Sobre Claudia Paim, Para Claudia Paim

 

Claudia Paim, Entre Minha Boca e Teu Ouvido. Performance realizada na cidade de Porto Alegre, Brasil. Agosto de 2017. Fotografias de Denis Rodrigues

 

13 de dezembro de 2017

A performance é um acontecimento. Um ato de vida. Uma coisa que é.

Noite de abertura, abertura de exposição. Uma exposição que se chama DES| COMPOSTOS, de Claudia Paim e Dione Veiga, na Galeria Península em Porto Alegre. A exposição fala de paisagem, um tema explorado já há tempos pelas artistas. O que é paisagem para você? Qual é a paisagem que lhe é mais chocante, mais inesquecível, o que sentiste ao experienciá-la? O que viveu o teu corpo quando se conectou com um lugar nunca antes visto, ou já visto, mas nunca antes percebido como agora. Às vinte horas fomos convidados para ir até o jardim, e lá, com os pés descalços sobre a brita, está sentada, impávida, Claudia Paim, em um dos bancos de pedra rosa que compõem o jardim. Em cima da sua cabeça se encontra uma lâmpada incandescente, que ilumina o seu rosto quando olha pra frente e, quando abaixa a cabeça, vira uma silhueta. A plateia começa a tomar lugar ao redor do corpo-instalação que quase não se movimenta e aguarda os movimentos dos outros. Uma observadora atenta que, ao perceber que todos estão acomodados, começa a falar de modo quase lírico, quase banal, sobre uma memória de paisagem sua: um dia em que ainda criança, viajara (de fusca) com os pais, nos anos 1980, até o litoral do Rio Grande do Sul e, no meio de uma narrativa cheia de imagens, contando de um lago incrível que se via do carro e do quanto, em algum momento específico da paisagem, o lago ficava na mesma linha do horizonte e era como se diante disso ________ e Claudia faz uma ação que revela aos seus interlocutores ali que na sua mão direita todo o tempo estivera segurando uma mangueira ligada a qual ela própria mantivera dobrada para que a água não vazasse, mas nesta hora ela desdobra a mangueira e enfia o jato de água pra dentro da boca _________. Esta ação muda brusca e profundamente a narrativa que até então se baseava em palavras, claras e precisas, alimentando a nossa tão habituada percepção de comunicação. No momento em que entra o elemento água e distorce em absoluto as palavras, as torna impossíveis de se identificar e imprimir outro ritmo, outro tom, um novo modo de articular, toda a estrutura da linguagem é desmantelada ali na nossa frente! Estávamos diante de uma ação que se impunha aos sentidos e transformava-os todos. O que ouvíamos agora? E mais, o que víamos ali com a água jorrando na boca pelo corpo da artista, pressionando e deformando as palavras? Soluço dentro. Então, Claudia volta a dobrar a mangueira, a água estanca e ela volta a relaxar o braço ao longo do corpo, já não vemos mais o elemento que havia produzido tanto estranhamento. Ela então passa a mão nos olhos para eliminar o restante da água que se acumulara em seu rosto e retoma a narrativa, de modo claro, preciso e completamente inteligível à nossa razão.

Conta-nos então outra memória em relação a paisagem sobre um momento em uma praia com amigos, ou o seu corpo com a areia do deserto, não me lembro bem, pois nesta hora eu estava vidrada na ação do seu corpo performático e em seus movimentos orgânicos, simples, sutis. Um corpo-escultura, vivo na sua ação de estar sentado, falando e decidindo certeiramente o novo momento de mudar tudo ali, de nos oferecer um novo estímulo, uma questão, um desconforto, um soluço dentro, uma emoção sufocada… Estávamos, enquanto plateia, tendo a oportunidade de vivenciar um momento de descontrole total para o corpo, que seguia falando. Mas entre a fala e o que ouvíamos acontecia, de quando em vez, uma interferência tão potente, urgente e visceral (água correndo solta na boca) que nos transportava para outros variados espaços, tempos e emoções. A paisagem se transformava tão abruptamente que nós próprios ali sentados, de pé, escorados, não importa, todos estávamos ali observando atentos, capturados pela presença indubitável da artista. A cada nova intervenção da mangueira jorrando na sua boca um não sei quê de loucura se dava, ficávamos suscetíveis a um milhão de novos e imprevisíveis processos sinápticos. Claudia bagunçou o nosso sistema nervoso, nosso cérebro límbico, por nos levar até a lugares inconscientes, e nosso córtex temporal, que guarda nossas memórias tanto visuais quanto auditivas, as paisagens que cada um de nós já viveu e sentiu. Ofereceu-nos uma possibilidade de perceber a fragilidade da comunicação pelas palavras, pelos discursos, sejam eles quais forem, que se valem tanto das palavras, da moralização da ação pelas palavras, das falas sufocadas que, ao mesmo tempo, são jorro alucinante quando vivem livres e soltas – vômito transparente, explosão de sentidos! Torrente.

