Maíra Vaz Valente: Arte como Redação Imagética de um Interstício Social

 

Principiemos este encontro, esta relação entre autor, leitoras(es), artista e demais envolvidas(os) pela opção da palavra “interstício” associada ao trabalho de Maíra Vaz Valente. Tratando-se de uma artista que propõe vivências/experiências partilhadas através de ações, por meio de performances relacionais e de todas as estratégias conceituais que visam a reunir pessoas, coligar realidades, incorporar indivíduas(os), o termo “interstício”, utilizado como um intercâmbio que se esquiva de um modelo econômico capitalista – tal qual Karl Marx bem aplicou em suas escritas e Nicolas Bourriaud retomou em sua obra Estética Relacional [1] –, é indissociável dos encontros promovidos por essa artista paulistana. Maíra desobedece uma lei amparada pela ganância; as relações humanas distintas das vigentes no sistema é que são evocadas nas suas propostas artísticas, as quais não abdicam da relação direta com o público e, sendo assim, sua arte é espaço de uma intensa sociabilidade, é um completo lugar dos encontros.

 

Maíra Vaz Valente, Exercício para Atravessar o Deserto. Performance realizada no Rio de Janeiro, Brasil. Junho de 2015. Fotografias de Raphael Couto & Tahian Behring

 

Exercício para Atravessar o Deserto (2015) é só mais um exemplo concreto das certificações declaradas logo no arranque desse conjunto de palavras unidas para esmiuçar o que a artista Maíra propõe. Através da escrita, ela não apenas vincula pessoas (ela e quem quiser participar), mas também reflete diretamente sobre o elo estabelecido entre dois seres que constituem, entre si, uma relação de amizade. A regra estabelecida é que um(a) participante por vez possa se sentar à sua frente para executar a ação que só ocorre quando há o intercâmbio. Entre os(as) dois(duas) há uma mesa e uma folha de papel sobre a mesma e, então, com um único lápis, ambos(as) escrevem com as mãos unidas e de uma só vez a palavra amizade. Há também, nessa ação, um diálogo sobre a acepção deste vocábulo escolhido para ser timbrado sobre o papel; portanto, para além do deslizar do grafite sobre uma folha branca, o vazio daquele objeto é preenchido de sentido e faz analogia direta com a conversa estabelecida que aciona um sentimento de afeto entre a artista e quem está à sua frente. Cria-se, assim, uma conexão mais viva entre dois seres que antes poderiam se relacionar apenas com certa indiferença ou, ainda, poderiam nem ter sequer um vínculo traçado e, nesse sentido, o título da obra sugere justamente o caminho repleto de vida que é projetado sobre um possível deserto que antes separava as duas subjetividades.

A artista, em uma frase escrita na presença da audiência e antes do início da ação-encontro, que só existe quando há a participação de alguém (um para um), explica de forma concisa a lógica da sua performance em uma escrita produzida com o grafite aplicado diretamente sobre a parede:

 

Hoje, decidi realizar um exercício para atravessar o deserto. Para tanto, algumas questões são importantes antes desta partida. Faz-se necessário compreender, entender, apreender o que é amizade. [2]

 

A partir de cada uma das relações partilhadas, Maíra formula anotações acerca de todos os encontros, e isso tudo, junto com as outras composições elaboradas com lápis e papel, resultam num espaço expositivo em que podemos observar o acúmulo progressivo de pensamentos e de conversas oriundas dos encontros.

 

Maíra Vaz Valente, Testamento. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Novembro de 2012. Fotografia de Bruno Makia

 

Na performance Testamento (2012), a artista divide com o público-participante o seu ponto de vista a respeito de um determinado lugar e expõe, através de gestos e do olhar, algumas ponderações com relação ao local onde todos(as) convivem numa determinada circunstância. Como explica a própria artista, nessa performance “o público é testemunho, cúmplice e, por fim, herdeiro” [3] da ação, a qual é iniciada com a palavra “testamento” escrita em giz sobre o chão e finalizada com a data do dia em que a performance acontece.

 

Maíra Vaz Valente, Testamento. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Novembro de 2012. Fotografia de Bruno Makia

 

Nos títulos das criações de Maíra, observamos que a palavra é de suma importância e é através da combinação de signos da escrita que muitas vezes a artista ajusta o conceito de cada um dos seus trabalhos. Vemos essa repetição em muitos deles, como, por exemplo, em Relações de Poder (2008-2013), ação que ocorre segundo instruções advindas da organização de palavras e de perguntas direcionadas à audiência, sem a qual a performance não acontece. O desencadeamento desse trabalho é oferecido ao público, o qual pode dar o direcionamento da ação e, nela, promover a intervenção que lhe for conveniente a partir da proposta materializada no espaço pela artista. Maíra instrui uma determinada pessoa a amarrar suas mãos com fios e a ação só chega ao fim quando o público for capaz de incluir em suas ações a total libertação das mãos de Maíra Vaz Valente.

