A(s)cender: Consideração Sobre a Vida e a Obra de Marcus Vinícius

 

Transcendental, mas sem deslizar somente sobre o discurso em prol do metafísico. Marcus Vinícius de Souza Santos (1985-2012) – conhecido como Marcus Vinícius apenas – é um artista performático brasileiro nascido em Vitória (Espírito Santo, Brasil), que faz a(s)cender seu trabalho artístico com recursos, por vezes, análogos aos de rituais carregados de religiosidade, mas sem pregar qualquer espiritualidade exacerbada. É o indivíduo e a sua relação com o espaço o principal tema explorado pelo artista e, logicamente, isso envolve também as suas crenças, mas sem, contudo, convergir para qualquer sentido limitado e definitivo.

 

Marcus Vinícius, O Imprevisível, o Acaso e o Que Não Se Sabe, 2010. Fotografia de Yury Aires

 

Conforme expunha a frase tatuada no braço do artista, “the artist is warrior” [1] e, completando a ideia que o inspirou para tal escritura corporal, Marina Abramović conclui a frase: “to conquer not just new territory but himself and his weaknesses” [2].

Marcus Vinícius é um guerreiro. Redijo e pronuncio “é” e não “foi”, porque, apesar de ter recebido a triste notícia sobre o seu falecimento em setembro de 2012, julgo ser coerente a opção pelo verbo ser no presente do indicativo para o apresentar, pois um artista (um guerreiro) legitimamente destinado é eterno, é sempre presente e faz retumbar parte de si para a posteridade através da sua obra (da sua luta). 

 

Marcus Vinícius, Ciervo, da série Bicho do Mato, 2011. Fotografia de María José Trucco

 

Devo ponderar que, espontaneamente, tal qual ocorre com muitos dos praticantes da arte da performance, houve, na trajetória de Marcus Vinícius, um recursivo apelo a uma forma de espiritualidade mundana, uma espécie de teologia conflitante (ou até contrária à lógica normativa), concretizada na atitude do ritualismo como forma de buscar a força adicional para a investigação da relação entre a atividade estética e o deleite regressivo. [3] São “cerimônias sem Deus, rituais sem crenças” [4], mas nos quais não vemos um niilismo carregado de escárnio; o que vemos (ou o que eu particularmente vejo) é uma transcendência estética e não exclusivamente espiritualizada, uma experiência visual do artista a compartilhar seus emblemas pessoais com seus espectadores. São concepções que fazem o uso do seu próprio corpo para dar ênfase à reflexão sobre as relações deste com o que o circunda, estabelecendo uma forte conexão entre arte e vida. 

 

Ya no se trata de ennoblecer estéticamente la realidad, sino de ampliar lo estético a nuevos elementos que pueden encontrarse en la calle, en las plazas, en nuestro medio cotidiano y que no experimentan una estructuración de apropiar directamente la vida a través de una acción. [5]

 

Seus trabalhos, conjeturam elementos singelos, vislumbram ambientes esquecidos (ou não examinados como deveriam ser), instauram comunicações diversas entre o seu corpo e o espaço que o mesmo atravanca, constituindo um elo entre a sua matéria e a matéria espacial em um único corpo, em uma estrutura que se vincula de forma orgânica.

 

Marcus Vinícius, El Deseo Es el Rastro, 2011. Fotografia de Jimmy Rangel

 

E quem seria o perito mais aprofundado na sua trajetória senão ele mesmo para especificar todos os porquês das suas composições artísticas? Para maior esclarecimento, Érika de Souza Santos, irmã do artista, cedeu gentilmente o statement redigido por ele para ser publicado na íntegra neste presente texto:

 

The artist is warrior.