Lembranças de paisagens, “traições da memória e a impossibilidade de repetição de uma experiência vivida”, como refere a própria artista. Sempre haverá uma interferência, um desvio, um ornamento distinto daquele experimentado pelo corpo. A performance vive das urgências daquilo que não se pode representar, está fora da norma, dos porquês, pois se refere à dimensão viva do mundo, o extra cognitivo. Ela combate as nossas tendências reativas, para falar com Suely Rolnik, revela a nossa própria ética da existência, que é única, intransponível, pois cada corpo transmite a sua própria pulsação, a sua própria vibração. A performance é, porque a ação é! Ela se impõe, ela revela tudo o que há para se dizer.

Claudia ainda conta sobre algumas paisagens suas e também da sua colega de exposição, Dione Veiga, e, ao final, pergunta se alguém ali quer sentar, segurar a mangueira e contar sobre as suas próprias paisagens. Nós todos, inebriados e jogados dentro de nós próprios, só conseguimos aplaudi-la com ardência. Ela estava viva ali, nos convidou à vida naquela noite! A performance é um ato de vida, e só pode ser assim, fora disso é representação para ser reconhecida!

Carina Sehn

 

Claudia Paim, frame de Devastação, 2016

 

16 de dezembro de 2018

Foram poucos os nossos encontros, mas como muitos de nós, Claudia nos envolvia rapidamente com tentáculos luminosos e nos tornamos dela, paralisados e sempre atentos à próxima frase, poema, performance, livro, comentário. Sua potência como artista, sua força como corpo na performance e no mundo e a sua generosidade extrema fazem dela uma alma daquelas que pedimos para reencontrar pelas vidas futuras. Das preciosidades que aprendemos no seu performar, retenho sua capacidade de transe e transformação do espaço da ação em ambiente sagrado. Nunca me esquecerei do imenso silêncio que se fez no Paço das Artes, em São Paulo, no Perfor 5, onde, apagando as palavras impressas em seu corpo sobre a perda de seu companheiro, ela urinava em cima das mexas de cabelo cortadas ali mesmo, como ruptura e rito de passagem.

Claudia Paim não nos deixou, nos ilumina e nos deixa cheios de saudade.

Saúdo e sou imensamente grata pelos poucos e intensos momentos.

Obrigada,

Clarisse Tarran

 

Claudia Paim, À Procura. Performance realizada em Santa Maria, Brasil. Maio de 2013. Fotografia de Diego Torrico

 

18 de dezembro de 2018

Recadinho a Claudia Paim

Meu primeiro contato com a artista se deu através da publicação de seu artigo “Arte com Política” (2012) na Revista Reticências. De lá pra cá segui seus passos em vida e arte, e conhecê-la foi só uma questão de tempo.

Uma grande artista, mulher-mãe-amiga-poetisa-professora, guerreira nata, que soube levar às artes sua incessante luta de vida e que por entrelinhas poetizava os (re)encontros que sucediam entre-durante residências-exposições-festivais artísticos. A artista mais generosa que pude conhecer, de uma escuta única, sorriso contagiante e aquele abraço super abrasador. Sua partida nos revela a grandeza que foi sua existência, e os modos de existir que pôde desbravar por entre as artes e suas obras. Sua trajetória percorrerá nossas mentes aludindo sua ausência como um gesto ruído dessa já esgarçada vida.

