Como O Som De Lápis-grafite Sobre Papel Cartão: Helmut Heiss

 

Helmut Heiss vive e trabalha em Viena, na Áustria. O artista se formou pela Academia de Belas Artes de Bolonha em 2002, e em 2008 completou o curso em Performance e Escultura pela Academia de Belas Artes em Viena. No mês de junho de 2012, participou do Rapid Pulse International Performance Art, festival internacional de performance que aconteceu em Chicago, nos Estados Unidos. O artista apresentou o trabalho Sounds and Shapes, uma série de fotogramas abstratos criados através de uma máquina pela qual canalizou os sons da cidade de Chicago. André Schürmann descreve a percepção de Heiss em relação a Chicago: “Mais que uma cidade que se vê, Chicago é uma cidade que se ouve”. Essa descrição pontua uma Chicago sonora e não arquitetônica, como é geralmente percebida. Sounds and Shapes é uma série que transmite a qualidade técnica e traço no trabalho de Helmut. A percepção do artista sobre o que é o lado de fora do seu corpo instiga uma reflexão a respeito da impossibilidade de não se relacionar com um espaço, com uma cidade. A decisão de Helmut Heiss é participar, fazer parte, estar presente.

 

Helmut Heiss, Sounds and Shapes, Chicago, 2012. Fotogramas abstratos. Material: gravações, laser, tripés, amplificadores e caixas-de-som

 

Sounds and Shapes é quase um tom musical, uma nota arquitetônica. São ilustrações do posicionamento do artista quanto a sua experiência na cidade. O corpo do artista parece se deslocar explorando pontos de desequilíbrio de sua relação com Chicago, como também parece se deslocar explorando respiros entre as definições que a performam. Flip/Flop, por exemplo, é um desses espaços entre: uma exposição coletiva que Helmut organiza para conhecer novas vozes assim que chega na cidade, então novidade para o artista, no início de 2012. Helmut Heiss vai se estabelecendo como um artista que sofistica uma ideia originalmente simples. Há objetividade na sua postura e em suas outras esculturas; sua execução é de acabamento cortante e preciso. Mas ele mesmo faz questão de se afastar de definições que tento modelar.

 

Helmut Heiss, Untitled, Rehlovice, República Tcheca, 2004. Intervenção: Fechamento de toda entrada ou abertura para um espaço com tijolos e pedras

 

No projeto Gumpendorferstrasse 157, Heiss se posiciona entre uma afirmação artística clássica – a de que a obra preexiste no tempo-espaço – e uma expressão contemporânea rotineira, banal: para Heiss, a limpeza de uma sala pode transformar-se em elemento de composição do objeto artístico. O artista participa do contexto intelectual e espacial do projeto, desenvolvido com outros seis artistas em Viena, no ano de 2006. Nesse trabalho, a presença de Helmut naquele lugar é sua estratégia performática. Em outro momento, ele circunscreve sua percepção da cidade de Chicago em Sounds and Shapes, trabalho ao qual já nos referimos, e penetra a barreira dos circuitos sociais se convidando a entrar na cidade através de sua curadoria em Flip/Flop. Em 2004, Heiss fecha com tijolos toda abertura e qualquer entrada para uma sala, em Rehlovice, na República Tcheca, então se retirando do que é exterior à sua interação corporal com a obra, talvez um excesso naquele caso. O trabalho é sobre seu corpo no mundo. O trabalho é quase todo documentado em preto e branco, que também imprime uma trajetória de identificação de uma linguagem estética de participação no mundo, portanto, enquadra também sua reflexão política.

Helmut Heiss parece a ponta de um lápis de grafite maciço provocando atrito em uma folha de papel cartão. Seu corpo é quieto, sossegado, mas a interferência que provoca no espaço é de transformação mais sonora que visual. Swishing sound. O corpo de Heiss ocupa o espaço como se fosse a materialização de uma nota, um som constante, progressivo, delicado mas que reage às influências do momentum.