 

Maíra Vaz Valente, Relações de Poder. Performance realizada em Curitiba, Brasil. Maio de 2013. Fotografias de Lauro Borges

 

Experimentações para um contorno (2008-2013), trabalho de performance, instrução e fotografia, indica que, através de um programa escrito ladeado de uma reminiscente imagem, o(a) participante conviva intimamente com alguém amarrado(a) por uma corda ao seu corpo pelo tempo de vinte e quatro horas. Embora observemos influências de obras de instrução como as de Cildo Meireles e de Yoko Ono, Maíra sugere uma ação que sublinha a coesão existente em suas concepções, tanto pelos elementos apontados, como aqueles que unem corpos, quanto pelo dispositivo apresentado como obra, que traz a palavra como essência e, sobretudo, a preocupação com as relações humanas na arte.

 

Maíra Vaz Valente, Experimentações para um contorno, 2008-2013

 

Observando integralmente a sua trajetória de forma mais analítica, percebemos, para além da palavra e das possíveis escritas (figurais ou logocêntricas, expressões estáticas e/ou que sugerem ações), uma aguda disposição pela utilização do indumento normalmente como alternativa para coligar pessoas e, com isso, possibilitar o convívio, engendrar alguma experiência legitimamente partilhada. Dentro dessa premissa, vale destacar trabalhos como Homólogos (2010), Entre as Formas Dissolvidas do Desejo (2009-2010), 2:8:1 (versão rosa), 1:1 (versão amarelo), respectivamente de 2010 e 2010-2011, e Tecido Social (2014), nos quais percebemos inclusive referencias tais com Milcah Bassel, Lygia Clark, Lygia Pape, Franz Erhard Walther e Rebecca Horn.

 

Maíra Vaz Valente, Homólogos. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Agosto de 2010. Fotografia de Fabíola Salles Mariano

 

Maíra Vaz Valente, 1:1 (versão Amarelo). Performance realizada em Porto Alegre, Brasil. Junho de 2010. Fotografia de SEU/Divulgação

 

Maíra Vaz Valente, Entre as Formas Dissolvidas do Desejo. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Março de 2012. Fotografia de Bruno Makia

 

A performance Tecido Social, diferentemente das que foram citadas dentro deste grupo substancialmente enquadrado na vestimenta como força motriz da ação, é uma obra que não necessariamente aborda a veste como elemento central, pois a performance ocorre com auxílio de duas máquinas de costura dispostas num determinado espaço e, em uma delas, está a artista a executar alguns pontos de costura e, em outra, o(a) participante da ação, o(a) qual apresenta seus conhecimentos para a performer, enquanto pode este(esta) participante também aprender outras práticas de costura que a artista exercita ao longo de sua performance. Mas, nomeadamente, é a troca de experiências que ultrapassa os desempenhos ali executados pelas duas pessoas, o mote essencial do trabalho e Maíra, que inicialmente nem costurar sabia, acaba por aprender alguns passos durante a própria ação e torna mestres cada um(a) dos(as) participantes. O resultado do objeto elaborado é indiferente; pode ser adorno para o corpo como pode ser utensílio doméstico, pode ser um mero tipo de ponto de costura como pode também ser uma sofisticada composição de design sobre um tecido.

Com o título, habilmente Maíra Vaz Valente faz alusão às divisões de camadas sociais. Porém, de forma oposta a uma separação rígida, ela contribui, dentro dessa concepção, para que haja a possibilidade de costurar, em um único tecido, diferentes contextos, integrando realidades diversificadas, alinhavando, numa única trama, as diferenças que segregam variados grupos sociais. Essa ação funciona ainda como uma “construção coletiva dos saberes e das relações intergeracionais” [4].

 

Maíra Vaz Valente, Tecido social. Performance em São Paulo, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Em muitos dos seus trabalhos, notamos ainda a água como um elemento fundamental para criar uma experiência e fazer com que aconteça uma determinada ação a ser dividida por um grupo variado de pessoas num específico âmbito social. Em Escape (I) e Escape (II), ambos realizados em 2014, assim como Transferência de Valores (2013), voluntários ajudam a artista a transportar água de um lugar para o outro com auxílio de baldes, de uma fonte até a outra, de um ponto a um outro estipulado como local de finalização da tarefa. Em Escape (I), ela recompõe o andamento das águas de um trecho a outro de um rio que foi invisibilizado nos processos de escolha de urbanização, como é o caso da cidade de São Carlos, onde a ação foi realizada.