Gratidão por tudo! Ah! E antes qu’eu me esqueça: ainda tenho muitas “paisagens pra rememorar contigo” (performance Entre Minha Boca e Teu Ouvido de 2017) – até logo, Claudia Paim!

Jefferson Skorupski

 

Claudia Paim, Uma Pessoa Civilizada. Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Dezembro de 2014. Fotografias de Caio Mazzilli

 

18 de dezembro de 2018

 

Ele a vê agora pela primeira vez.

Ela é

cabelos compridos, soltos na altura dos ombros,

vestido reto, de tecido claro,

e os pés descalços sobre o chão de madeira.

Respira

Ela olha o espaço

Ela olha nos olhos do espaço

Ela olha nos olhos

E segura em uma das mãos uma tesoura prateada

Respira

Respira o silêncio

A luz agora torna a sua pele levemente amarelada

“Eu menti quando…”,

a boca gesticula vozes de passado presente futuro

E a mão transporta calmamente a tesoura no ar

O corte

do silêncio e dos cabelos que flutuam em trajetória

Eu minto quando… (digo que não tenho medo)

/Som de tesoura/

Tu mentes quando… (dizes que mentiu)

/Som de tesoura/

Ele mente quando… (aos cinco anos quebra acidentalmente o brinquedo e deixa que a prima assuma a culpa)

/Som de tesoura/

Nós mentimos quando…. (dizemos que amamos todos da mesma maneira)

Um líquido escorre por entre as pernas dela

Uma poça se forma como um pequeno território geográfico

Reflete o que está acima

Habita o agora e o por vir

Reflete Claudia

Presente

Aqui

 

São Paulo, dezembro de algum dia de 2014. Do que ele vê no acionamento Uma Pessoa Civilizada, performance de Claudia Paim, no Perfor 5 – Quando?, evento da Associação Brasil Performance, no Paço das Artes, em São Paulo.

Roberto Rezende

 

Claudia Paim, Possibilidades. Performance realizada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Março de 2011. Fotografias de Julio Callado

 

19 de dezembro de 2018

Em março de 2011 tive o prazer de trabalhar com Claudia Paim no festival Performance Arte Brasil, organizado por mim e curado com uma junta de cinco curadores convidados. O projeto procurou traçar um panorama da produção de performance arte no Brasil, reunindo nomes que tinham feito história nos anos 1960, 1980, 1990 até os mais jovens, que começaram a criar nos anos 2000. No momento vivíamos a era dourada de visibilidade da pasta do Ministério da Cultura, de apoio a produções culturais do país e das políticas inclusivas do governo Lula. O projeto ganhara o maior prêmio público já concedido às artes visuais, justamente por propor um mapeamento de certa produção artística brasileira. Dois curadores foram chamados para indicarem artistas do Sul, Paulo Reis e Regina Melin, e assim surgiu a indicação de Claudia e sua consequente participação no evento histórico. Eu já havia esbarrado com a artista em outras ocasiões, especialmente aquelas que reuniram centenas de profissionais da cultura para discutir, em Câmaras Setoriais, necessidades e possibilidades para as distintas áreas das artes no Brasil. Esses grupos também geraram frentes de trabalho para a elaboração do Plano Nacional de Cultura, que conseguiu ficar pronto, mas nunca foi sancionado, morrendo na praia do governo de Dilma Rousseff. Então a Claudia Paim já era alguém onde eu reconhecia uma parceira de ideias e de lutas políticas ou estéticas, embora não fossemos próximas intimamente.

Sua participação no festival de 2011 foi uma das ações mais impactantes que já assisti. Como quase toda performance, a sinopse não surpreendia tanto, a não ser pela quantidade de material usado: 420 ovos. Possibilidades abordava a questão da liberdade da mulher sobre seu próprio corpo. Em uma ação repetida, a artista lia nomes escritos nos ovos que simbolizavam 420 óvulos femininos, quebrando-os após a leitura, um a um.