 

Helmut Heiss, Verein zur Förderung des professionellen Dilettantismus, Projeto Gumpendorferstrasse 157, Viena, 2006

 

Helmut Heiss, Flip/Flop, curadoria da exposição, Austrian Studio, Chicago, 2012

 

Começo a entrevista situando preferências do artista; pergunto se prefere um video call ou chat e ele me surpreende com a informação de que está no Acre, norte do Brasil, em uma residência artística: ACRE (Artists’ Cooperative Residency and Exhibitions). A conexão virtual entre floresta e cidade ofereceu, portanto, bastante tempo para reflexão entre perguntas e respostas. O projeto de Helmut Heiss para a residência se tornou motivo de curiosidade maior nesse percurso. O artista fala da possibilidade de fracasso na produção artística; estratégia contemporânea para expandir o entendimento do que vem a ser a produção cultural. Observo que Heiss participa de processos colaborativos, performa a documentação dos seus trabalhos e pesquisa a sua própria linguagem através da técnica da intuição, processando incertezas. Slavoj Žižek, interrogando o real através de Hegel, considera: “A intuição é arrancada do contexto externo espaço-temporal causal e trazida para dentro do espaço-tempo interior do sujeito, e uma vez que a intuição é transposta dentro dos limites da Inteligência ela entra sob influência do seu poder” [1].  Escuto a voz de Helmut Heiss.

 

Foto do perfil de Helmut Heiss em uma rede social, outubro de 2012

 

NATHÁLIA MELLO: E a sua identidade virtual – pública? Não há muitas fotos ou informações ao seu respeito; o seu trabalho é mais importante que sua aparência? Como você se relaciona com o networking? Vejo as imagens e textos na rede sobre você como uma opção de representação visual vaga, misteriosa. Isso é proposital?

 

HELMUT HEISS: OK, vamos começar. Tenho que avisar, eu acabei de acordar… então… estou um pouco preguiçoso… Acho que networking é muito importante… O artista hoje em dia deve fazer parte disso… Mas acredito que há maneiras diferentes de se conectar. Eu sempre prefiro conhecer pessoas na real. E sim, muitos dos meus trabalhos são uma representação de mim mesmo ou alguns trabalhos, de alguma maneira, performam ao invés de mim. Mas não sei se são trabalhos tão abstratos assim…

 

NATHÁLIA MELLO: Eu gosto dessa preguiça produtiva! O que chamo de abstrato é o seu perfil virtual nas redes, por exemplo, sua foto no skype. Comecei a refletir sobre a importância da ID virtual do artista e imaginar se você se importa com isso.

 

HELMUT HEISS: Ah, agora te entendi! Você tá certa! Eu não gosto de colocar minhas fotos nas redes… Me sinto mais seguro assim… Isso é um pouco assustador para mim…

 

NATHÁLIA MELLO: Você relaciona seu trabalho artístico a algum estilo ou à sua formação em Viena ou Bolonha? Como a Academia influencia sua produção? Quais são suas principais referências?

 

HELMUT HEISS: Não há relação com um “estilo”… Acredito que “estilo” só acontece após algum tempo… Viena é uma influência significante para mim… Especialmente durante o período acadêmico… Um pouco menos agora. Sempre estive interessado em produção artística realmente fresca…

 

NATHÁLIA MELLO: A produção artística fresca é a produção artística do instante? Que tenta se distanciar de um estilo estabelecido ou linguagem?

 

HELMUT HEISS: Não necessariamente… Não sei se há tal coisa como “estilo estabelecido”… produção artística jovem para mim é a arte que se arrisca, que conta com aquilo que talvez não dê certo, não funcione…

 

NATHÁLIA MELLO: Gosto muito do que você diz sobre seu trabalho Gumpendorferstrasse 157: “O processo de limpeza lembra o processo escultural de remover material para então revelar a forma escondida.” Michelangelo?!

 

HELMUT HEISS: Gosto também disso. Fala da essência do processo escultural por se relacionar com uma rotina cotidiana. Limpar e clarear um espaço.