Nessas criações de Maíra Vaz Valente destacadas acima, há o uso da água em sua forma fluida, fidedigna e sem desperdícios, além da abordagem geral que seu trabalho envolve em torno de um estrito sentido social; a água é também uma moeda de troca, um elemento vital que mobiliza todas(os) por ser um elemento que é um bem comum para a nossa sobrevivência.

Em outros trabalhos, que também têm a água como elemento de discussão, a situação é representativa e não real, como no caso da performance Inundação (2015), onde, em um enorme tecido – o qual pode ser vestido por até cinco pessoas, além de incorporar outras nas suas bordas –, a artista permite que a tarefa de bordar a textura seja feita por incontáveis mãos. Nessa experiência, conversações emergem com leveza em um tempo em que pensar nas sociedades de forma mais coletiva e menos individualista passa a ser uma urgência e não mais um estilo de vida decorrente do comportamento que o meio urbano pontua.

Sobre Inundação, a artista explica:

 

Em busca de uma situação de construção coletiva de um texto, uma poesia em forma de fluxo, proponho criar uma imagem de um rio em que possa convidar o público a bordar palavras, versos e poemas sobre uma grande superfície de tecido. No encontro inusitado entre artista e público, inunda-se o objeto e o espaço de palavras, enquanto tecem uma reflexão poética acerca dos encontros e dos rios, ambos que já se tornaram invisíveis nos grandes centros urbanos. [5]

 

Maíra Vaz Valente, Inundação. Performance realizada em São Paulo e Campinas, Brasil. Março e Junho de 2015. Fotografias de Bruno Makia

 

A conduta ditada como norma a ser seguida nas grandes cidades adestra a(o) cidadã(o) a adotar um comportamento egocêntrico, hedonista e, assim, faz com que ela(ele) contraia um horror com relação ao tempo investido em momentos não tidos como produtivos num sentido financeiro. Logo, os encontros mais afetuosos são postos à margem numa coletividade que exige um ritmo frenético e robótico em sua fiel conduta, a qual faz analogia à figura do(a) operário(a) inserido(a) num sistema fabril. Maíra, de modo perspicaz, produz uma fissura nessa “ordem” quando leva Movimentos para Atravessar a Multidão (2006-2009) à avenida Paulista para provocar, sob diferentes formas e com distintas estratégias, mas sempre desmoronando, com ternura, toda uma resolução de comportamento edificada como ideal para ocorrer em espaço público. Movimentos para Atravessar a Multidão é uma série de quatro ações e, em cada uma, há uma provocação específica em que a artista denuncia o movimento maquinal da cidade grande. Em Paulistanos, uma das quatro variações de Movimentos para Atravessar a Multidão, abraços coletivos ocorrem na travessia de uma faixa de pedestre, respeitando o breve intervalo de tempo que temos para atravessar essa zona. Em outra ocorrência, designada como Guarda, em um dia de chuva, com colaboração/participação de outras(os) artistas, ela expõe um grupo que permanece parado no meio da faixa de pedestre sem pressa alguma, singelamente concentrados na única ação que têm a executar com seus guarda-chuvas em tom vermelho padronizado (e não poderia também ser esta uma comprovação metafórica de uma sociedade homogeneizada além do ato proposto de olhar a cidade?).

Há ainda, com Baile, em que a artista convida uma banda para tocar na avenida Paulista, uma especial ruptura na seriedade de quem percorre aquele espaço quando todos dançam na faixa assim que o sinal de pedestre fica verde, apontando a ausência da ludicidade em uma massa estandardizada e quase desprovida de leveza em suas árduas rotinas. Outra ação, Espaços de Contemplação, em que os(as) performers fazem uso de cadeiras dispostas sobre uma faixa de pedestre, cada um(a) executa as simples ações de sentar e de observar os fluxos da cidade justamente quando a agitação de carros é interrompida para os pedestres atravessarem a frenética avenida da maior cidade do hemisfério sul do planeta.

Movimentos para Atravessar a Multidão não apenas atravessa a massa; essa ação invade o espaço público. E o termo “público” aqui tem o mesmo significado que tem para Hannah Arendt; ou seja, ele “significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e que é completamente diferente do lugar que nos cabe dentro dele” [6].