Sentada diante de uma bacia com os ovos e outra vazia, usando tailleur rosa claro e um microfone acoplado no seu rosto, a artista lia nomes de mulheres escritos nas cascas e as quebrava, em um ritual que durou cerca de uma hora. Após ler o último nome e romper o último ovo, com as mãos e a roupa sujas de clara e gema, Claudia Paim desafiou o público com o olhar. Com certa petulância, num rápido gesto abriu o blazer e mostrou seu peito nu: faltava-lhe um seio. A plateia surpresa e desconcertada destoava da postura altiva da artista, ofegante, que ali se mostrava crua e presente em sua dor e superação.

Dias após a performance encontrei com Claudia e lhe parabenizei pelo trabalho tão forte e corajoso. Me agradeceu e confessou que decidiu abrir o tailleur ali, na hora. Algo que era estritamente pessoal de repente ganhou sentido em ser desvelado e tornar-se arte, impacto, lição de vida. Nossos caminhos entre cidades diferentes nos fizeram perder o contato mais imediato, mas a imagem que guardarei de Claudia sempre será esta: a de uma performer dedicada, inteligente e uma mulher de presença forte.

Daniela Labra

 

Claudia Paim, frames de Não, 2016


19 de dezembro 2018

No início de 2013, reencontrando Claudia Paim por um acaso pela cidade de Porto Alegre, e após um longo período sem vê-la, convidei-a para visitar a minha intervenção Da Emoção das Coisas junto à sala Fernando Corona do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para minha surpresa, Claudia quis realizar uma performance espontânea naquele ambiente, a qual registrei em vídeo e integrou a mostra EXTREMOS, que realizamos em parceria, meses depois.

Foi a partir desse reencontro que Claudia Paim e eu passamos a nos ver mais seguidamente para discorrer sobre arte & vida e compartilhar nossas poéticas que julgávamos próximas. Muitas vezes realizo trabalhos que dialogam com a performance, me incluindo na cena fotografada apenas para criar uma imagem. Porém, além dessa aproximação, há, em nossos respectivos repertórios, evocações simbólicas do elo entre Corpo e Natureza. Desses diálogos resultaram três exposições: EXTREMOS (Plataforma Espaço de Criação, Porto Alegre, 2013); + EXTREMOS (em parceria com a artista Adriana Tabalipa, Centro Cultural FEEVALE, Novo Hamburgo, 2014); e DES| COMPOSTOS (Galeria Península, Porto Alegre, 2017). Nessas exposições, misturávamos linguagens: textos, objetos, fotografias, vídeos, videoinstalações e instalações; trabalhos antigos e outros novos, os quais avaliávamos que continham atravessamentos conceituais entre um e outro. O processo era fluido e prazeroso. E, em cada uma dessas exposições, Claudia nos brindava com uma performance especial para a abertura. A performance – sempre muito bem pensada, construída em torno dos sentidos que perpassavam as obras expostas – impactava os espectadores não somente pela sensibilíssima presença corporal da performer em interação com o público, mas também pela performance em si, que se tornava algo extraordinário, coroando nossas proposições.

Para a nossa última exposição – DES| COMPOSTOS –, que realizamos no ano de 2017, Claudia Paim elaborou a performance Entre Minha Boca e Teu Ouvido. Essa foi uma das mais fortes e impressionantes ações que presenciei dela até então. Claudia começava narrando trechos que colheu de alguns amigos sobre memórias indeléveis de paisagens.

Imponente, ela vestia um macacão de cor negra e permanecia instalada contra um muro alto, ao fundo do jardim da Galeria Península. Era uma noite fria de agosto, e de lua crescente. Atmosfera densa e silenciosa. Durante as narrativas quase hipnóticas, Claudia aproximava de sua boca uma mangueira jorrando água, e assim, interrompia a compreensão de sua fala de modo intercalado. O que ouvíamos então era um estranho e contínuo murmúrio: o som de uma voz que se misturava ao ruído borbulhante da água. Corpo, intempéries, elementos. Transbordamento incontrolável. Fluxo constante e implacável. Memória e Esquecimento. Início e Fim. Paisagem cósmica.    

