quando entra em contato com a folha. O importante para mim é mais o gesto da escrita e da partilha do que propriamente a palavra em si”.

 

1_a revolução somos nós #1_©patrícia corrêa

Patrícia Corrêa, Cravo #1, da série A Revolução Somos Nós. Snapshot Action, Lisboa, 2011. Fotografia de Patrícia Corrêa

 

Patrícia Corrêa, Ship of Fools. Videoperformance, Lisboa, 2012. Fotografia de Krzysztof Kaczmar

 

Pensando no sentido da relação da artista com a cultura portuguesa, comentamos com Patrícia Corrêa a forma como a arte pode conquistar uma imersão, por vezes, em um universo muito local e, ainda, num nível até muito pessoal de experiência do próprio artista, mas claro, relacionando-se com questões muito mais amplas, muito mais abrangentes e que se referem a todos os humanos. Proferimos isso, porque percebemos que, em alguns trabalhos, Corrêa se aproxima abundantemente de uma realidade imensamente portuguesa e, exemplificando de forma clara, demos o exemplo da performance A Revolução Somos Nós – que tem como base a Revolução dos Cravos – e Ship of Fools, uma videoperformance em que a artista coloca uma série de barquinhos de papel no rio Tejo – remetendo, de alguma forma, às grandes navegações e a relação de Portugal com o mar, seja através de Camões ou Fernando Pessoa.

“Todas ações já surgem com toda esta bagagem”, ela nos respondeu com atenção à ação dos barquinhos de papel, dizendo que o rio e a conjuntura daquele espaço já está carregada de história e, naturalmente, isso tudo acaba impregnado na performance, embora não seja algo forçado, pois a simples ação já imprime em si todo aquele contexto.

Quando ela comentou a performance Revolução Somos Nós, automaticamente, ela nos remeteu para a sua ação Vende-se Artista, com a qual ela aborda a atual crise econômica portuguesa e a necessidade de uma reivindicação coletiva que pudesse trilhar caminhos para um futuro melhor desta nação, uma revolução forte como foi a dos cravos.

Ainda, a extensão do tempo é algo recorrente no trabalho de Patrícia Corrêa e, para justificar essa escolha, ela declara: “a longa duração é exatamente para intensificar a repetição da ação, para intensificar o momento e a mensagem que quero partilhar”.

 

Notas

[1] Nietzsche, Friedrich. O nascimento da Tragédia, ou Helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 36.

[2] Artist statment. Texto obtido em: <http://patricia-correa.blogspot.pt/2013/03/tempo-4-year-after.html> (Consulta realizada em 26 de Junho de 2013).

 

 

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