 

NATHÁLIA MELLO: Você está agora em uma residência no Acre. Se você levasse em conta o risco de que “alguma coisa talvez não funcione” o que você produziria? É isso que você está levando em conta no Acre?

 

Helmut Heiss, Construção do forno de pizza. Residência ACRE. Acre, Brasil, julho de 2012

 

Helmut Heiss, Forno de pizza. Residência ACRE. Acre, Brasil, julho, 2012

 

HELMUT HEISS: Hm, sim… Alguns trabalhos tentam expandir o entendimento do conceito de arte. Isso implica que, através da expansão do conceito de arte, existe um risco por posicionar-se fora do entendimento do que é arte… O trabalho pode fracassar porque não é arte… Para a ACRE estou planejando construir um forno de pizza, que não sei se vai funcionar e que não sei se no final isso poderá ser considerado “arte”…

 

NATHÁLIA MELLO: Mmm, eu quero um pedaço dessa pizza… Eu diria que o trivial, elementos de rotina, ações cotidianas estão muito presentes na prática artística contemporânea. André Schürmann chamou você de “máquina-medium ou um transformador” que traduz uma “sonora Chicago” em imagens. Qual foi sua metodologia para criar essas imagens?

 

HELMUT HEISS: O principal foco desse projeto foi a produção de fotogramas abstratos. Para isso eu construí uma máquina simples que era capaz de transformar o som gravado em imagens, desenhos, fotos abstratas… Os registros que gravei não eram interessantes por conta dos sons emitidos. Tentei gravar o som enquanto tirava a fotografia, então o som era, geralmente, chato, sem graça… Foi importante a transformação de som para foto, foi automático, de certo modo. Não tive muita influência sobre isso. O tempo de exposição, o setup do pequeno espelho, controlar o volume, me fizeram ter um pouco de controle do resultado. Como no processo fotográfico de verdade: luz, tempo, foco… Talvez tenha aqui uma conexão entre sua pergunta sobre ID virtual e esse trabalho… Estava pensando alto…

 

NATHÁLIA MELLO: Trabalho com a chatice como conceito e percebo o risco que a atividade propõe… Helmut, como você organizou a curadoria da sua exposição Flip/Flop em Chicago no início do ano?

 

HELMUT HEISS: Foi uma estratégia para fazer amigos… Então, convidei pessoas que eu achava que eram divertidas!

 

NATHÁLIA MELLO: Estratégia contemporânea! Você se imagina em uma só cidade, em um lugar para envelhecer? Você trabalha mais com amigos ou com pessoas que você não conhece?

 

HELMUT HEISS: Deve ser confortável ter uma base… Poderia ser qualquer cidade. Sinto a necessidade de deixar a cidade como base depois de um tempo para explorar o que for – como ficar em casa o dia inteiro e depois sentir a necessidade de sair, só que em escala maior… Novas cidades significam novos amigos, novas experiências etc. Em Chicago foi fácil chegar…

 

NATHÁLIA MELLO: Qual a relação que você faz entre estética e política? É um relacionamento intrínseco?

 

HELMUT HEISS: Amo conectar estética e política. Talvez essa conexão seja a essência para minha compreensão. Eu gosto do fato de que um objeto ou um produto de arte possa ser bonito e politicamente provocante. Meus trabalhos favoritos são os que possuem alguma mensagem política como conteúdo do recipiente estético.

 

NATHÁLIA MELLO: Obrigada pela conversa, Helmut, foi um prazer. Vou editar isso e te enviar.

 

HELMUT HEISS: Oba! Agora, cigarro! Foi um prazer!

 

 

NOTA

[1] A.A.V.V. Interrogating the Real. 1. ed. Nova York: Continuum International Publishing Group, 2006, p. 180.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MELLO, Nathália. “Como o Som de Lápis-Grafite sobre Papel Cartão: Helmut Heiss”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 1, nov. 2012. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Hilda de Paulo

© 2012 eRevista Performatus e a autora

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