Dione Veiga Vieira

 

Claudia Paim, Ínfimo. Performance realizada na cidade do Rio Grande, Brasil. Outubro de 2016. Fotografias de Branca Lamas

 

19 de dezembro de 2018

Grafias Transversais e Conversas Nada Formais sobre Claudia Paim

Este texto foi escrito por quatro mãos, ainda que separado em seções, pois nós duas temos inquietações parecidas sobre sua partida e sua permanência viva em nossas vidas, minha querida Claudia.

 

Guardo com muito carinho uma concha recolhida por mim durante um passeio pela praia de Cassino, em Rio Grande, quando passei alguns dias em sua companhia, abrigada em sua casa. Este não foi nosso primeiro encontro, mas talvez tenha sido o mais significativo e íntimo. Fui para o que seria, mas não sabíamos na época, o último festival ruído.gesto: ação&performance, organizado por ela e pelo Ricardo Ayres na Universidade Federal do Rio Grande.

Não esqueço os passeios que fizemos nos molhes da Barra, de quando ela me contou sobre sua caminhada até o Chuí, ou mesmo como aquele céu da praia de Cassino esmagava a gente e nos desnorteava. Tiramos uma foto com o barco encalhado ao fundo, que ela disse que sabia que eu iria gostar muito de conhecer, e voltamos para almoçar. Lembro ainda do cheiro da berinjela tostada na boca do fogão para preparar o baba ganoush de um dos jantares daquela semana. Foram dias felizes de descobertas, conversas, compartilhamentos.

A performance Ínfimo apresentada no festival foi um marco, pois ali não havia nenhuma linha separando nada. Estava tudo escancarado. Seus gestos e sua presença, enquanto as louças se quebravam, eram de uma serenidade vigorosa. Fiquei muito emocionada em como aquela força transparecia ser muito natural, quase espontânea. Era honesta. Quase um ano depois, fui entrevistá-la para um projeto sobre o processo de criação de artistas mulheres que Jaqueline Vasconcellos e eu estamos produzindo. Em determinado momento da entrevista, ela me disse que quem performa é a outra Claudia e não ela, já que era tímida, apesar de tudo. Em um primeiro olhar, é muito difícil imaginar que aquela mulher aguda se intimidava com o “entrar em ação”. Ao mesmo tempo, era exatamente essa contradição que tornava Claudia tão especial, tão humana.

Estar com ela no dia de seu aniversário de 2017 e, ao mesmo tempo, ouvir declarações que soavam como um desvelamento de algo muito íntimo, foi um dos momentos mais relevantes neste pequeno percurso de encontros entre nós. Ali, percebi como ela era importante para mim e o quanto de reciprocidade era possível entre duas pessoas. Saímos para jantar mais uma vez naquela temporada que passei em São Paulo. E foi nosso último encontro. Um jantar em família. Jaqueline Vasconcellos, Marcio Vasconcellos, Renato Nonato, Claudia Paim, sua filha Jana, seu genro Caio e eu. Comemoramos a vida, o fato de estarmos juntos, de termos um projeto de vida e fazermos o que fazemos.

Um almoço de família, um trajeto e quereres… Desta linha começo eu, Jaque, a falar de Claudia, por esse jantar de afetos, por essa despedida (ainda que a tenha visto depois disso)…

Ela é um dínamo, uma força motriz que, com palavras e colocações, vai nos instigando a pensar, a nos revoltar e a produzir.

Quando ela foi artista convidada do projeto Visit(A)cão [1], feito dentro do contexto do Lab Livre Performance [2],  no SESC Santos (projeto meu e de Rodrigo Munhoz, que criou um laboratório permanente de performance na cidade de Santos em 2017), como parte de sua programação, lembro-me que os perfomeros que estavam no Lab me disseram que ela pôs uma regra na sua oficina: “Nada de escrita, vocês vão performar com ações.” Aquilo mudou tudo para eles… Mudou tudo no entendimento sobre a ARTE DA AÇÃO.