Meus trabalhos partem da observação e interpretação do espaço que me rodeia, enfrentando os embates éticos e estéticos de pensar esses espaços e as narrativas de intimidade. Defender o silêncio, o poético e a invisibilidade. Após esta aproximação aos lugares, intervenho com/no meu corpo em performances que estabelecem um diálogo entre o real e o imaginado. Inclina-se, dessa maneira, pelo vivencial, as experiências próprias dos lugares habitados dia a dia. Quero estar conectado e explorar a relação entre o Eu e seu entorno num mundo dilacerado pelas transformações urbanas e midiáticas, criando ações que manifestam transitoriedade e instabilidade. Tentativas de fazer um mundo para sobreviver… e viver minhas obsessões. Entender o cotidiano não só como espaço de sociabilidade, mas como paisagem. Uma busca de transcendência dos meus limites e de conexão com a totalidade, com a natureza idealizada, com o meu universo simbólico. Meus trabalhos traçam um mapa psíquico pessoal que expressa quem eu sou. Contudo, não são apenas sobre mim nem para mim. São profundamente tanto pessoais como arquetípicos. Tratam do escuro desejo que se desconhece. É uma busca de uma poética do cotidiano que vislumbra no limiar o excepcional, a transfiguração, o sublime, mas sei que estes são apenas instantes que ficam guardados em desenhos, instalações, fotografias e vídeos. Por ter vivido momentos limite de tanta intensidade, esse homem, personagem, ser, segue caminhando, não se consome; e por mais que caminhe, olhe, viva, sofra, é um homem comum. Afinal, tudo é tão simples…

E, de uma forma ou outra, é autobiográfico. [6]

 

Marcus Vinícius, Everything Imaginable Can Be Dreamed, 2012. Fotografia de Federico Feliziani

 

Dentre os principais trabalhos de Marcus Vinícius, o fogo, o tempo, o espaço, o reflexo e a dor (que de certa forma comprova o quanto vivo estamos e como nosso corpo responde aos estímulos externos em códigos reconhecíveis) são elementos explorados em suas invenções. Destaco as seguintes realizações: Território Expandido I [Ilha da Pólvora] (performance de 2007); O Imprevisível, o Acaso e o Que Não Se Sabe (vídeo de 2007); About the Time (performance de 2010); Bicho do Mato (série fotográfica de 2011); Before the Dawn… That Be Endless, When the Dreams Die…?; You Must Change Your Life; Fragmentos de Pequeños Pensamentos; Frágil III; El Deseo Es el Rastro; Honey (Not Only in This Word); Distant Closeness (performances de 2011); e Nudo (performance de 2012). 

Em The Presence of the World in Me (Part II), performance realizada no ano de 2011, o artista afirma que “o corpo não está jamais perfeitamente integrado nem no coletivo nem no eu”, cuja aflitiva simbologia criada na imagem do seu rosto banhado por cera quente advinda de velas que derretem em suas mãos diante do espelho, traduzem a sua (e a nossa) confusa consciência sobre as ocorrências corporais e suas relações com a memória e sentimento, bem como sobre a manifestação dessas duas noções que só se expressam por meio do nosso corpo. Esse agressivo banho de cera quente – que quase fere a sua face – dialoga com o delicado banho de mel executado na ação Honey (Not Only in This World).

No caso de The Presence of the World in Me (Part II), Marcus Vinícius expõe um mundo violento que deforma sua expressão genuína, que expõe, do lado positivo da máscara criada, um sujeito estranho com relação a sua verdadeira aparência, ao mesmo tempo que cria, do lado negativo da máscara, um molde, uma forma, para reproduzir a sua face preenchida por novas essências, mas, ao retirar a cera endurecida da sua face diante do espelho, o protótipo é quebrado e, assim, Marcus Vinícius assegura a sua particularidade, a sua essência diante de um mundo que nos impulsiona a seguir modelos, a multiplicar formas definidas.