Assim como outras(os) artistas que investem na arte relacional como proposta estética, tendo (ou não) como base a teoria elaborada pelo crítico e curador francês Nicolas Bourriaud, Maíra Vaz Valente tem consciência de que as relações humanas na arte passam a ser a função-chave da sua obra e, assim, sua preocupação conceitual não se fixa unicamente em dinamizar a relação entre o público participante e a obra num espaço direcionado à arte; muitas vezes é o(a) transeunte desavisado(a) da rua que é acessado(a) nos seus trabalhos e, nesse sentido, a artista propõe, para além de uma estética relacional, uma zona de convivência que reajusta, de forma mais humana e menos segregacionista, toda a forma como percebemos a nossa sociedade em seu funcionamento demasiadamente entregue à ordem capitalista doentia. Maíra é uma artista utópica no melhor sentido que isso pode ter e investe delicadamente na construção de novas formas de existência sem ignorar a realidade que nos cerca.

 

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TALES FREY: Os seus trabalhos todos possuem títulos extremamente significativos. A palavra ocupa um lugar privilegiado nas suas criações e a “escrita final” da ação, seja através de letras efetivamente, de objetos ou de algum tipo de indumento, ela é sempre feita de forma coletiva e, apesar de haver um conceito previamente elaborado por você, a composição que define isto que eu opto por chamar de “escrita final” do seu trabalho é sempre um arranjo coletivo; há sempre um(a) participante que intervém de forma viva no que você propõe. Quando você cria um trabalho, naturalmente você elabora uma estratégia firme sem ser intransigente, mas o cuidado para que a “caligrafia” não escape da margem parece existir. Como você observa o seu próprio trabalho nesse sentido?

 

MAÍRA VAZ VALENTE: A pergunta que me faz contém uma série de camadas sobre o meu processo que se revela em diversos trabalhos. Às vezes parece difícil explicar tudo que me ocorre em pensamento e descoberta sobre o mundo, daí proponho minhas ações.

Mas, no horizonte desta pergunta, inicio com um comentário que pode ajudar a gente a entender o que está inscrito nesta jornada. Fica cada vez mais clara minha necessidade e busca pelo outro, porque tenho para mim algumas questões do mundo que me inquietam:

 

O que é possível acontecer nas relações de proximidade?

O que pode acontecer quando um indivíduo está ao lado do outro?

 

Daí outras perguntas surgem:

 

O que dispara/mobiliza o engajamento nas pessoas para a realização de uma ação?

Como é possível então engajar o outro nalguma coisa que me move, numa experiência que acredito ser importante?

Como é possível construir o comum, é possível?

 

Então, as palavras me perseguem e eu as persigo numa tentativa de depurar cada vez mais seus sentidos. Talvez porque tenho o desejo ou a necessidade de compreender ou desvelar conceitos que determinam ou configuram as conformações sociais e contemporâneas da cultura, na qual estou inserida. Não sou cientista social, e nem opero dessa forma no meu trabalho de arte como anunciaria Hall Foster, quando uma série de artistas trabalharam e ainda trabalham na chave da etnografia. Minha proposta é experimentar num sentido sem definições, na chave do convite e do encontro, ou por provocações como na ação performática. As palavras e conceitos que me são mais caros são Amizade, Comum e Bem Comum, Público e Espaço Público e Política. Vejo que cada uma dessas palavras, em diversos arranjos, nem sempre todas juntas, estão contidas em alguma medida nas minhas proposições. Mas asseguro que há desvios necessários e que acabam por tocar tais questão que me inquietam de outra maneira. Por exemplo, os recentes trabalhos realizados na proposta de autorresidência na NUVEM, em Visconde de Mauá – Conversas de Rio (2014) e Histórias de Rio (2015) –, ou ainda em trabalhos antigos em fotografia – TimeLife e The Most Beautiful Love Shape, ambos de 2011 –, o sujeito está em relação à paisagem geográfica ou íntima. Mas é no olhar para a condição humana que resgato as palavras que me acompanham.

Portanto a palavra, como bem aponta, é uma estratégia de sublinhar aquilo que é importante no desenho dos meus questionamentos. Talvez por uma facilidade na comunicação oral, a palavra tomou espaço importante nessa relação. A palavra no processo de trabalho tem se revelado como um agente de prenúncio ou de registro. Poderia então afirmar que a palavra se tornou, ao longo desses anos, um elemento operativo. E daí é quase sempre no título que encontro um espaço potente e apropriado para enunciar a questão abordada na proposta, e funcionam para além do que faz um nome.

Agora, se a palavra ocupa um lugar privilegiado, não sei; talvez participe da mesma hierarquia de todos os outros elementos da ação. Penso que se fosse assim, poderia ser um impeditivo do espectador, participador ou testemunho para acessar a proposição. Ou seja, o título se tornaria uma bula em um dos casos. E a construção da palavra, em outros, seria o objetivo final da ação. O que é fundamental é o encontro, ainda que seja num olhar silencioso, numa interação não esperada.