Foi sua existência e resistência que desenvolveu em nós o desejo de criar o projeto Feito por Mulher, que a Cris mencionou acima. Quando penso nela eu penso em existência, legitimidade e esquecimento.

“Não quero que ela seja esquecida”, pensei quando falamos pela primeira vez desse projeto; registrar seu trajeto de vida/performance em um programa pensado para TV foi nossa maneira de dizer isso…

Não quero que a futura geração de artistas performeros (pelo menos do Brasil) se esqueça de sua vivacidade, de sua força, de sua inventividade.

Não quero que se esqueçam de que ela é mulher.

Não quero, sobretudo, esquecer que cada vez que ela tencionava o lugar do que eu faço, propondo que há uma arte panfletária, ela me estimulava a criar mais, a publicitar as metodologias de criação que utilizo e discutir seriamente isso com outros artistas, ou seja, falar sobre arte e sobre meu trabalho de maneira madura. Estimulava-me a falar criticamente sobre parâmetros de avaliação de uma obra de arte em performance.

Ela é dessas pessoas que nos instigam a pensar/agir.

Nada era o mesmo após sua passagem em nossas vidas. Jamais ela seria um alguém que passa “em brancas nuvens”…

Não falarei dela no passado, pois gente como Claudia não passa. Ela perdura em imagem, em meme, em algo superior ao nosso entendimento de vida e morte.

Ela não poderia ser, dentro das crenças de minha religião (por questões de fundamento), as divindades com as quais a compararei, mas para a arte da performance ela é um Egungun [3], uma Iyà Mi [4]. Ela hoje é um ser sagrado-profano que deixa ensinamentos e cuja ancestralidade deve ser preservada e lembrada.

Para ela, bato pawo [5], pois, sem ela, muitas mulheres não teriam para qual horizonte olhar, ao escolherem a arte da ação como começo, fim e meio de vida.

Ao coração relego a saudade que ela deixa, mas também a esperança que na sua lembrança nossa arte se mantenha forte e reconhecidamente uma arte feita por mulheres também.

Cristiana Nogueira e Jaqueline Vasconcellos

 

NOTAS

[1] Partilha de saberes entre artistas convidados para o Lab Livre Performance e os participantes desse laboratório. O segundo Visit(A)ção teve como convidada a artista Claudia Paim, que ministrou uma oficina de curta duração e apresentou uma performance.

[2] Plataforma de trabalho colaborativo dedicada à arte da performance, idealizada por Jaqueline Vasconcellos e Rodrigo Munhoz, e instalada no SESC Santos, de abril a julho de 2017. O Lab Livre se baseou em estratégias de compartilhamento de metodologias de criação nessa arte, por meio de quatro módulos que convidou artistas de todo Brasil como docentes e mais três artistas convidados como visitantes para trocar saberes com os participantes.

[3] Egungun é um termo das religiões de matriz africana que designa os espíritos de pessoas mortas importantes, que retornam à terra. O termo faz parte da mitologia Yorubá.

[4] Iyá-Mi, mãe ancestral, divindade mítica, representação coletiva das entidades genitoras ancestrais femininas, divindade das práticas religiosas afro-brasileira. São detentoras do poder ancestral e dos elementos míticos da mulher. Na África, o culto às mães ancestrais encontra-se, de maneira geral, ligado ao chamado “culto aos antepassados”, identificado pelos especialistas em quase todo o continente. Esta divindade na verdade representa a coletividade ancestral feminina, pois é a síntese da Alma de todas as mulheres juntas. Iyá-Mi Agba, outro nome pelo qual elas podem ser referenciadas, significa “minhas Mães Ancestrais”.

[5] Pawo (Paò), tradução – bater palmas; forma abreviada de Ìpatéwo, substantivo, aplauso, bater palmas com a mão. Pawo não é simplesmente um bater de palmas ou aplausos nas religiões de matriz africana, e sim um rito compassado e de grande profundidade. O pawo é utilizado para expressar respeito, devoção, para invocar a energia ou finalizar um ritual ou Oração.