 

Da esquerda para a direita: Marcus Vinícius, The Presence of the World in Me (Part II), 2011. Fotografia de Denis Romanovski e Non Grata Group; Marcus Vinícius, Honey (Not Only in This World), 2011. Fotografia de Kimmo Hidas-Ilmari Hokkanen, Ismo Torvinen e Verra M. I. Nummi

 

Em Everything Imaginable Can Be Dreamed, vídeo de 2012, Marcus Vinícius traz à luz um não-lugar, ou ainda, um lugar inventado, um habitat particular, íntimo, onde narra uma obscura história de si, a qual pode ser vislumbrada sob signos que soam imprecisos, incertos, confusos para o observador, mas que são seguramente concretos para o artista. Os códigos expostos soam ambíguos: mundanos e transcendentais de uma só vez.

 

Marcus Vinícius, Everything Imaginable Can Be Dreamed, 2012. Fotografia de Federico Feliziani

 

Fator que compreende grande parte dos trabalhos performáticos é a exaustão física. Representantes da body art, como a já mencionada Marina Abramović, Gina Pane, Orlan (que declara a carnal art como algo que não se emoldura como body art), os acionistas vienenses (Brus, Mühl, Nitsch e Schwarzkogler) bem como Letícia Parente, Rodrigo Braga e o grupo Empreza que, no Brasil, orientam suas referências em ações extremas naquilo que diz respeito aos limites corporais em prol da arte conceitual. Com Marcus Vinícius também foi assim, quando ele executou ações extremamente desgastantes que duraram apenas 1 minuto ou, então, até 28 dias seguidos.

Momentos antes de seu falecimento precoce, explorou seus limites corporais na ação intitulada por The Visible & The Unconscious em desertos da Mongólia no evento 2nd Land Art Biennial Mongolia LAM 360º, depois, seguiu para a Alemanha e, por último, para a Turquia, onde passou seus momentos finais de vida.

Movido pela sua paixão, Marcus Vinícius ofereceu a sua própria carne à arte. Esgotou-se com extremo empenho em mostras, bienais, festivais do Brasil e do Mundo e garantiu, devido à veracidade das suas concepções, espaço (sob homenagem) em um cotado evento ligado à arte da performance, dividindo holofotes com artistas consagrados, tais como Yoko Ono, Jill Orr, Hermann Nitsch, Snežana Golubović, Jan Fabre, Valie Export, Joseph Ravens, entre outros, durante a primeira edição do evento Venice International Performance Art Week, que ocorreu em Veneza entre os dias 08 e 15 de dezembro de 2012.

 

Marcus Vinícius, Everything Imaginable Can Be Dreamed, 2012. Fotografia de Federico Feliziani

 

Pontuou seu trabalho ardente aos 27 anos e, por conta da tamanha intensidade, possibilitou que uma chama se mantivesse suficientemente acesa para inflamar o mais íntimo sentimento do observador que ainda pode apreciar seu trabalho, o qual está disposto à contemplação sob os resquícios das fotografias e vídeos que tornaram objetuais a efemeridade das suas obras.

 

NOTAS

[1] Tradução livre: “o artista é guerreiro”.

[2] ABRAMOVIĆ, Marina. A frase citada em inglês pode ser traduzida livremente por “para conquistar não apenas o território novo, mas a si mesmo e suas fraquezas”. Ver em: <http://articles.latimes.com/2012/jun/15/entertainment/la-et-marina-abramovic-20120615>. Consulta realizada em: 26 de dezembro de 2012.

[3] Cf. VERGINE, Lea. Il corpo come linguaggio (La body art e storie simili), p. 13.

[4] GLUSBERG, Jorge. A arte da performance, p. 37.

[5] MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto, 1960-1974: epílogo sobre la sensibilidad postmoderna, p. 196.

[6] Statement do artista Marcus Vinícius gentilmente cedido por sua irmã, Érika de Souza Santos.

 

BIBLIOGRAFIA


GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto, 1960-1974: epílogo sobre la sensibilidad postmoderna. Madrid: Ediciones Akal, 1998.

VERGINE, Lea. Il corpo come linguaggio (La body art e storie simili). Milão: Edizioni Skira, 2000.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

FREY, Tales. “A(s)cender: Consideração sobre a Vida e a Obra de Marcus Vinícius”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 2, jan. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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