Voltemos à importância do título, por exemplo, quando uma performance está inscrita dentro de um programa de uma mostra. A palavra ali pode já disparar um processo de leitura e imaginação. Ou quando acessamos um registro após a ação, o título pode ser uma frase dentro do texto que cria paralelismos, conjugando realização e proposição.

Mas não nego que em algumas ações a palavra organiza o sentido da ação, e quando isso é necessário acontecer, escrever como uma convocação e ação contida da performance, faço. Em Testamento (2012), por exemplo, a palavra tem uma função evocativa. Em outras ações, sua força ou importância no decorrer da ação às vezes desaparece. E daí, o que acontece na proposta de Inundação (2015)? Pra que eu peço palavras? Não, eu não peço apenas palavras, peço também poesia, versos e também desenhos. A palavra se torna meio de alcançar uma conversa, ou um silêncio, ou uma investida no fazer que se dá no bordado.

A ação e a relação é a tônica de todo acontecimento que proponho. A palavra se torna ponto de contato, pele ou dobra de uma proposta. Essa pele se transmuta, esse estar próximo pode ser, como nos processos do Fluxus, uma instrução para estar junto. Muitas das roupas que construí têm essa tônica: uma provocação de como estamos um implicado com o outro. Mas, de que forma? É somente na fisicalidade, na ocupação dos espaços que estamos implicados? Ou a vivência conjunta tem suas implicações também na distância física? E aqui amplio para as problemáticas da convivência entre povos e nas implicações ambientais.

Da “caligrafia” que você me aponta, vejo que, ao longo desse tempo de produção (desde 2004), à cada proposta as estratégias de convocação para o encontro transformam minhas perguntas, traz outras respostas, pontos de vistas, e até mesmo novas perguntas. Parece que nesses encontros há uma real possibilidade de reinauguração de espaço-situação da antiga Ágora. Ou seja, o reencontro com o diálogo entre sujeitos, que os faz agentes e políticos no mundo. Ora, se é a Ágora o desenho das minhas propostas, não posso fechá-la. É preciso sempre que eu corra o risco de ser engolida, comida pelos leões, transmutada em personagens, que ocorra uma troca de máscaras, porque é nesse espaço do diálogo que os rumos da vida e as decisões de como estar no mundo se configuram. Mas faço isso na Ágora da Arte, se é que podemos assim separar.

A relação direta com espectadores avisados ou não, no caso de uma intervenção em espaços abertos e/ou público, a convocação, é um pedido por posicionamento. Ou mesmo num olhar mais distanciado, quando, por exemplo, na instrução “Experimentação para um contorno” (2008-2013), vejo um acontecimento para o COLETIVO, que, entretanto, ainda que lide com questões do COMUM, é organizada na chave do COLABORATIVO para descobrirmos as saídas.

E, por fim, penso que quando apresento a um público as minhas inquietações, às vezes inacabadas, fora de uma lógica esperada, em que este (o outro) pode estar, compartilhar, colaborar e construir junto, o desejo acontece, mas o inesperado também. E se esse outro se engaja na proposição, vejo como consequência da necessidade de se realizar tal ação no momento da proposta. E se tenho assim uma “escritura final” de um programa de ação a seguir e uma questão para o mundo, quando novamente o outro corresponde, não é pela relação de condescendência que a performance/intervenção poética acontece, mas talvez seja por uma resistência, uma pulsão de vida compartilhada daquele instante.

Mas talvez tudo isso seja suposição e aposta. Quem sabe daqui a pouco esse processo performático de construir uma posição no mundo pode mudar de direção completamente. O diálogo, o encontro e a amizade são fundamentais para tanto.

 

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NOTAS

[1] Consultar: BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009, p. 16.

[2] VAZ VALENTE, Maíra. Frase que dá início à performance “Exercício para atravessar o deserto” (2015). O texto conceito encontra-se disponível em: <http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 26 jun. 2015.

[3] VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra “Testamento” (2012). O texto encontra-se disponível em: <http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 30 jun. 2015.

[4] VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra “Tecido Social” (2014). Texto gentilmente fornecido pela artista.

[5] VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra “Inundação” (2015). O texto encontra-se disponível em: <http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 30 jun. 2015.

[6] ARENDT, Hannah. “A Esfera Pública: o Comum”. In: A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 77.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Maíra Vaz Valente: Arte como Redação Imagética de um Interstício Social”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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