 

Claudia Paim, Corpo Impossível. Performance realizada na cidade de Rio de Janeiro, Brasil. Maio de 2017. Fotografias de Carlos Cesari e Paulo Jorge Gonçalves 

 

21 de dezembro de 2018

Abra as janelas dos olhos e deixe deles escorrer a cortina que a brisa balança na poeira e luz do mundo. Com o olhar, descosture as cores e formas do sentido, veja os buracos na trama que a agulha uniu e pense nas marcas que deixam aqueles que tecem as coisas que chamamos assim, estranhados, de memória. Nos contatos com os colegas do Rio Grande do Sul, a partir do Coletivo ES3 e do nosso desejo por tecer redes que interligassem a performance e os performers do Brasil, um dia uma amiga, a produtora Janaína Spode, me disse: você deveria dar uma olhada no trabalho da Claudia Paim. Essa frase que eu repetiria para outros colegas em outros momentos vindouros, me levaram até o trabalho acadêmico de Claudia. Com os companheiros de Coletivo, ao pensarmos a circuit-ação do Circuito BodeArte, as palavras dela atuaram como um guia, um fio de Ariadne que dava voz a tantos de nossos anseios sobre independência, cooperação, micropolítica e tantos agenciamentos fora de uma moldura importada ou forçosa disposta por valores ensimesmados da produção de arte contemporânea no grande circuito. Buscávamos um curto-circuito e as palavras de Claudia trouxeram para a nossa vontade essa sedução (seducere/ser desviado). No cartão de visitas do ES3, em que constam nossos contatos como coletivo, se lê: “Quando se atua em um coletivo, é necessário transformar ideias em verbo, pela fala os participantes interagem. Discutir os objetivos, as maneiras de fazer, ajustar os alvos, eleger táticas, experimentar: o realizar é apenas o aspecto final de uma longa tessitura de relações.” As palavras emprestadas de Táticas de Artistas na América Latina, de autoria de Claudia, foram um guia e um modo de colocar nossa visão do processo de ser coletivo e de coletivização prática de criação e circuit-ação de arte. Encontraria Claudia pela primeira vez, pessoalmente, apresentada, por acaso, por Lucio Agra, na abertura do Encuentro do Hemispheric Institute em São Paulo, no ano de 2013. Uma imagem dela que guardo com carinho veio desse encontro, num fim de tarde: Claudia, com olhos marejados, agradecendo ao receber nosso cartão e aperceber-se das palavras nele inscritas. Com o tempo fui conhecendo, em outros contatos entre ela e nós, à distância e em diferentes pontos das colaborações em performance pelo Brasil, a artista-pessoa Claudia, a generosidade autobiográfica de suas ações, o seu interesse pela língua espanhola, seu fascínio pelo trabalho dos outros, sua capacidade de ouvir e de dialogar com outros sobre as questões que ela via como essenciais para o crescimento da ação/pessoa/colega. Coisas preciosas, dentre tantas outras, que estão hoje vivas nas partículas em movimento contínuo que ela doou. Eu fecho as pálpebras e entro na minha mente, na sala da casa que sou, ao lado de lembranças de amigos e de viagens, e longe dos pesadelos que as janelas dos olhos veem no mundo que está hoje assim. Vejo perto de um livro desgastado de tão aberto, com marcas e dobras de uso, a imagem de alguém familiar, cujo sorriso largo e olhos característicos são entronados por uma sabedoria doce e profunda. De repente a brisa de algum lugar da lembrança balança as ideias e com elas tudo se refaz, mas de outra forma, com uma saudade de certas coisas inapreensíveis à vontade de dizer ou ao instinto de lembrar.

André Bezerra

 

Claudia Paim, Mulher de Vida. Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Abril de 2017. Fotografias de Jana Paim e Bruno Makia

 

23 de dezembro de 2018

Claudia foi a pessoa que me tornou testemunha de uma performance. Eu sempre me interessei por esse aspecto da arte de ação, o de não oferecer garantias ao público acerca do que e como se realiza. Em vez do espectador, na plateia com sua teatral expectativa, prefiro a figura singular e desavisada da testemunha, que é envolvida no evento do qual não necessariamente desejava participar. Não é uma questão de permissão, mas de urgência; o artista quer atravessar com a força de seu corpo quem está diante dele. Sem constrangimentos, todo aberto, puro risco assumido no gozo de expor os contratos sociais que tanto nos traem. Daí não importar se estamos diante de uma pessoa ou da casa cheia, o que agencia o encontro é uma conexão de outro pulso, como o que me aconteceu em 2014 quando presenciei Uma Pessoa Civilizada, de Claudia Paim, durante o Perfor 5 [quando?] [1]. Na condição de uma das realizadoras do evento, também nos dizia respeito cuidar dxs artistas e de suas demandas para a ação. E nessa edição acompanhei Claudia Paim. Ela me pediu para que a ajudasse a escrever sobre o seu corpo variadas frases curtas que pareciam retiradas de diálogos costumeiros entre pessoas. Foi uma tarefa lenta porque seguíamos uma extensa lista que deveria ficar distribuída por toda sua pele. Essa parte da performance não havia sido explicitada na proposta enviada, logo, eu não sabia o destino desse texto em seu corpo até o momento em que a ação começa. Ela procurava pelas frases, uma por uma, lia e esfregava saliva na pele para apagá-las. Depois, em voz alta dizia:“Eu menti, menti quando…”, e a resposta vinha desses textos corporais: “disse que te perdoei”; “que não dói”; “que não tive medo”. E, após cada frase dita, ela cortava um tufo do próprio cabelo. Depois de a cabeça ficar careca, os picotes foram feitos em seu vestido, e via diante de mim um auto Cut Piece [2] que avançava com a liberdade daqueles que se devoram quando a ética da vida exige liberar tudo, até a urina para a audiência, como ela fez durante a ação. Deleuze dizia que a literatura é um empreendimento de saúde, o que não significa ter saúde de ferro em literatura, ao contrário, se goza de uma frágil vida, efeito do que nos atravessa de forma demasiada, ao ponto de nos esgotar. Contudo, uma gorda saúde dominante tornaria impossível essa frágil força que escritor, artista, performer compartilham com seus trabalhos.

“Do que viu e ouviu o escritor [performer] regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior dele? A frágil saúde de Spinoza [de Claudia], enquanto dura, dá até o fim testemunho de uma nova visão à passagem da qual ela se abre.” [3]

O importante é que cada um seja seu próprio médico, dizia ele, e nós aqui, mulheres, que sejamos curandeiras, bruxas e feiticeiras. Foram palavras, tufos de cabelo, urina, talhos no vestido. E faltava apenas um corte, o da alça do lado direito do vestido bege. E ele acontece, cai a veste que agora deixava à mostra uma virtualidade do corpo feminino que já não possui uma de suas mamas. Tudo era nudez, mas agora éramos todos impelidos a uma nudez coletiva: deixar que a diferença nos habite, despir-se de todo e qualquer sentimento de compaixão, de tristeza por uma mulher “monoteta”, porque Claudia, desde esse episódio, é uma Amazona. Não é fácil transformar as lágrimas cristãs em potência de vida. Ainda bem que tive a sorte de recolher os vestígios da ação e secar o piso urinado. Foi o tempo que precisava pra assentar isso tudo em mim. Foi tudo pro lixo, como a artista queria, menos o que nos habita desde então. E eu testemunhei um ritual de passagem, da moral da vida para sua ética. Obrigada por deixar que a escrita que em ti realizei se tornasse um ensinamento, uma pequena obrigação que carrego, de pensar sobre essas frases da vida quando mulher.

Grasiele Sousa

 

NOTAS

[1] Ver em:<http://brasilperformance.blogspot.com/2014/>.

[2] Yoko Onno, Cut Piece, 1965.

[3] DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34 ,1997, p. 14.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

AA. VV. “Sobre Claudia Paim, Para Claudia Paim”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2019 eRevista Performatus e autorxs

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